sábado, 31 de outubro de 2015

Um Moço Muito Branco - João Guimarães Rosa (Parte 1)

      No seu livro “Primeiras Histórias”, no Capítulo XIV, intitulado “Um Moço Muito Branco”, João Guimarães Rosa nos brinda com uma história que pode ser perfeitamente interpretada como sendo a de um personagem extraterrestre.

      “Um moço muito branco

      Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos nas folhas da época e exarados nas Efemérides. Dito que um fenômeno luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos, e a terra se abalou, num terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu vales, matou gente sem conta; caiu outrossim medonho temporal, com assombrosa e jamais vista inundação, subindo as águas de rio e córregos a sessenta palmos da plana. Após os cataclismos, confirmou-se que o terreno, em raio de légua, mudara de feições: só escombros de morros, grotas escancaradas, riachos longe transportados, matos revirados pelas raízes, solevados novos montes e rochedos, fazendas sovertidas sem resto — rolamentos de pedra e lama tapando o estado do chão. Mesmo a distância do astroso arredor, a muita criatura e criação pereceu, soterradas ou afogadas. Outros vagavam ao deus-dar, nem sabendo mais, no avesso, os caminhos de outrora.
      Donde, no termo de semana, dia de São Félix, confessor, o caso de vir ao pátio da Fazenda do Casco, de Hilário Cordeiro, com sede quase dentro da rua do Arraial do Oratório, um coitado fugitivo desses, decerto persuadido da fome: o moço, pasmo. O que foi quando subitamente, e era moço de distintas formas, mas em lástima de condições, sem o restante de trapos com que se compor, pelo que enrolado em pano, espécie de manta de cobrir cavalos, achada não se supõe onde; e, assim em acanho, foi ele avistado, de muito manhã, aparecendo e se escondendo por detrás do cercado das vacas. Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve, semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade. Sobremodo se assemelhava a esses estrangeiros que a gente não depara nem nunca viu; fazia para si outra raça. Seja que da maneira ainda hoje se conta, mas transtornado incerto, pelo decorrer do tempo, porquanto narrado por filhos ou netos dos que eram rapazes, quer ver que meninos, quando em boa hora o conheceram.
      Hilário Cordeiro, sendo homem cordial para os pobres. temente e bom, e mais ainda nesse pós-tempo de calamidade, em que parentes dele mesmo tinham sofrido morte e arrasos totais, não duvidou em lhe deferir hospedamento, cuidando de adequar-lhe roupa e botinas, desde lhe dar o de comer. E o que era mister de benemerência, porquanto o moço, com os sustos e baques, passara por desgraça extraordinária: perdida a completa memória de si, sua pessoa, além do uso da fala. Esse moço, pois, para ele sendo igual matéria o futuro que o passado? Nada ouvindo, não respondia, nem que não, nem que sim; o que era coisa de compaixão e lamentosa. Nem fizesse por entender, isto é, entendia, ás vezes ao contrário, os gestos. Dado que uma graça já devia de ter, não se lhe podia pôr outro nome, não adivinhado; nem se soubesse de que geração fosse — o filho de nenhum homem.
      De tanto que chegou lá, e nos dias, compareceram os vários moradores, por sua causa, de há-de o que achassem. Tonto, não era. Só aquela intenção sonhosa, o certo cansaço do ar. Surpreendente, contudo, o que assaz
observava, resguardado, até espreitasse por miúdo os vezos de coisas e pessoas; o que, porém, melhor se viu pelo depois. Gostou-se dele. Quiçá mais o preto José Kakende, escravo meio alforriado de um músico sem juízo, e ele próprio de ideia conturbada; por último, então, delirado varrido, pelo fato de padecidos os grandes pavores, no lugar do Condado: girava agora por aqui e ali, a pronunciar advertências e desorbitadas sandices — querendo pôr em pé de verdade portentosa aparição que teria enxergado, nas margens do Rio do Peixe, na véspera das catástrofes. Do moço, pois, só não se engraçou, antes já de abinício o malquerendo — e o reputando por vago e malfeitor a rebuço, digno, noutros tempos, de degredo em África e nos ferros de el-rei — um chamado Duarte Dias, pai da mais bela moça, por nome Viviana; e do qual se sabia ser homem de gênio forte, além de maligno e injusto, sobre prepotências: naquele coração não caía nunca uma chuvinha. Não se lhe deu exata atenção.
      Mas levaram o moço à missa, e ele portou-se, não fez modos de crer nem increr. Cantoria e músicas do coro, escutasse, no sério sentimental. Triste, dito, não; mas: como se conseguisse, em si, mais saudade que as demais pessoas, saudade inteirada, a salvo do entendimento, e que por tanto se apurava numa maior alegria — coração de cão com dono. Seu sorriso às vezes parava, referido a outro lugar, outro tempo. Sorrindo mais com o rosto, senão com os olhos; suposto que nunca se lhe viram os dentes. Padre Bayão, antes de com ele bondosamente conferir, de improviso lhe representou diante o signo-da-cruz: e ele não mostrou o desagrado da matéria. Estava nas altas atmosferas, aumentava a sua presença. "Comparados com ele, nós todos, comuns, temos os semblantes duros e o aspecto de má fadiga constante.” Traços estes consignados pelo mesmo padre, em carta de punho e firma, para testemunho do esquisito, ao cônego Lessa Cadaval, da Sé de Mariana. Na qual igualmente dá menção do preto José Kakende, que na mesma ocasião se lhe acercou, com altas e despauteradas falas, por impor sua visão da beira do rio: ... "o rojo de vento e grandeza de nuvem, em resplendor, e nela, entre fogo, se movendo uma artimanha amarelo-escura, avoante trem, chato e redondo, com redoma de vidro sobreposta, azulosa, e que, pousando, de dentro, desceram os arcanjos, mediante rodas, labaredas e rumores.” E, com o mesmo risonho José Kakende, veio Hilário Cordeiro trazendo de volta para casa o moço, num extrato de desvelo, como se o vero pai dele fosse.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

"Tartufo - O Doente Imaginário" - Molière

“Nada vejo também que seja mais odioso
Que a máscara infiel de um zelo especioso –
Perfeitos charlatães, carolas de banquete
Que da crença no céu só têm o cacoete;
Zombam impunemente, abusam sem cuidado
Daquilo que há em nós de mais limpo e sagrado;
Almas que ao interesse aceitam submissão,
Fazem da própria fé negócio de balcão
E procuram comprar dignidade e conceito
Com olhares no chão e pancadas no peito,
Pessoas de um fervor que nos causa estranheza,
Que ao correr para Deus vão atrás da riqueza,
Hábeis ao ajustar a devoção ao vício,
Vingativas, sem fé, repletas de artifício;
Que para condenar encobrem toda a vida
Com o desejo do céu a vaidade ferida;
De tal modo brutais no seu ódio boçal
Que usam armas do bem na prática do mal.
E neles a paixão raivosa que os domina
Com o ferro mais sagrado é que nos assassina.”

(“Tartufo – O Doente Imaginário”, Molière, tradução e adaptação de Guilherme Figueiredo, Editora Civilização Brasileira S.A., Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1975, fala de Cleanto, Cena VI, Primeiro Ato, “Tartufo”, Páginas 20-21.)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O Colecionador de Coincidências - Malba Tahan

         O grande matemático fechou, lentamente, o livro. Pousou, com cuidado, a pena junto do tinteiro e, voltando-se para o inesperado visitante que permanecia de pé, disse-lhe:
         - Sente-se, por favor. De que se trata, afinal? Algum novo problema?
         O homem da pasta amarela deixou-se cair, pela ação da gravidade, na larga e confortável poltrona. Teria cinqüenta anos, no máximo: alto, magro, de uma magreza retilínea, quase vertical. Trazia óculos cor de cinza, com aros vermelhos. Pura esquisitice, com certeza.
         - Venho consultá-lo – começou (e a sua voz denunciava não pequeno constrangimento) – sobre um novo e importante problema de Matemática. Trata-se, apenas, de determinar uma fórmula geral que permita medir uma coincidência qualquer!
         - Coincidência? Como assim?
         - Em poucas palavras poderei explicar-lhe – prosseguiu, já mais animado. – Devo confessar que coleciono coincidências. Sim, senhor. Não se admire. Sou, repito, colecionador de coincidências. Há milhares de pessoas pelo mundo que colecionam coisas; uns, selos; outros, borboletas; outros, enfim, cartões, plantas exóticas, carteirinhas de cigarros, moedas, móveis antigos, penas, aranhas, autógrafos, cachimbos, cartões-postais, quadros, livros, pedras preciosas e até múmias! Há coleções incríveis! Conheci em Paris um maestro, muito rico, que colecionava “risadas”: essa original “coleção” era gravada em discos especiais; em cada disco figurava o nome, a idade e, às vezes, até a biografia do autor da “risada”. Não acha interessante?
         - Interessantíssimo!
         - Pois bem. Para fugir à vulgaridade resolvi organizar uma coleção única no mundo, isto é, uma coleção de coincidências. Ao ter notícia de uma coincidência notável, procuro todos os meios de comprová-la. Uma vez obtidos os necessários documentos, a coincidência passa a figurar no meu álbum rigorosamente assinalada com fotografias, recortes de jornais, depoimentos de testemunhas idôneas, etc. Eis um exemplo que poderia apontar entre centenas de outros. No dia 5 de março deste ano, na Praça de S. Luís, um automóvel, que conduzia um passageiro atropelou um transeunte descuidado; um médico, que passava no momento, socorre o ferido e um guarda, postado de serviço no local, prendeu o motorista desastrado. Houve, nesse caso, uma coincidência realmente notável, já devidamente incluída em minha coleção. O médico, o guarda, o ferido, o passageiro e o “chauffeur”, esses cinco cavalheiros envolvidos no acidente, faziam anos precisamente naquele dia 5 de março. Notável, não acha? Tenho, a tal respeito, várias fotografias autênticas e certidões com firmas reconhecidas.
         - É curioso.
         - Isto ainda não é nada. Não me furto ao prazer de contar-lhe mais uma. Em setembro de 1919 (não me recordo precisamente do dia) partiu de Dover um pequeno vapor, o “Moldan”, com um carregamento de fios. Tomaram passagem apenas quatro viajantes. Ocorreu, então, uma coincidência de pasmar. Os quatro passageiros eram pernetas, sendo dois da perna direita e os outros dois da esquerda. A esse respeito tenho duas grandes fotografias, numa das quais figura o comandante do “Moldan”, com sua blusa de couro, ladeado pelos passageiros estropiados!
         Neste ponto o visitante fez pequena pausa e logo prosseguiu:
         - Ora, senhor matemático, a minha coleção só terá realmente interesse para o grande público no dia em que eu puder classificar as coincidências que nela figuram, segundo certo critério, isto é, atribuindo a cada uma delas determinado valor. Posso provar que há coincidências suscetíveis de comparação. Chamo-me Samuel Spaier, sou médico e tenho 1m,71 de altura. Vamos supor que, ao atravessar uma rua, esbarre com um indivíduo qualquer. Se esse indivíduo se chamar Samuel, houve no nosso encontro uma certa coincidência; se ele, porém, além de se chamar Samuel, for médico, a coincidência será maior; se o sujeito, médico e Samuel, tiver precisamente 1m,71 de altura, a coincidência observada será cem mil vezes maior. Ora, se há coincidências maiores e outras menores, é claro que cada uma delas exprime, dentro das leis do Acaso, uma certa grandeza e como qualquer grandeza pode ser avaliada, isto é, expressa por um número.
         - Perfeitamente – interrompeu o matemático. – A medida de uma coincidência poderá ser feita, com relativa facilidade, com auxílio da famosa teoria das Probabilidades, aplicando-se os três teoremas ou princípios de Poincaré. É preciso, entretanto, não confundir uma “coincidência aparente”, resultante forçada e natural de circunstâncias bem determinadas. Uma ocorrência qualquer pode, em verdade, deixar em nosso espírito a impressão de ter sido presidida por uma coincidência quando nela, afinal, o Acaso não colaborou. Assim, por exemplo, no caso do vapor “Moldan” que, tendo partido de Dover no dia 11 de setembro de 1919, conduzia quatro pernetas, segundo fui informado por uma reportagem do “Times”, não houve coincidência alguma.
         - Como assim?
         - Tratava-se, apenas, segundo pude averiguar, de quatro mutilados de guerra que eram, por ordem do governo, enviados para uma clínica especializada. No encontrarem-se ali os quatro pernetas não houve, portanto, a menor interferência do Acaso!
         - Estranho interesse tomou o senhor por esse caso – retorquiu, muito sério, o colecionador. – Teria sido mera casualidade?
         - Asseguro que não – respondeu o matemático. – Sei que vou surpreendê-lo e talvez mesmo contrariá-lo. Vejo-me, porém, forçado a confessar a verdade. Sou também, há vários anos, colecionador de coincidências!
         Nenhuma outra notícia poderia causar tão dolorosa surpresa ao Dr. Spaier. Sentiu-se aniquilado. Via desaparecer, num relance, o título mais valioso de sua coleção: a originalidade. Tudo perdido!
         O Dr. Spaier, sem dizer palavra, ergueu-se nervoso, agitado e retirou-se precipitadamente da sala. Ao sair, porém, esbarrou violentamente com um homem de cinzento-claro que, exatamente naquele momento, atravessava o patamar. Com o choque rolam ambos, numa queda fatal e tremenda pela escada do apartamento.
         Verificou-se depois que o tal homem de cinzento-claro chamava-se Samuel, era médico e tinha 1m,71 de altura.
         Essa coincidência, porém, o Dr. Spaier já não pôde incluí-la em sua coleção. Faleceu, alguns minutos depois da queda, em conseqüência de forte comoção cerebral.

         (“Maktub”, Malba Tahan, Editora Conquista, Rio de Janeiro, 1957, 8ª edição, págs. 71 a 76.)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A Cartomante- O. Henry (Parte 2)

          - Boa noite – disse Tobin. O homem tirou o charuto da boca e respondeu ao cumprimento.
         - Você poderia dizer como se chama? – perguntou Tobin. – Queremos ver de que tamanho é o seu nome. Talvez seja nossa obrigação ficarmos conhecidos.
         - Meu nome – respondeu o homem, educadamente – é Friedenhausman; Maximus G. Friedenhausman.
         - É do tamanho certo – disse Tobin. – E ele leva a letra “o”?
         - Não.
         - Você pode soletrá-lo com um “o”? – perguntou Tobin, ansioso.
         - Se você não consegue falar bem idiomas estrangeiros – explicou o narigudo – pode, se quiser, colocar a letra na penúltima sílaba.
         - Perfeito – disse Tobin. – Você está diante de Jawn Malone e Daniel Tobin.
         - O que é bastante honroso – disse o homem, com um cumprimento de cabeça. – E agora, já que não posso conceber que vocês estejam pelas esquinas aprendendo a soletrar, poderão dar uma razoável desculpa por estarem aqui?
         - Pelos dois signos – respondeu Tobin, tentando explicar – que você tem, que estão de acordo com a interpretação que a cartomante egípcia fez na minha mão, é você que vai me trazer boa sorte e apagar as linhas de azar que vão do homem negro à mulher loura com os pés cruzados no barco, além da perda financeira de um dólar e sessenta e cinco centavos.
         O homem olhou para mim e perguntou:
         - Você ainda tem alguma coisa a acrescentar a esta declaração? Vi pela maneira com que você o olha que está tomando conta dele.
         - Nada – respondi – exceto que como uma ferradura é semelhante a outra, assim você é o retrato da boa sorte prevista pela mão de meu amigo. Se não for, então as linhas da mão de Danny devem estar confusas, sei lá.
         - Ah, agora são dois – ironizou ele, olhando para os lados, à procura de um guarda. – Gostei  muito da companhia de vocês. Boa noite.
         Com isto enfiou o charuto na boca e caminhou pela rua, ligeiro. Mas Tobin colocou-se a seu lado e eu do outro.
         - O quê! – exclamou ele, parando na calçada do lado oposto e enfiando o chapéu na cabeça. – Vocês estão me seguindo? Eu disse que meu desejo era ficar livre de vocês. Estou indo para casa.
         - Pois vá – disse Tobin, colado à manga do paletó do homem. – Vá para casa e eu lá ficarei sentado na soleira da porta. Pois somente você pode desmanchar a maldição do homem negro e da mulher loura e da perda financeira de meus dólares.
         - Isso é alucinação! – bradou ele, virando-se para mim, lunático mais razoável. – Não seria melhor você levá-lo para casa?
         - Escute uma coisa – respondi-lhe. – Daniel Tobin é tão sensato quanto sempre foi. Talvez esteja  meio perturbado por ter bebido um pouco, mas não o suficiente para acabar com a razão, e não está fazendo outra coisa senão seguir à risca suas superstições e crenças. Vou contar o que se passou. -  E com isto contei os fatos referentes à cartomante e como o dedo da suspeita o apontou a Tobin como instrumento da sorte. – Agora compreenda minha posição nisso tudo. Sou amigo de Tobin, segundo minhas interpretações. É fácil ser amigo dos prósperos porque dá lucro; mas não é pesado ser amigo dos pobres, pois ganha-se gratidão. Porém é mais amizade ser verdadeiro amigo de um idiota nato. E é isto que estou fazendo, porque em minha opinião não há nenhuma sorte a ser lida na palma de minha mão que lá não esteja impressa pelo cabo da picareta. E além do mais você tem o nariz mais curvo de Nova York, e eu duvido que os adivinhos desta cidade possam tirar boa sorte de você. Mas as linhas de Danny apontaram para você e eu darei assistência até que ele veja que você não dá sorte.
         Depois disto o homem começou a rir. Encostou-se no canto e riu até não poder mais. Aí ele deu uma palmadinha em nossas costas e pegou-nos pelo braço:
         - O erro foi meu. Como poderia eu esperar que algo tão genial e maravilhoso viesse a mim na esquina da rua? Cheguei a pensar que não valia a pena. Ali em  frente há um café aconchegante e perfeito para entretenimento de idiossincrasias. Vamos até lá beber enquanto discutimos a invariabilidade do categórico.
         Assim dizendo, levou-nos para a sala dos fundos de um bar, pediu bebida e pagou. Olhou-nos como se fôssemos seus irmãos e pegamos charutos.
         - Vocês precisam saber – continuou o homem do destino – que na vida meu caminho é o literário. Vagueio pelas ruas à noite procurando idiossincrasias nas massas e a verdade nos céus. Quando vocês chegaram eu estava contemplando a rodovia suspensa em contraste com a Lua. O trânsito rápido é poesia e arte; a Lua é um corpo tedioso que se move pela rotina. Mas isso são opiniões pessoais, pois, no comércio da literatura, as condições são invertidas. Espero escrever um livro para explicar as estranhas coisas que descobri na vida.
         - E você vai me colocar no seu livro – disse Tobin, desgostoso – você vai me colocar no livro?
         - Não – respondeu o homem – porque as capas não comportam ainda tanto volume. O melhor que posso fazer é me deliciar com você, sozinho, pois ainda não chegou o tempo de se destruir as limitações da tipografia. Você seria fantástico tipografado. Somente eu devo beber esta taça de alegria. Obrigado, rapazes. Estou realmente agradecido.
         - Essa conversa toda – explodiu Tobin, bufando por entre os bigodes e socando a mesa – é um tersol para mim. O seu nariz torto me prometia boa sorte, mas você só fala. Você me parece, com este falatório de livro, o vento soprando por uma fenda. Agora penso que a palma da minha mão mentiu, exceto pelo homem negro, pela mulher loura e pelo...
         - Silêncio! Você se deixaria levar pela fisionomia? Meu nariz pode fazer aquilo que está dentro dos limites dele. Vamos encher os copos porque isto é bom para manter idiossincrasias quando úmido, sendo elas sujeitas a deteriorização numa atmosfera moral seca.
         Para mim o homem da literatura fazia bem, pois pagava alegremente tudo, já que o capital de Tobin e o meu se fora por profecia. Mas Tobin estava triste, e bebia quieto, com os olhos vermelhos.
         Às onze horas nos levantamos e fomos para a rua. O homem disse que tinha de ir para casa e convidou-nos para ir com ele. Chegamos a uma rua distante dois quarteirões, onde se via uma fileira de casas de tijolos com altos degraus e cercas. O homem parou em frente de uma delas e olhou para uma das janelas do alto que estava apagada.
         - É minha humilde morada – disse ele – e vejo que minha mulher já está dormindo. Portanto, me aventurarei um pouco no caminho da hospitalidade. Gostaria que vocês entrassem na sala de baixo onde jantamos habitualmente e tomassem um refrigerante. Deve haver galinha fria, queijo e cerveja. Vocês serão bem-vindos se entrarem para comer, já que estou em débito com vocês.
         Nossos apetites e consciências estavam à altura da proposta, o que pesava muito nas superstições de Danny pensar que umas bebidas e uma refeição fria representavam a boa sorte prometida pela palma de sua mão.

         - Desçam os degraus – disse o homem – que vou pela porta da frente abrir a outra. Vou pedir à nova cozinheira para fazer café antes de vocês se irem. Kathie Mahorner faz um excelente café para uma garota do interior que só chegou há três meses. Entrem, e eu a mandarei descer.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

A Cartomante - O. Henry (Parte 1)

         Tobin e eu fomos um dia ao parque de diversões de Coney porque dispúnhamos de quatro dólares e porque Tobin precisava se distrair. Porque havia Katie Mahorner, sua namorada, do Condado de Sligo, desaparecida desde que partiu para a América três meses antes, com duzentos dólares, suas únicas economias, e cem dólares da venda das propriedades de Tobin, uma linda choupana e um porco. E desde que Tobin recebera a carta dizendo que ela viria a seu encontro, nunca mais  teve notícias de Katie. Ele colocou anúncios nos jornais, mas nada se soube da garota.
         Portanto, fomos ao parque com a ideia de que uma volta pelas atrações e o cheiro das pipocas lhe devolveriam a alegria. Mas Tobin era cabeçudo e a tristeza morava nele. Rilhou os dentes para as diversões, amaldiçoou o filme e estava pronto a bater nos pequenos homens que surgiam.
         Assim, levei-o para outro lado onde as atrações eram menos violentas. Em frente a uma pequena barraca, Tobin hesitou, seus olhos mostrando uma expressão mais humana.
         - Aqui – disse ele – vou me divertir. Quero que a maravilhosa cartomante do Nilo leia o futuro em minha mão.
         Ele acreditava piamente no sobrenatural. Tinha firmes convicções a respeito de gatos pretos, números e boletins meteorológicos.
         Entrou fascinado na tenda vermelha com fotografias de mãos onde as linhas se cruzavam como as de uma estrada de ferro. Na tabuleta, em cima da porta, estava escrito Madame Zozo – a Cartomante Egípcia. Dentro estava uma mulher gorda, vestida com uma jardineira vermelha estampada com palavras e animais. Tobin deu-lhe dez centavos e estendeu a mão. Ela pegou a mão, semelhante a um casco de cavalo, e a examinou.
         - Homem – disse Mme. Zozo – a linha do destino mostra...
         - Diga tudo – interrompeu Tobin. – Certamente não é bonito, mas está escrito na mão.
         - A linha mostra – continuou Madame – que até agora você teve muitos azares. E tem mais a vir. O monte de Vênus... ou será um calo?... mostra que você esteve amando! Houve problemas em sua vida por causa deste amor.
         - Está falando de Katie – sussurrou para mim.
         - Vejo – disse a cartomante – muito sofrimento e atribulação com a pessoa que você não consegue esquecer. Vejo as linhas da designação apontarem para a letra K e M no nome dela.
         - Meu Deus! – exclamou ele – você ouviu isto?
         - Cuidado com um homem negro e uma mulher branca, pois ambos lhe trarão problemas. Brevemente você fará uma viagem por mar e perderá o dinheiro. Vejo uma linha que traz sorte. Vai aparecer um homem que lhe dará riqueza. Você o reconhecerá quando vir seu nariz curvo.
         - E qual o seu nome? – perguntou Tobin. – Será útil para agradecer-lhe quando ele me der sorte.
         - Seu nome – disse ela, olhando pensativa – não está nas linhas, mas indica ser longo e com a letra “o”. Mais nada posso dizer. Boa noite. Não feche a porta.
         - É maravilhoso como sabe as coisas – comentou Tobin, enquanto caminhávamos para o cais.
         Quando saíamos pelos portões do parque, um negro encostou seu charuto aceso na orelha de Tobin e veio barulho. Tobin o agarrou pelo pescoço, as mulheres gritaram, e com presença de espírito tirei-o da embrulhada antes da polícia chegar. Tobin está sempre de mau humor quando se diverte.
         Quando voltávamos no barco, Tobin começou a lamentar-se, e sentindo vontade de tirar umas baforadas colocou a mão no bolso; não encontrou nada, nem dinheiro. Alguém o havia roubado durante a confusão. Portanto, sentamos nos bancos, a escutar os gringos a cantar no convés. Tobin estava mais arrasado e menos à vontade devido aos infortúnios do que quando começamos o passeio.
         Numa cadeira, contra a balaustrada, convenientemente vestida, estava uma mulher loura. Quando passou, Tobin pisou-lhe o pé sem querer e, como era educado com as mulheres quando bêbado, tentou levantar o chapéu para pedir desculpas. Mas o chapéu rolou pelo convés e caiu no mar.
         Tobin voltou e sentou-se, e eu comecei a me preocupar  com ele, pois as adversidades começavam a ser muito fortes e freqüentes. Estava tão azarado que podia bater no homem mais bem vestido que visse e tomar o comando do barco.
         Neste momento Tobin agarrou meu braço e disse, exaltado:
         - Jawn, você sabe o que estamos fazendo agora? Estamos fazendo uma viagem por mar.
         - Contenha-se – falei. – O barco vai atracar daqui a dez minutos.
         - Olhe a bela mulher branca no barco. E você esqueceu do negro que queimou minha orelha? E o dinheiro que se foi, um dólar e sessenta e cinco centavos?
         Pensei que ele enumerava suas catástrofes para justificar uma possível violência, e tentei fazê-lo compreender que tais coisas aconteciam normalmente.
         - Mas escute – disse Tobin. – Você não tem ouvidos para as profecias ou milagres dos videntes. O que foi que a cartomante leu em minha mão? Está se tornando verdade diante de meus olhos. Ela disse: “Tenha cuidado com um homem negro e uma mulher branca. Eles lhes trarão problemas”. Você já esqueceu do homem negro que já deu trabalho há pouco? Você pode me mostrar uma mulher mais branca que a loura que fez meu chapéu cair na água? E onde está o meu dinheiro? Eu o tinha quando deixamos a barraca de tiro ao alvo.
         O modo como Tobin colocou as coisas parecia corroborar a arte da clarividência, se bem que, para mim, tais acidentes poderiam ocorrer a qualquer um em Coney, sem a intervenção do além.
         Tobin levantou-se e começou a andar pelo tombadilho, olhando os passageiros com seus pequeninos olhos irados. Perguntei-lhe o porque daqueles movimentos. Nunca se sabe o que Tobin tem em mente até ele falar.
         - Você deveria saber – disse ele. – Estou procurando a salvação que a cartomante leu na minha mão. Estou procurando pelo homem de nariz curvo que vai me trazer boa sorte. É o que nos salvará, Jawn.
         Este era o barco das nove e meia, desembarcamos e andamos para a cidade pela Rua Vinte e Dois, sem chapéu. No canto de uma rua, debaixo de um bico de gás e olhando para a Lua, estava um homem. Era alto, decentemente vestido, com um charuto entre os dentes, e vi que seu nariz tinha duas corcovas, igual ao zigue-zague de uma serpente. Tobin o viu ao mesmo tempo, e eu o ouvi respirar acelerado como um cavalo quando se tira a sela. Ele caminhou direto para o homem e eu o segui.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

“Um Boêmio no Céu” - Catullo da Paixão Cearense

      “S. PEDRO
      (pensando)
      Não é, como eu pensava, um dementado!
      Desde o princípio que eu desconfiei!
      (alto)
      Eu não me lembro de ter vindo aqui
      um’alma, em desmantelo, como a tua!
      Eu quero ver somente onde é que chega
      o teu filosofismo!... Continua.
      Boêmio
      Agora, eu vou expor a diferença
      entre os dois corações: - o feminino,
      e o mais forte, o valente, o masculino.
      A diferença é grande! É transcendente!
      S. PEDRO
      Ouvi-lo-ei, se expuser, imparcialmente.
      Boêmio
      Sem que o vigor do amor elas lhe domem,
      um homem pode amar a mil mulheres,
      mas a mulher só pode amar um homem.
      O homem tem um coração tão grande,
      que é capaz de conter as águas todas,
      que o mar por toda a vastidão expande.
      O da mulher, porém, é tão pequeno,
      tão mimoso, tão leve e tão escasso,
      que pode enchê-lo um pingo de sereno.
      No coração do homem tudo medra!
      O mais mole é mais duro que uma pedra!
      O da mulher, Senhor, é tão sensível,
      que não pode sofrer nenhum abalo!
      É tão sutil, tão leve e tão mimoso,
      que um suspiro da flor pode quebrá-lo.”

(“Um Boêmio no Céu”, Catullo da Paixão Cearense, Livraria Império Editora, Rio de Janeiro, 1966, 8ª Edição, Páginas 40-41.)

domingo, 25 de outubro de 2015

"Lolita" - Vladimir Nabokov

A Defesa de um Pedófilo - 1

      “Senhoras e senhores membros do júri, quase todos os pervertidos sexuais que anseiam por uma latejante relação com alguma menininha (sem dúvida pontuada de ternos gemidos, mas não chegando necessariamente ao coito) são seres inofensivos, inadequados, passivos e tímidos, que apenas pedem à comunidade que lhes permita entregar-se a seu comportamento supostamente aberrante mas praticamente inócuo, que lhes deixe executar seus pequenos, úmidos e sombrios atos privados de desvio sexual sem que a polícia e a sociedade os persigam. Não somos tarados! Não cometemos estupros, como o fazem muitos bravos guerreiros! Somos seres infelizes, meigos, de olhar canino, suficientemente bem integrados para saber controlar nossos impulsos na presença de adultos, mas prontos a trocar anos e anos de vida pela oportunidade de acariciar uma ninfeta.” (Páginas 89-90.)


A Defesa de um Pedófilo - 2


      “Ah, leitor, não me olhe com esse ar zangado, de modo algum quero dar a impressão de que não fui feliz. O leitor precisa entender que, como senhor e servo de uma ninfeta, o viajante encantado se encontra, por assim dizer, além da felicidade. Pois que não há na terra prazer que se compare ao de acarinhar uma ninfeta. É hors-concours esse prazer, pertence a outra classe, a outra esfera de sensibilidade. Apesar de nossas brigas, apesar de sua má-criação, apesar das exigências e caretas que ela fazia, sem falar na vulgaridade, no perigo e na horrível desesperança de tudo aquilo, eu ainda residia no paraíso de minha escolha, um paraíso cujo céu tinha a cor das chamas do inferno, mas ainda assim um paraíso.” (Página 169)


A Defesa de um Pedófilo – 3

      “Havia naquele ígneo fantasma uma perfeição que também fazia perfeita minha selvagem volúpia, exatamente porque a visão estava fora de alcance, sem qualquer possibilidade de ser atingida e corrompida pela consciência de um tabu inarredável: na verdade, a atração que a imaturidade exerce sobre mim talvez resida não tanto na limpidez da beleza pura e proibida de uma menina encantada, como na segurança de uma situação em que infinitas perfeições preenchem o abismo entre o pouco que é dado e o muito que é prometido – os picos cinzentos e rosados do inatingível.” (Página 267)


      (“Lolita”, Vladimir Nabokov, Biblioteca O Globo, Rio de Janeiro: O Globo, São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.)

sábado, 24 de outubro de 2015

Mãos - Augusto dos Anjos

Mãos

      Há mãos que fazem medo
Feias agregações pentagonais,
Umas, em sangue, a delinquentes natos,
Assinalados pelo mancinismo,
      Pertencentes talvez...
Outras, negras, a farpas de rochedo
      Completamente iguais...
Mãos de linhas análogas e anfratos
Que a Natureza onicriadora fez
Em contraposição e antagonismo
Às da estrela, às da neve, ás dos cristais.

Mãos que adquiriram olhos, pituitárias
Olfativas, tentáculos sutis,
E à noite, vão cheirar, quebrando portas
O azul gasofiláceo silencioso
      Dos tálamos cristãos.
Mãos adúlteras, mãos mais sanguinárias
E estupradoras do que os bisturis
Cortando a carne em flor das crianças mortas.
      Monstruosíssimas mãos,
Que apalpam e olham com lascívia e gozo
A pureza dos corpos infantis.

(“Eu & Outras Poesias”, Augusto dos Anjos, Editora Civilização Brasileira S.A., Rio de Janeiro, Livraria Itatiaia Ltda., Belo Horizonte, 2º Volume, 1982, Página 60.)

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

"Os Cantos de Maldoror" - Lautréamont

      ”Ó pederastas incompreensíveis, não serei eu quem irá lançar injúrias contra vossa grande degradação; não serei eu quem irá atirar o desprezo contra vosso ânus infundibuliforme. Basta que as doenças vergonhosas, e quase incuráveis, que vos assediam, tragam consigo seu infalível castigo. Legisladores de instituições estúpidas, inventores de uma moral estreita, afastai-vos de mim, pois sou uma alma imparcial. E vós, jovens adolescentes, ou melhor, mocinhas, explicai-me como e por que (porém mantende-vos a uma distância conveniente, pois eu também não sei resistir a minhas paixões) a vingança germinou em vossos corações, para ter feito aderir ao flanco da humanidade tamanha coroa de feridas. Vós a fazeis ruborizar-se por seus filhos, por vossa conduta (que, de minha parte, venero!); vossa prostituição, oferecendo-se ao primeiro que vier, põe à prova a lógica dos mais profundos pensadores, enquanto vossa sensibilidade exagerada ultrapassa o limite do espanto da própria mulher. Sois de uma natureza mais ou menos terrestre que a de vossos semelhantes? Possuís um sexto sentido que nos falta? Não mintais, e dizei o que pensais. Não é um interrogatório, isto que vos faço: pois, desde que frequento como observador a sublimidade das vossas inteligências grandiosas, sei até onde devo ir. Sede abençoados por minha mão esquerda, sede santificados pela minha mão direita, anjos protegidos por meu amor universal. Beijo vosso rosto, beijo vosso peito, beijo com meus lábios suaves as diversas partes de vosso corpo harmonioso e perfumado. Por que não dissestes logo quem éreis, cristalizações de uma beleza moral superior? Foi preciso que eu adivinhasse sozinho os inumeráveis tesouros de ternura e castidade que ocultavam as batidas de vossos corações oprimidos. Peito ornado de grinaldas de rosa e vetiver. Foi preciso que eu abrisse vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias de vosso pudor. Mas (coisa importante para ter em mente) não esquecei de, todo dia, lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados. Ó! se em lugar de ser um inferno, o mundo não fosse mais que um imenso ânus celeste, vede o gesto que faço com meu baixo ventre: sim, teria enfiado minha vara através do seu esfíncter sangrento, destroçando, com meus movimentos impetuosos, as próprias paredes do seu recinto! A desgraça não teria soprado, então, dunas inteiras de areia movediça nos meus olhos cegos; teria descoberto o lugar subterrâneo onde jaz a verdade adormecida, e os rios do meu esperma viscoso teriam assim encontrado um oceano onde precipitar-se. Mas por que me surpreendo a lamentar-me por um estado de coisas imaginário, que nunca receberá a recompensa da sua realização ulterior? Não vale a pena construir fugazes hipóteses. Enquanto isso, que venha a mim aquele que arde no desejo de compartilhar meu leito; mas imponho uma condição rigorosa a minha hospitalidade: é preciso que não tenha mais de quinze anos. Que ele, de sua parte, não acredite que eu tenha trinta: que diferença faz? A idade não diminui a intensidade dos sentimentos, longe disso; e, embora meus cabelos tenham se tornado brancos como a neve, não foi por causa da velhice; foi, ao contrário, pelo motivo que sabeis. Eu não gosto das mulheres! Nem mesmo dos hermafroditas! Preciso de seres semelhantes a mim, em cujas testas a nobreza humana esteja marcada em caracteres mais nítidos e indeléveis! Estais seguros de que essas, que usam longos cabelos, sejam da mesma natureza que eu? Não acredito, e não renegarei minha opinião. Uma saliva salobra escorre da minha boca, não sei por quê. Quem gostaria de chupá-la, para que eu me livre dela? Ela sobe... ela sobe sem parar! Sei o que é. Reparei que, ao beber de sua garganta o sangue dos que se deitam a meu lado (erradamente acreditam que eu seja um vampiro, pois assim são chamados os mortos que saem de seus túmulos; eu estou vivo, ora essa) devolvo no dia seguinte uma parte pela boca: eis a explicação da saliva infecta. O que quereis que eu faça, se os órgãos, debilitados pelo vício, se recusam a cumprir as funções da nutrição? Mas não revelai minhas confidências a ninguém. Não é por mim que o digo; é por vós e pelos outros, a fim de que o prestígio do segredo retenha nos limites do dever e da virtude aqueles que, magnetizados pela eletricidade do desconhecido, tentassem imitar-me. Tende a bondade de olhar para minha boca (por ora, não tenho tempo para empregar uma fórmula mais longa de cortesia); ela vos choca à primeira vista pela aparência da sua estrutura, sem introduzir a serpente em vossas comparações; isso, porque contraio seu tecido até a derradeira redução, para fazer crer que possuo um caráter frio. Não ignorais que ele é diametralmente o oposto. Que pena eu não poder olhar, através dessas páginas seráficas, a cara de quem me lê! Se não tiver ultrapassado a puberdade, que chegue perto. Aperta-me contra ti e não temas machucar-me; estreitemos progressivamente os ligamentos dos nossos músculos. Mais. Sinto que é inútil insistir; a opacidade, notável por mais de um motivo, desta folha de papel, é um empecilho dos mais consideráveis à operação da nossa completa junção. Eu sempre experimentei uma atração infame pela juventude pálida dos colégios, e pelas crianças estioladas das fábricas!”

(“Obra Completa – Lautréamont”, Editora Iluminuras Ltda., São Paulo, 1997, in “Os Cantos de Maldoror”, Canto V, Estrofe 5, Páginas 208 a 210.)

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

À Meretriz - Patativa do Assaré

      À MERETRIZ

Se alguém te chama de perdida e louca
Não acredites, pois não é verdade,
Há quem procure cheio de ansiedade
A graça e o riso que tu tens na boca.

Foste menina, já usaste touca,
Foste donzela, tinhas virgindade,
Tudo é fugaz e tudo é brevidade
De qualquer forma, a nossa vida é pouca.

Nunca lamentes teu viver de puta,
Entre os pomares tu também és fruta,
Alguém te estima e com fervor te quer.

No chão, na cama ou dentro de uma rede
Tu és a fonte de matar a sede
Do desgraçado que não tem mulher.

(“Patativa do Assaré – Melhores Poemas”, seleção de Cláudio Portella, Global Editora e Distribuidora Ltda., São Paulo 2006, Página 176.)

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

“Um Boêmio no Céu” - Catullo da Paixão Cearense

      “Com permissão das vossas barbas brancas
      e da vossa careca macilenta,
      milagrenta, litúrgica e beata,
      eu vos direi, Senhor, que entre as mil virgens
      não há mulher mais linda e suculenta,
      que tenha o fogo fresco da pimenta,
      e que seja mais chic e democrata,
      do que esse caruru vertiginoso,
      do que esse vatapá turbulentoso,
      esse quitute mágico e dengoso,
      que Deus humanizou numa mulata!”

(“Um Boêmio no Céu”, Catullo da Paixão Cearense, Livraria Império Editora, Rio de Janeiro, 1966, 8ª Edição, Página 45.)

terça-feira, 20 de outubro de 2015

"O Perfume" - Patrick Süskind

      “As autoridades que se encontravam pouco adiante entregaram-se ao seu desvario de um modo bem pouco discreto. Cada qual deixou caminho livre ao impulso do seu coração. Houve damas que, olhando para Grenouille, batiam os punhos no ventre e suspiravam de prazer; e outras que, de tanto desejarem e quererem o maravilhoso jovem – pois assim ele lhes parecia –, caíam desmaiadas sem soltar um pio. Houve cavalheiros que num repente pulavam de suas cadeiras e de novo se sentavam para novamente saltarem, suspirando enormemente, pondo os punhos em torno do cabo das adagas como se quisessem puxá-las e, quando já estavam puxando, empurravam de volta o aço, de tal modo que das bainhas só se ouvia o matraquear e estalar; e outros que, calados, apenas erguiam os olhos para o céu e juntavam as mãos em oração; o monsenhor, o bispo, que, como se estivesse se sentindo mal, curvava a parte superior do corpo para a frente e batia a testa sobre o joelho, até que o solidéu verde rolou-lhe da cabeça; e, no entanto, ele nem sequer estava se sentindo mal, mas estava gozando agora pela primeira vez em sua vida um êxtase religioso, pois um milagre acontecera diante dos olhos de todos, o senhor se interpusera pessoalmente aos braços do carrasco, ao revelar como anjo aquele que diante do mundo parecia um assassino – oh, que semelhante coisa ainda acontecesse no século XVIII! Como era grande o Senhor! E como era pequeno e ínfimo ele próprio, tendo proferido uma maldição e um esconjuro sem neles acreditar, e só para acalmar o povo! Oh, que ousadia, oh, que falta de fé! E agora o Senhor fazia um milagre! Oh, que maravilhosa humilhação, que doce rebaixamento, que graça poder ser, enquanto bispo, assim punido por Deus.
      Do outro lado da barricada, o povo entregava-se, entrementes, cada vez mais desavergonhadamente à incrível embriaguez dos sentidos que a aparição de Grenouille desencadeara. Quem no começo, ao olhá-lo, sentia apenas compaixão e simpatia estava agora pleno de desejo nu e cru; quem primeiro admirara e desejara era levado ao êxtase. Todos consideravam o homem do jaquetão azul o ser mais bonito, atraente e perfeito que se poderia imaginar: às freiras apareceu como a terra da salvação em pessoa; aos adeptos de Satã, como luminoso senhor das trevas; aos esclarecidos, como ser supremo; às mocinhas, como um príncipe encantado; aos homens, como uma cópia ideal de si próprios. E todos se sentiam por ele atingidos e dominados em seu ponto mais sensível: ele os atingira em seu centro erótico. Era como se o homem possuísse dez mil mãos invisíveis e como se ele tivesse posto a mão sobre o sexo de cada uma das dez mil pessoas que o rodeavam, acariciando-o de tal modo que cada um, homem ou mulher, mais o desejava em suas mais secretas fantasias.
      A consequência foi que a planejada execução de um dos criminosos mais merecedores da abominação em sua época acabou redundando na maior bacanal que o mundo havia visto desde o segundo século antes de Cristo: pudendas senhoras rasgavam as blusas, soltavam com histéricos gritos os seus seios, jogavam-se no chão com as saias puxadas para cima. Homens tropeçavam com olhares errantes pelo campo da lasciva carne exibida, puxavam, com os dedos a tremer, para fora das calças os seus membros endurecidos, duros como se estivessem sido congelados por uma geada invisível, caíam chiando, gemendo em qualquer lugar, copulavam nas mais impossíveis posições e combinações, velho com virgem, jornaleiro com mulher de advogado, aprendiz com freira, jesuíta com mulher de maçom, tudo misturado, conforme o acaso dispusesse. O ar estava pesado com o doce cheiro do suor do desejo e barulhento com a gritaria, com os grunhidos e gemidos dos dez mil animais humanos. Era infernal.”

(“O Perfume – História de um Assassino”, Patrick Süskind, Editora Record, Rio de Janeiro, Páginas 246-247.)

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

“A Lua Vem da Ásia” - Campos de Carvalho

      “CAPÍTULO NEGRO
      Tenho sido injusto para com a Noite. Amo a Noite e vivo a difamá-la, chegando mesmo ao crime de tomar narcótico para combater a insônia – esse meu único bem. A Noite é a túnica que me assenta como uma luva, como o sudário a um cadáver, ou – já que estou mesmo no terreno das comparações – como óculos escuros num cego de nascença, em pleno meio-dia.
      Só não amo, na Noite, as baratas e os escorpiões, estes felizmente mais raros de encontrar do que os fantasmas ou os assassinos embuçados nas esquinas sem luz, a desoras. As baratas, temo-as como aos seres fantásticos criados pela imaginação de Jerônimo Bosch, e preferiria ter que entrar na jaula dos leões a ter por um instante na mão um desses habitantes dos esgotos e das sarjetas, de antenas vibráteis e patas de caranguejo. Vou mesmo ao extremo de preferir uma sopa de escorpiões vivos ao simples contato de uma barata morta e já em parte devorada pelas formigas, de patas para o ar como uma prostituta. O meu inferno será por certo todo coalhado de baratas aos milhares e aos milhões, todas vivas e ágeis dentro das trevas eternas e úmidas – a menos que falte ao meu Punidor a imaginação necessária para punir-me até a loucura, ou não tenha ele mesmo maldade bastante para impor um tal castigo à minha humana inocência.
      Mas a Noite, excluídas as baratas e a ameaça dos escorpiões, é a minha musa e o meu túmulo bem-amado, aquele a que aspiro com todas as forças da minha alma, como deve aspirar ao seu todo ser lúcido e tocado de inviolável pureza. E aqui lhe rendo esta homenagem tardia mas veemente, no pleno silêncio deste quarto frio e povoado de trevas, tendo por quadro-negro esta parede onde a custo faço deslizar a ponta do meu lápis, já que a lua hoje não veio da Ásia e não consigo sequer enxergar o meu triste corpo ajoelhado na cama.
      ...Non dormit diabolus.”

(“A Lua Vem da Ásia”, Campos de Carvalho, Editora Codecri, 3ª Edição, Rio de Janeiro, 1977, Edição do Jornal Pasquim, Páginas 79-80.)

domingo, 18 de outubro de 2015

"Criaturas do Ar - Fernando Savater

      “Monólogo quinto – Fala DRÁCULA
      Ninguém conhece como o vampiro a alegria da noite. O dia é uma miragem, uma perturbação atmosférica: a noite é um complexo e rico estado de ânimo. Saboreio até ao âmago, até ao estremecido limite, o júbilo secreto da noite. Já alguma vez pensaram que de dia só se veem sombras, vultos que interceptam a luz com a sua opacidade, enquanto de noite só se veem fulgores, lampejos que desmentem as trevas? O objetivo do dia é o escuro, o opaco, enquanto a noite só sabe de resplendores. Mas sabe também que é a escuridão o que realmente permite que nos fixemos na luz e não nos vultos por ela iluminados, do mesmo modo que eu sei que é a morte perenemente parecida o que nos prepara para nos deixarmos fascinar plenamente pela vida. Para viver algo mais intenso, mais apurado, mais saboroso do que a discreta modorra de temores e obrigações, habitualmente chamada vida, é imprescindível estar morto e bem morto. A morte é o único interesse da vida, o único condimento que tempera a sua sensaboria. Mas normalmente procuram-nos com excessiva generosidade: os homens vivem tão obcecados pela riqueza pavorosa da morte que mal têm tempo de reparar na vida, tal como o excesso de luz diurna os cega em relação a tudo o que não sejam sombras e manchas. Passam o tempo – matam-no, mais exatamente – a tentar afastar a morte, evitando-a, combatendo-a ou infligindo-a aos outros, a ver morrer os seus, compadecendo-se deles, invejando-os, calculando o tempo que lhes resta para ficarem completamente sem tempo. Não é raro que só imaginem a verdadeira vida depois da morte, seja ela gozada pessoalmente num além-túmulo ou seja ela desfrutada por bem-aventuradas gerações futuras. Mas, como o céu é incrível e o futuro incerto, a vida adiada não chega a ter verossimilhança. E, apesar disso, acertam pelo menos numa coisa, em que para viver se tem de estar convenientemente morto...
      Tenho satisfatoriamente resolvido o problema que os aflige e que também a mim me afligiu um dia. Consegui que a vida seja o meu único objetivo, a minha única obsessão: a mim, a vida acicata-me e sacia-me tal como a eles a morte. Mas não a vida laboriosa e apaziguada do harmonioso futuro, nem as harpas e nuvens de insossos paraísos dogmáticos: não, a minha vida, a minha maravilhosa e plena vida, é a que prometem os seios nus das donzelas, a que vibra de risco e aventura, a que se afirma no poder ou no terror, a que se estriba no cálido sangue. Vida presente aqui e agora, para sempre, sem limites. Tive de pagar por ela, porque tudo tem um preço, mas não fui defraudado por este investimento. Estou morto, claro: e que outro meio há para gozar plenamente a vida como algo positivo e não como um atabalhoado sonho que se nos escapa? Vista do lado da morte, a vida apresenta toda a sua riqueza maravilhosa, a sutileza desconcertante das suas experiências, os proibidos deleites que o temor da morte recusa aos mortais. Eu cavalgo o vento, sou senhor dos lobos e das tempestades, alimento com as mulheres mais belas paixões com que a luz do dia nem sequer pode sonhar! Certa noite, aquele inofensivo idiota que alojei no meu castelo transilvano viu-me descer de cabeça para baixo, como uma monstruosa aranha, pela inacessível parede do meu torreão... É o emblema do meu destino de que mais gosto. Recordo com nostalgia e um certo desagrado a minha viagem à puritana Inglaterra: foram aquelas absurdas personagens, o estúpido Jonathan Harker, o sombrio e místico Van Helsing, as enjoadas Lucy Westenra e Mina Murray, que criaram a fábula hiperbólica da minha maldade infernal. Na Transilvânia, um povo sábio e, portanto, fatalista sabe que o mal é um dos rostos inevitáveis da grandeza; mas os ingleses ficam boquiabertos perante ele como se fosse um escândalo ou mesmo uma descortesia. Pelos vistos esperavam que um Imortal acatasse discretamente os preceitos da moral vitoriana... quando nem mesmo as figuras autenticamente nobres dessa época os respeitavam! Nunca entenderam em que é que residia a minha peculiaridade: desde aquele brumoso dia em que cheguei ao porto de Whitby no meu barco tripulado por cadáveres, começaram a inventar-me uma personalidade que tinha um pouco de Jack, o Estripador, e um pouco de Oscar Wilde, uma espécie de Aleister Crowley fantasmagórico. Os códigos deles estão bem para essa temerosa luz em que se veem obrigados a viver os condenados à morte. Mas na minha treva deslumbrante não há lugar senão para a paixão. O dia é ataúde, mas a noite traz o desejo e a aurora oferecerá sangue. Só eu, o morto, o imortal, poderia contar-lhes que entrega deliciosa é a vida. Só eu, o rei da noite.”

(Do livro “Criaturas do Ar”, de Fernando Savater, Edição JORNALIVROS, do jornal “O Globo”, de 26 de abril de 1994.)

sábado, 17 de outubro de 2015

"Tartufo" - Molière

      Porque quaisquer de nós, ao menos um segundo,
      Fomos como Tartufo atrás dos bens do mundo,
      Desejando demais, fingindo não querer,
      Rezando sem ter fé, receosos de crer,
      Amando sem amor, chorando sem chorar,
      Sorrindo sem sorrir, entregando sem dar,
      Maldizendo a justiça, adorando as vinganças,
      Segredando rancor, esmagando esperanças;
      Medrosos de estender a mão para um leproso,
      Mas dele recebendo um pagamento odioso;
      Capazes de pregar virtude e castidade,
      Incapazes, porém, de domar a vontade;
      Ansiosos de olhar paisagens sutis,
      Mas evitando ver um amigo infeliz;
      Aplaudindo o cantor que tenha a bolsa rica,
      Mas recusando ouvir uma voz que suplica;
      Sonhando uma partilha igual para a riqueza,
      Contanto que ninguém se assente à nossa mesa;
      Fingindo desejar um mundo mais perfeito,
      Mas querendo implantar por lema o preconceito;
      Aconselhando o estudo e não sabendo ler,
      Pretendendo ganhar e sem saber perder,
      Desejando auferir bons lucros e a falar
      Que é no céu que a pobreza encontra o seu lugar.
      O retrato é fiel, por isso traz desgosto
      A quem reconhecer aqui seu próprio rosto...”

(“Tartufo – O Doente Imaginário”, Molière, tradução e adaptação de Guilherme Figueiredo, Editora Civilização Brasileira S. A., Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1975, Prólogo de “Tartufo”, Páginas 2 e 3.)

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O Motorista do 8-100 - Rubem braga

      “O motorista do 8-100
      Tem o Correio da Manhã um repórter que faz, todo domingo, uma página inteira de tristezas. Vive montado em um velho carro, a que chama de ‘Gerico’; a palavra, hoje, parece que se escreve com J; de qualquer jeito (que sempre achei mais jeitoso quando se escrevia com G) é um carro paciente e rústico, duro e invencível como um velho jumento. E tinha de sê-lo; pois sua missão é ir ver ruas esburacadas e outras misérias assim.
      Pois esse colega foi convidado, outro dia, a ver uma coisa bela. Que estivesse pela manhã bem cedo junto ao Edifício Brasília (o último da Avenida Rio Branco, perto do Obelisco) para assistir à coleta de lixo. Foi. Viu chegar o caminhão 8-100 da Limpeza Urbana, e saltarem os ajudantes, que se puseram a carregar e despejar as latas de lixo. Enquanto isso, que fazia o motorista? O mesmo de toda manhã. Pegava um espanador e um pedaço de flanela, e fazia o seu carro ficar rebrilhando de limpeza. Esse motorista é ‘um senhor já, estatura mediana, cheio de corpo, claudicando da perna direita; não ficamos sabendo seu nome’.
      Não poupa o bom repórter elogios a esse humilde servidor municipal. E sua nota feita com certa emoção e muita justeza mostra que ele não apenas sabe reportar as coisas da rua como também as coisas da alma.
      Cada um de nós tem, na memória da vida que vai sobrando, seu caminhão de lixo que só um dia despejaremos na escuridão da morte. Grande parte do que vamos coletando pelas ruas tão desiguais da existência é apenas lixo; dentro dele é que levamos a joia de uma palavra preciosa, o diamante de um gesto puro.
      É boa a lição que nos dá o velho motorista manco; e há, nessa lição, um alto e silencioso protesto. Não conheço esse homem, nem sei que infância teve, que sonhos lhe encheram a cabeça de rapaz. Talvez na adolescência ele sucumbisse a uma tristeza sem remédio se uma cigana cruel lhe mostrasse um retrato de sua velhice: gordo, manco, a parar de porta em porta um caminhão de lixo. Talvez ele estremecesse da mais alegre esperança se uma cigana generosa e imprecisa lhe contasse: ‘Vejo-o guiando um grande carro na Avenida Rio Branco; para diante de um edifício de luxo; o carro é novo, muito polido, reluzente...’
      É costume dizer que a esperança é a última que morre. Nisto está uma das crueldades da vida; a esperança sobrevive à custa de mutilações. Vai minguando e secando devagar, se despedindo dos pedaços de si mesma, se apequenando e empobrecendo, e no fim é tão mesquinha e despojada que se reduz ao mais elementar instinto de sobrevivência. O homem se revolta jogando sua esperança para além da barreira escura da morte, no reino luminoso que uma crença lhe promete, ou enfrenta, calado e só, a ruína de si mesmo, até o minuto em que deixa de esperar mais um instante de vida e espera como o bem supremo o sossego da morte. Depois de certas agonias a feição do morto parece dizer: ‘enfim veio; enfim, desta vez não me enganaram’.
      Esse motorista, que limpa seu caminhão, não é um conformado, é o herói silencioso que lança um protesto superior. A vida o obrigou a catar lixo e imundície; ele aceita a sua missão, mas a supera com esse protesto de beleza e de dignidade. Muitos recebem com a mão suja os bens mais excitantes e tentadores da vida; e as flores que vão colhendo no jardim de uma existência fácil logo têm, presas em seus dedos frios, uma sutil tristeza e corrupção, que as desmerece e avilta. O motorista do caminhão 8-100 parece dizer aos homens da cidade: ‘O lixo é vosso: meus são esses metais que brilham, meus são estes vidros que esplendem, minha é esta consciência tranquila’.
      Março, 1949

      (“200 Crônicas Escolhidas”, Rubem Braga, Círculo do Livro S. A., São Paulo, Páginas 149 a 151.)

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

A matemática da feiticeira em "Fausto" de Goethe

      “A FEITICEIRA
      (Com grande ênfase, começa a declamar do livro.)
      Deves entender!
      De um faz dez
      E deixa dois irem
      E iguala três,
      Assim rico estás.
      Perderás os quatro!
      Tira cinco e seis,
      Assim diz a bruxa
      Faz sete e faz oito,
      Está tudo acabado;
      E nove são um
      E dez são nenhum.
      Tal é das bruxas
      A tabuada.

      Zombaria com a Santíssima Trindade. Cfr um trecho das Conversações com Eckermann, de 1824. Absurdo de profundo sentido. Goethe talvez tenha sido estimulado por versos do livrinho Alchimistisches Siebengestirn, aparecido em Francfurt em 1756. (Nota dos tradutores.)”

(“Fausto”, Johann Wolfgang Goethe, Editora Letras e Artes, Rio de Janeiro, 1964, tradução de Antenor Nascentes e José Júlio F. de Souza, página 94.)

      “A BRUXA
      (começa a declamar do livro, com grande ênfase)
      Vê, por quem és!
      Do um, faze dez,
      No dois e três
      Um traço indicas
      E rico ficas.
      Põe fora o quatro!
      Com cinco e seis,
      Diz a bruxa, fareis
      Sete e oito, e a conta
      Quase está pronta:
      E o nove é um,
      Mas o dez é nenhum.
      Das bruxas isto é a tabuada comum!”

      (“Fausto”, Goethe, tradução de Jenny Klabin Segall, Villa Rica Editoras Reunidas Limitada, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, 3ª Edição, 1991, Grandes Obras da Cultura Universal, Volume 3, Página 121.)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Claro e Escuro - Cruz e Sousa

Claro e Escuro

Cruz e Sousa

Dentro — os cristais dos tempos fulgurantes,
Músicas, pompas, fartos esplendores,
Luzes, radiando em prismas multicores,
Jarras formosas, lustres coruscantes,

Púrpuras ricas, galas flamejantes,
Cintilações e cânticos e flores;
Promiscuamente férvidos odores,
Mórbidos, quentes, finos, penetrantes.

Por entre o incenso, em límpida cascata,
Dos siderais turíbulos de prata,
Das sedas raras das mulheres nobres;

Clara explosão fantástica de aurora,
Deslumbramentos, nos altares! -- Fora,
Uma falange intérmina de pobres.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

“Fela. Esta vida puta” - Carlos Moore – Parte 2

      Me fizeram entrar num Peugeot e zuuuuuuuuuuuum. Pra onde tavam me levando, eu não sabia. Em frente! Me levaram pra um hospital... militar. Fiquei pensando: ‘Agora, o que esses caras querem fazer?’
      Lá dentro, me levaram pra ver o Dr. Peters, chefe dos médicos no hospital. Ele é meu primo, saca?
      ‘Ah, Fela, como vai?, ele perguntou.
      ‘Ah...’
      ‘O que houve?’, ele perguntou; como se ele não soubesse...
      ‘Não sei pra que me trouxeram aqui’, respondi.
      ‘Siga-me’.
      Então, ele sabia, saca? Já tinham falado pra ele por que eu tinha sido levado até ele. Ele me levou pra uma sala de cirurgia. Eu tava lá, ainda sem entender o que tava acontecendo. E aí apareceu uma enfermeira. Ela carregava dois sapatos novos, do tipo que se usa em salas de cirurgia. Ela colocou eles no chão e falou: ‘Calce-os!’
      ‘Sapatos? Tá cega? Não tá vendo os sapatos no meu pé?’
      E aí, blaaaaaaam! Caiu a ficha. Pensei comigo: ‘Então, é isso?’ Olhei pra enfermeira, olhei pro médico, olhei pros policiais.
      Falei pra eles:
      “Então, vocês querem lavar meu estômago! É na minha bunda que vocês querem mexer buscando alguma coisa? Vocês acham que podem fazer, né? OK! Vão em frente! Lavem meu estômago. OK. Vocês vão me levar lá à força, certo? Vocês tão preparados pra me levar à força? OK! Porque vão ter que me levar à força! Vejam: vocês nunca vão mexer na minha bunda, por nada! Deixa eu esclarecer uma coisa: antes que vocês façam qualquer coisa comigo, toda essa sala, eu vou botar abaixo. Então, me leva pra dentro. Quero ver me colocar pra dentro, polícia filha da puta! Canalhas! Me leva pra dentro! Escrotos!”
      Ah, cara, eu tava puto pra caralho! Quando o médico ouviu que eu ia quebrar a sala de cirurgia dele, falou pra polícia: ‘Se vocês não conseguirem controlar seu prisioneiro, eu não posso fazê-lo’.
      Ao doutor eu disse: ‘Você, doutor, eu sei de uma coisa. Você não pode fazer nada com meu corpo a não ser com minha permissão expressa. Eu conheço essa lei! Então, põe isso na tua cabeça!’
      Rapaz, aquilo bagunçou a cabeça dele. Meeeerda! Ele foi embora e me deixou lá com a polícia. E aí falei pra polícia: ‘O que vocês querem fazer agora?’
      ‘Siga-nos,’ eles disseram.
      Segui eles e chegamos lá fora. Adivinha quem tava lá fora me esperando? O chefe da Interpol nigeriana, cara: Sr. Atta! Ele tava lá, aguardando o resultado do lance da minha bosta! Quando ele me viu saindo com a polícia, perguntou pra eles: ‘Vocês fizeram?’
      ‘Fela não concordou que eles fizessem, senhor’, eles responderam.
      Ele olhou pra mim como se eu fosse um bandido. Sabe o que ele falou? ‘Entre no meu carro!’
      Não no carro que eu tinha vindo, saca? Ele trouxe outro carro. Deve ter pensado que eu era burro. Ele me colocou no banco de trás. Era uma perua Peugeot, com três fileiras de bancos – banco da frente, banco do meio e banco de trás. E aí o motorista dele arrancou! Ele se virou pra mim, ainda me olhando como se eu fosse um bandido.
      ‘Conversarei com você em meu escritório’.
      ‘Você tem escritório?’ perguntei sarcasticamente. ‘Canalha, imbecil! Seu filho da puta, baixo...”
      Ah, xinguei ele igual a um cachorro vadio. Eu tava praguejando, chamando ele de tudo que era nome: ‘cachorro’, ‘canalha’, ‘escroto’, coisas desse tipo. Assim que a gente chegou em Alagbon, o Atta ordenou:
      ‘Prendam-no!’
      Quando finalmente fui levado a julgamento, me acusaram de posse de Cannabis. Porém, disseram no tribunal que eu tinha comido a maconha; que ainda tava na minha barriga, e que por isso eles queriam me manter em cana pra colher umas amostras. Sacou, cara? Quando escutei aquilo de novo no tribunal, falei: ‘Colher minha bosta? Esses policiais nunca desistem’.
      Então, o juiz perguntou: ‘Quantos dias vocês precisam para colher esse ‘negócio’, as amostras?’
      ‘Três dias’.
      E, então, me levaram de volta e me prenderam por mais três dias. Quando minha mãe ficou sabendo, começou a me mandar legumes. Eu só comia legumes. Pra disfarçar a maconha que tava lá dentro, saca? Naquele primeiro dia, eu não caguei. Eu me recusava a cagar. Aí, no meio da noite os prisioneiros me acordaram e disseram:
      ‘Fela, os policiais tão todos dormindo agora. Por que você não vai e caga no balde, porque eles não vão te ver cagando. Aí eles jogam fora, junto com a bosta de todo mundo’.
      Falei, ‘Boa ideia, cara’.
      Então, me arrastei pra fora da minha cama... cama, não, cara. Não tinha cama. Só um canto no chão da cela onde eu tava dormindo. E aí fui até onde tava o balde. A cela era uma sala com lugares diferentes pra cada um. Uma sala pequena, mais ou menos do tamanho de uma sala de estar média. Eram oito lá dentro, na época. Todo mundo tinha seu lugar. O balde pra cagar, também, tinha seu próprio lugar no canto da mesma sala. Então, fui até o canto do balde e caguei lá. De manhã a polícia jogou tudo fora, pensando que era a bosta dos outros prisioneiros. Depois, um policial chegou e disse:
      ‘Fela, você não quer cagar ainda?’
      ‘Cagar? Não, não quero cagar, não, cara!’
      Segundo dia, e minha mãe mandou legumes de novo. Na segunda noite, os prisioneiros falaram de novo. O ‘presidente’ da cela naquela época era um sujeiro chamado Rockwell. Tava preso por falsificação de notas. E já tava na cela tinha oito meses. Sem investigação. Nada. Simplesmente deixaram ele lá. Então, ele falou:
      ‘Fela, esses caras são uns canalhas. O que você cagou não foi suficiente. Então, você tem que cagar de novo hoje à noite, pra ter certeza que teu bucho tá limpo’.
      Falei: ‘Obrigado’.
      Então, naquela noite, de novo, quando todo mundo tava dormindo, fiz a mesma coisa. E aí, de manhã, jogaram fora. Assim, quando os policiais chegaram, me perguntaram de novo:
      ‘Fela, você quer cagar?’
      ‘Eu, eu não quero cagar ainda, não. A bosta? A bosta não vem!’
      Na manhã em que eu ia a julgamento, acordei às seis e meia e gritei: ‘Ei, polícia, quero cagar’.
      Aaaaaaaaah, cara, imagina a comoção na delegacia! ‘Fela quer cagar!’ Corre-corre! Todo mundo procurando um penico – policial, ordenança, oficial, todo mundo! Todo mundo queria a bosta do Fela! Me levaram pro terreiro, puseram o penico debaixo  da minha bunda e aí caguei. Quando olhei pra minha bosta, cara, tava limpa como o cocô de um bebê. Limpa! Foi assim que me livrei daquela merda aquela vez, cara. Os desgraçados não conseguiram me incriminar com porra nenhuma. Não tinha nenhuma prova!’

      (Esta e outra experiência semelhante por que Fela passou naquele mesmo ano, 1974, inspiraram seu hit ‘Cocô Caro’ (‘Expensive Shit’).”