UMA HISTÓRIA DE JUDAS
JOÃO ALPHONSUS
(1901-1944 - Brasil)
"Grande
contista" (Mário de Andrade dixit), o mineiro João Alphonsus publicou
apenas três curtos livros do gênero: Galinha Cega, Pesca da Baleia e Eis a
Noite! De uma família de escritores que remonta ao romântico Bernardo
Guimarães, e filho do simbolista Alphonsus de Guimarães, foi também romancista
(Totônio Pacheco, Rola-Moça). Seu humor não nos leva ao riso franco, pois
traduz "uma literatura humana, terrivelmente, miudamente, dolorosamente
humana" (Drummond). É o brasileiro patético do interior, anos 1940, 1950,
este "Judas" mineiro.
Como Sexta-feira da Paixão fosse dia
santo, um dia santo extraordinário em todo o mundo cristão, o homem teve a
primeira contrariedade do dia quando a mulher lhe comunicou que não havia café
com leite. Só café. O leiteiro anunciara de véspera que ele descansaria
sexta-feira, que os ubres de suas vacas descansariam, isto é, que não haveria
distribuição de leite. Sizenando, como burocrata que era, achava naturalíssimo
não trabalhar de Quarta-feira de Trevas a Domingo da Ressurreição. Mas o
leiteiro não tinha esse direito. Deixar de tirar o leite de suas vacas!
Bebeu o café simples. O líquido lhe fez
certo bem ao estômago, tanto assim que sentiu uma disposição não para a alegria
franca, que não era do seu feitio, mas para o humorismo. Brotou-lhe na cabeça
um pensamento humorístico: - os bezerros hoje vão ter indigestão de leite; que
festa para eles... Lembrou porém que a medida não era geral: haveria outros
leiteiros que não respeitavam a santidade máxima do dia. Uma lástima. E um
pecado. Os bezerros, afinal de contas, são dignos de uma certa consideração.
Depois que sua mulher saiu para a igreja,
Sizenando tirou um cigarro do bolso do pijama de zefir estampado e caminhou
para o alpendre florido de sua casa, um bungalow como outros muitos, suburbano
e tranqüilo. Caminhou para a espreguiçadeira: fumar sossegado, gozar a paisagem
da manhã, ler jornal, produzir outros pensamentos iguais ao dos bezerros,
filosofar. Fica entendido que o seu filosofar não passava além daquilo:
humorismo simples em torno das vacas, da repartição pública, das mulheres
alheias, com sal e pimenta. Seria um homem feliz, se não houvesse um motivo
para o contrário. O jornal anunciava bailes à fantasia para Sábado de Aleluia,
o que o fez recordar um companheiro de repartição, seu rival na candidatura à
promoção iminente. Tal colega era um sujeito carnavalesco, chefe de foliões, e
safado como poucos! Perito em traições, como Judas... Mas logo teve pena de
Judas: porque comparar o traidor de Jesus àquele sujeito, se o pobre Judas não
devia ser tão mau assim, coitado?
Mal formulara essa pergunta sem resposta,
viu aproximar-se do portão de sua casa, olhando-a atentamente com o ar de quem
almejasse lhe penetrar os umbrais, um desconhecido vestido de preto, luto por
algum parente, ou respeito à tradição de se enlutar a pessoa, quando religiosa,
naquele dia. Sizenando deslizou ligeiro da espreguiçadeira para dentro de casa,
agachado atrás da jardineira que circulava o alpendre.
- Tem um sujeito aí. Já está batendo
palmas... Pergunte o nome e venha saber se estou em casa.
A criada cumpriu a recomendação e voltou
com os olhos muito abertos, cara de espanto:
- Ele disse que é Judas. Judas
Iscariotes.
- É?!
O homem teve um minuto de hesitação,
depois do que ordenou calmamente à criada que introduzisse o sujeito na sala.
Nova hesitação, depois da qual resolveu aparecer-lhe mesmo de pijama e barba de
dois dias. Para que cerimônias? Pediria desculpas. O visitante matutino devia
ser algum pândego. Ou doido? Entrou na sala com uma certa inquietude.
- Bom dia.
- Bom dia. O senhor como vai?
- Regularmente. Às ordens.
O estranho era banal e comum, embora
grave e solene; nem alto, nem baixo; nem gordo, nem magro. Parecia sentir calor
dentro do terno preto; mesmo cansaço, desânimo. Os olhos, no entanto, brilhavam
com animação, de um modo esquisito, como se não fossem da mesma pessoa.
- Às ordens, insistiu Sizenando. Peço
desculpas pela falta de cerimônia do pijama.
- E eu, peço desculpas pela importunação
matutina. Sou Judas Iscariotes; ou de Kerioth, que é mais erudito e pedante.
Sou e não sou. Sou o espírito de Judas invocado pelo sujeito que está sentado
nesta cadeira. Fui invocado no Domingo de Ramos; tenho que permanecer no corpo
dele a semana inteira...
Sizenando notou que a voz era pura,
franca, simpática: como os olhos, não parecia pertencer ao mesmo indivíduo; não
sendo espírita, nenhuma conclusão tirou do fenômeno presente; continuou calado,
cortesmente incrédulo, sorrindo.
- Quer provas? Para um espírito, não era
necessário que o senhor fizesse o homem invisível, pois se entrei aqui foi
porque talvez tenha sido o senhor a única pessoa que nesta emergência anual me
dedicou um pensamento de relativa simpatia. O senhor acha mesmo que não sou tão
traidor como aquele seu colega de repartição?
O espanto de Sizenando foi imenso. Era
verdade! Um fato real... e tão natural, com discrição e polidez, à luz do dia,
que não lhe causava medo nenhum, aquela alma do outro mundo, Judas...
- A minha encarnação neste indivíduo foi
divertida. A técnica é diferente: nunca apareci em sessão espírita nenhuma;
quando um sujeito está realizando uma traição, nas proximidades do meu dia de
cada ano, eu entro no corpo dele. Por uns dias. Este meu hospedeiro foi visitar
um amigo no último domingo. Visitar a mulher do amigo, que estava sozinha em
casa .No momento em que externava o seu desejo à mulher, me apossei do corpo
dele, dei uma desculpa esfarrapada para não continuar o assunto e fui saindo. A
esposa do outro ficou surpresa e contrariada, porque já se ia no embalo; e tive
uma tentação de apanhar pedras na rua para apedrejar a adultera biblicamente, como
no meu tempo. Mas, como dizia o Mestre, quem é que pode atirar a primeira
pedra? Além disso, o calçamento era de asfalto, e eu tinha pressa de
perambular, perambular, perambular... Isto faz parte dos castigos impostos a
Judas Iscariotes. Mas penso que qualquer dessas traições que há por aí é muito
pior que a minha.
- Eu também penso.
- O senhor assim pensa quando é o traído.
E quando é o traidor? Aquela sua intriga foi malsucedida. E o seu colega tinha
pistolões mais fortes... Quanto a mim, prefiro encarnar nos traidores políticos
(quis variar, este ano). O terreno é fértil e simpático, pois a minha traição
foi eminentemente política. Do meu beijo perjuro dependia a redenção da
humanidade. Ora, eu conhecia as profecias, acreditava no Divino Mestre, sabia
que era o momento de surgir o traidor. Se eu explicasse tudo isso aos perseguidores
do Nazareno? Talvez lhes tivesse aberto os olhos. Preferi aceitar os trinta
dinheiros, que perdi no jogo, e fazer o papel profetizado, estabelecido, benemérito.
Benemérito pelas suas conseqüências. Sofri muito ao aceitar a imposição da
profecia. Estou sofrendo ainda.
- Tenho pena do senhor.
- Que é que me adianta a sua pena? A
minha tese é esta: pode alguém ficar eternamente responsável por um ato, que já
estava divinamente pré-estabelecido numa cadeia de acontecimentos inadiáveis?
- Não pode não. É um absurdo!
- Pode. Tanto pode, que estou
responsável. Eu podia ter recusado o papel. E o senhor acredita no livre
arbítrio... Falou - não pode não! - quando pensava o contrário: que seria
incapaz de trair como eu, com um beijo... Traidor! O senhor sabe que vai ser
processado por calúnia? Jurou que o seu competidor na vaga da repartição havia feito
desaparecer o processo referente ao desfalque. O processo foi encontrada no
segundo escaninho da estante quarta do arquivo, lá onde o senhor o tinha
escondido... O competidor vitorioso quer processá-lo judicialmente.
- Sei disso. Já procurei saber qual é a
pena de prisão. Mas o processo não pega.
- Pega sim. Para mim, não existe passado,
nem presente, nem futuro. Tudo é a mesma coisa. A eternidade. O senhor será
condenado. E perderá o emprego, além da; reputação, pois a falta é também
funcional. Perderá tudo. Ficará na miséria. MISÉRIA!
O estranho visitante, de pé, se debruçou
brutalmente sobre Sizenando e os seus olhos ardentes olhavam tanto, tão
agudamente, que o nosso homem sentiu no corpo uma impressão irremediável de
punhais que lhe estraçalhassem as vísceras, de acabamento integral: não tinha
cor no rosto e tremia. A voz quente de Judas ciciou no seu ouvido esquerdo:
- O senhor não tem no quintal uma
figueira?
- Não, mas tenho no quarto um revólver.
- Então, adeus. Até à eternidade.
Passou a porta, o portão. Na rua, parecia
um homem como outro qualquer. Mas não era. Tanto não era que Sizenando foi
automaticamente à gaveta onde guardava o revólver. Não, pensou: vou esperar
minha mulher voltar da missa e lhe conto tudo. Os olhos eternos de Judas não
saíam da sua memória: a impressão, do corpo. Será possível que eu seja a vítima
escolhida para tanta perseguição, por causa de uma caluniazinha? E os outros,
os outros que pululam por aí, sem processo e sem miséria!
Sua perturbação era extrema. Raciocinou:
estas coisas estão absurdas, tão absurdas que só podem ser sonho; se não estou
acordado e se não tenho revólver real na mão, vou dar um tiro na cabeça com
este revólver de mentira, pois despertarei com o estampido. Raciocinando desse
modo, com todo o seu bom senso, Sizenando puxou o gatilho. A criada, que estava
na cozinha, saiu correndo como louca na direção do quarto, ouvindo a detonação,
e o baque do corpo.
(“Os 100 Melhores Contos de Humor da
Literatura Universal”, organização de Flávio Moreira da Costa, Ediouro, Rio de
Janeiro, 2001, 3ª Edição, Páginas 457 a 460.)