terça-feira, 31 de maio de 2016

Visita à Casa Paterna - Luiz Guimarães Júnior

Visita à Casa Paterna
Luiz Guimarães Júnior

Como a ave que volta ao ninho antigo,
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo.

Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
O fantasma, talvez, do amor materno,
Tomou-me as mãos, olhou-me grave e terno,
E, passo a passo, caminhou comigo.

Era esta sala... (Ó se me lembro! e quanto!)
Em que da luz noturna à claridade,
Minhas irmãs e minha mãe... O pranto

Jorrou-me em ondas... Resistir quem há-de?
- Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade...

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Felicidade - Guilherme de Almeira

Felicidade
Guilherme de Almeida

Ela veio bater à minha porta
E falou-me, a sorrir, subindo a escada:
- “Bom dia, árvore velha e desfolhada!”
E eu respondi: - “Bom dia, folha morta!”

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando, pouco importa!)
Houve canções na ramaria torta
E houve bandos de noivos pela estrada...

Então chamou-me e disse: - “Vou-me embora!
Sou a felicidade... Vive agora
Da lembrança do muito que te fiz!”

E foi assim que, em plena primavera,
Só quando ela partiu contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!

domingo, 29 de maio de 2016

Longe da Vista - Guilherme de Almeida

Longe da Vista
Guilherme de Almeida

Vou partir, vais ficar. “Longe da vista,
Longe do coração” – diz o ditado.
Basta, porém, que o nosso amor exista,
Para que eu parta e fiques sem cuidado.

Dentro em mim mesmo, o coração egoísta,
Quanto mais longe, mais te quer ao lado;
Tanto mais te ama, quanto mais te avista
E, antes de ver-te, já te havia amado.

Vou partir. Para longe? Para perto?
- Não sei: longe de ti tudo é deserto
E todas as distâncias são iguais.

Como eu quisera que, na despedida,
Quando se unissem nossas mãos, querida,
Nunca pudessem desunir-se mais!

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Acrobata da Dor - Cruz e Sousa

Acrobata da Dor
Cruz e Sousa

Gargalha, ri, num riso de tormento,
Como um palhaço que, desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.

De gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita guizos e, convulsionado,
Salta, gavroche, salta, “clown”, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas de aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri, Coração, tristíssimo palhaço!

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Dulce - Castro Alves

Dulce
Castro Alves

Se houvesse ainda talismã bendito
Que desse ao pântano – a corrente pura,
Musgo – ao rochedo, festa – à sepultura,
Das águias negras – harmonia ao grito...

Se alguém pudesse ao infeliz precito
Dar lugar no banquete da ventura...
E trocar-lhe o velar da insônia escura
No poema dos beijos – infinito...

Certo... serias tu, donzela casta,
Quem me tomasse em meio do Calvário
A cruz de angústia que o meu ser arrasta!...

Mas se tudo recusa-me o fadário,
Na hora de expirar, ó Dulce, basta
Morrer beijando a cruz de teu rosário!...

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Mal Secreto - Raimundo Correia

Mal Secreto
Raimundo Correia

Se a cólera que espuma, a dor que mora
Nalma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

terça-feira, 24 de maio de 2016

O Acendedor de Lampiões - Jorge de Lima

O Acendedor de Lampiões
Jorge de Lima

Lá vem o acendedor de lampiões de rua!
Esse mesmo que vem, invariavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua,
Quando a sombra da noite enegrece o poente.

Um, dois, três lampiões acende e continua
Outros mais a acender, imperturbavelmente,
À medida que a noite, aos poucos, se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita!
Ele, que doura a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religião, amor, felicidade,
Como esse acendedor de lampiões de rua!

segunda-feira, 23 de maio de 2016

O Enterro da Cigarra - Olegário Mariano

O Enterro da Cigarra
Olegário Mariano

As formigas levavam-na... Chovia...
Era o fim... Triste outono fumarento!...
Perto, uma fonte, em suave movimento,
Cantigas de água trêmula carpia.

Quando eu a conheci ela trazia
Na voz um triste e doloroso acento
Era a cigarra de maior talento
Mais cantadeira desta freguesia.

Passa o cortejo entre árvores amigas...
Que tristeza nas folhas... Que tristeza!
Que alegria nos olhos das formigas!...

Pobre cigarra! Quando te levavam,
Enquanto te chorava a Natureza
Tuas irmãs e tua mãe cantavam...

domingo, 22 de maio de 2016

Maldição - Olavo Bilac

Maldição
Olavo Bilac

Se por vinte anos, nesta furna escura,
Deixei dormir a minha maldição,
- Hoje, velha e cansada da amargura,
Minha alma se abrirá como um vulcão.

E, em torrentes de cólera e loucura,
Sobre a tua cabeça ferverão
Vinte anos de silêncio e de tortura,
Vinte anos de agonia e solidão...

Maldita sejas pelo ideal perdido!
Pelo mal que me fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu sem ter nascido!

Pelas horas vividas sem prazer!
Pela tristeza do que eu tenho sido!
Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...

sábado, 21 de maio de 2016

Ouvir Estrelas - Olavo Bilac

Ouvir Estrelas
Olavo Bilac

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo,
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda noite, enquanto
A Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: - “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi. – “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

O Cristo de Marfim - Antero Bloem

O Cristo de Marfim
Antero Bloem

Quando depões sobre o teu Cristo amado,
- Esse Cristo que pende de teu peito,
Ungido de ternura e de respeito –
Um beijo de teu lábio imaculado,

Eu, sacrílego, sinto-me levado
- Ou seja por inveja, ou por despeito –
A arrebatar o Cristo do teu peito
E em teu peito morrer cruxificado.

Mas quando vejo, do teu lábio crente,
Cair sobre Jesus a prece ardente,
Talvez por nosso amor, talvez por mim,

Ardo na chama intensa dos desejos
De, arrependido, sufocar meus beijos
Nesse teu alvo Cristo de Marfim.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Estela e Nize - Alvarenga Peixoto

Estela e Nize
Alvarenga Peixoto

Eu vi a linda Estela e, namorado,
Fiz logo eterno voto de querê-la;
Mas vi depois a Nize, e a achei tão bela
Que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se neste neste estado
Não posso distinguir Nize de Estela?
Se Nize vier aqui, morro por ela;
Se Estela agora vier, fico abrasado.

Mas, ah! que aquela me despreza amante,
Pois sabe que estou preso em outros braços,
E esta não me quer, por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me destes laços:
- Faze de dois semblantes um semblante,
Ou divide o meu peito em dois pedaços!

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Anjo Enfermo - Afonso Celso

Anjo Enfermo
Afonso Celso

Geme no berço, enferma, a criancinha,
Que não fala, não anda e já padece...
Penas assim cruéis, por que as merece
Quem mal entrando na existência vinha?!

Ó melindroso ser, ó filha minha!
Se os céus ouvissem a paterna prece,
E a mim o teu sofrer passar pudesse,
- Gozo me fora a dor que te espezinha.

Como te aperta a angústia o frágil peito!
E Deus, que tudo vê, não t’a extermina,
Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito!

Sim, é pai, mas – a crença nô-lo ensina:
- Se viu morrer Jesus, quando homem feito,

Nunca teve uma filha pequenina.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Duas Almas - Alceu Wamosy

Duas Almas
Alceu Wamosy

Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
Vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
Se banhem na nascente da alvorada.

E amanhã quando a luz do sol dourar, radiosa,
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua,
Hás de levar contigo uma saudade minha...

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Desponta a estrela d'alva - Fagundes Varela

Desponta a estrela d'alva
Fagundes Varela

Desponta a estrela d’alva, a noite morre.
Pulam no mato alígeros cantores,
E doce a brisa no arraial das flores
Lânguidas queixas murmurando corre.

Volúvel tribo a solidão percorre
Das borboletas de brilhantes cores;
Soluça o arroio; diz a rola amores
Nas verdes balsas donde o orvalho escorre.

Tudo é luz e esplendor; tudo se esfuma
Às carícias da aurora, ao céu risonho,
Ao flóreo bafo que o sertão perfuma!

Porém minh’alma triste e sem um sonho
Repete olhando o prado, o rio, a espuma:
- Oh! mundo encantador, tu és medonho!

domingo, 15 de maio de 2016

Soneto - Fagundes Varela

Soneto
Fagundes Varela

Eu passava na vida errante e vago
Como o nauta perdido em noite escura,
Mas tu te ergueste peregrina e pura
Como o cisne inspirado em manso lago.

Beijava a onda num soluço mago
Das moles plumas a brilhante alvura,
E a voz ungida de eternal doçura
Roçava as nuvens em divino afago.

Vi-te; e nas chamas de fervor profundo
A teus pés afoguei a mocidade
Esquecido de mim, de Deus, do mundo!

Mas ai! cedo fugiste!... da soidade,
Hoje te imploro desse amor tão fundo
Uma ideia, uma queixa, uma saudade!

sábado, 14 de maio de 2016

Pálida, à Luz da Lâmpada Sombria - Álvares de Azevedo

Pálida, à Luz da Lâmpada Sombria
Álvares de Azevedo

Pálida, á luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens de alvorada,
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! O seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Círculo Vicioso - Machado de Assis

Círculo Vicioso
Machado de Assis

Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:
- “Quem me dera que eu fosse aquela loura estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

- “Pudesse eu copiar o transparente lume
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

- “Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal que toda luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

- “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vagalume?”

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Pthysica - Adolpho Werneck

PTHYSICA
Ao Euclides Bandeira
Adolpho Werneck

Ela aí vem, esquálida, e eu me embuço
Para evitá-la, em vão! Ela aí vem,
Magra mulher, — eu vejo-a sem rebuço —
Prender-me aos braços, asfixiar-me... Dlen!

E já me sinto mal, e tusso, e tusso,
E vou ficando, assim como a cecém,
Branco e a tossir ao chão eu me debruço
Porque a tosse a fadiga sobrevêm.

Orai por mim, orai por mim, Donzela,
Vai-me a vida pouco a pouco, a vela
Ponde-me à mão. Adeus! sou quase exangue..
Meu coração, a custo, vibra agora,
O sangue vem-me à boca e sem demora
Eu tombarei amortalhado em sangue.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Soneto da Última Estação - Adelmo Oliveira

Soneto da Última Estação
(Mitologia Marinha)
Adelmo Oliveira

Esta que vem do mar por entre os ventos
Sacudindo as espumas dos cabelos
Vem molhada de azul nos pensamentos
Seu corpo oculta a ilha dos segredos

Vem e dança ao andar sobre as areias
Úmidas sob os passos e os desejos
Onde as ancas são ondas em cadeias
Infinitas de luz contra os espelhos

Nem precisa de flor nem de perfume
Ela é a própria essência do ciúme
Feita de mito e se fazendo estrela

Vem – dança – e passa aos fogos do verão
– Fantasia da última estação
Explodiu na vertigem da beleza

terça-feira, 10 de maio de 2016

Uma barquinha branca... Uma cabana... - Adelmar Tavares

UMA BARQUINHA BRANCA... UMA CABANA...
Adelmar Tavares

Uma barquinha branca... Uma cabana...
E em volta da cabana, — coqueirais...
O mar em frente... A vida soberana
De ser pobre e pescador...
          Viver feliz com o teu amor
          E — nada mais...

Ou no cimo de um monte — uma choupana
E em volta da choupana — laranjais...
Soprar a frauta quérula, de cana,
Ter um rebanho, e ser pastor...
          Viver feliz com o teu amor
          E — nada mais...    

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Celeste - Adelino Fontoura

CELESTE
Adelino Fontoura

É tão divina a angélica aparência
e a graça que ilumina o rosto dela,
que eu concebera o tipo de inocência
nessa criança imaculada e bela.

Peregrina do céu, pálida estrela,
exilada na etérea transparência,
sua origem não pode ser aquela
da nossa triste e mísera existência.

Tem a celeste e ingênua formosura
e a luminosa auréola sacrossanta
de uma visão do céu, cândida e pura.

E quando os olhos para o céu levanta,
inundados de mística doçura,
nem parece mulher - parece santa.

domingo, 8 de maio de 2016

O Amor no Éter - Adélia Prado

O AMOR NO ÉTER
Adélia Prado

Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas, os bicos mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniços na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escavar-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar

entre meio-dia e duas horas da tarde.

sábado, 7 de maio de 2016

Eu Te Amo!!! - Adalgisa Nery

EU TE AMO!!!
Adalgisa Nery

Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a ideia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mi
Suavemente.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Soneto D'Outono - Adalberto Guerra-Duval

SONETO D'OUTONO

Adalberto Guerra-Duval

Grandes panos grisalhos... Folhas mortas
nos esqueletos d'árvores d'outono...
A Morte e o Frio andam batendo as portas,
e o Vento ulula como um cão sem dono.

(Pelos outonos, minha Primavera,
padeço as agonias ambientes,
e há no meu peito alguém que desespera...
— Por que há de haver outonos e poentes!)

Nesta paisagem lívida de spleen
a Alegria expirou dentro de mim;
e o Sol, o loiro Sol do meu país!

Morreu de tédio pelo outono gris...
— Como a nódoa d'azeite que s'espalma,
a Tristeza manchou toda a minh'almal

quinta-feira, 5 de maio de 2016

O Sangue das Rosas - Abdias da Costa Neves

O SANGUE DAS ROSAS

Quando sinto cantarem sobre as telhas
O ouro da luz e a voz das madrugadas,
vou ver morrer no céu as irisadas,
pequeninas e fúlgidas centelhas.

Ainda não despertaram as abelhas
para a festa das ramas enfloradas.
Pássaros dormem. Abertas nas estradas,
Rosas pompeiam pétalas vermelhas...

De onde lhe vem aquele sangue rubro?
Sigo, pé ante pé, olho e me encubro
Nos roseirais e de onde posso vê-las,

E vejo, então, velando o espaço infindo,
aquele sangue vir do céu caindo
pelos olhos de prata das estrelas...

quarta-feira, 4 de maio de 2016

O Operário em Construção - Vinicius de Moraesa

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
Rio de Janeiro , 1959
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Viajando - A. B. Mendes Cadaxa

VIAJANDO

Poema de A. B. Mendes Cadaxa

Para Antonio Miranda,
ao ler “Despertar das Águas”


Sol entre nuvens
Bom tempo para navegantes.

Vou pela areia
Chego ao laguinho
Esquecido no final da praia
Ao retirar-se a maré vazante.

Mesmo pisando de mansinho
Assusto peixelins
A preamar ansiosos aguardando.

Trato de não perturbar festins
Gaivotas, siris
Se banqueteando.

*  *

Cansado de vagar sobre os abismos
Embarco em uma nuvem
Refletida lá no fundo
Para uma viagem sideral

Impelido pelo vento.