sexta-feira, 31 de julho de 2015

Serenata a uma Pretensiosa - Joaquim de Barros

SERENATA A UMA PRETENSIOSA
Joaquim de Barros - Poeta Português - 1945

Não procures subir alto
Modera as tuas canseiras
Há muitas vezes beleza
Mesmo nas ervas rasteiras.

Nas tuas unhas condiz
Teu modo de ostentação
Por fora sobra verniz
Por dentro falta sabão.

Nem sempre uma linda cara
Traduz encanto no mundo
Há mil fontes de água clara
Cheias de lodo no fundo.


Há uma trova de Belmiro Braga semelhante à última quadra acima. Após uma infrutífera pesquisa na internet, não me foi possível saber quem foi o primeiro a criar a bela imagem. Ambos os poetas são secundários e desconhecidos.

A alma de muita gente
é como um rio profundo:
a face tão transparente,
mas quanto lodo no fundo.

Descobri outra trova, de Renato Travassos (Juiz de Fora, 1897 – Rio de Janeiro, 1960), a qual se encontra no livro “Cancioneiro”, Rio de Janeiro, 1977.

A alma humana, de incoerente,
É como o lago profundo,
Que, quanto mais transparente,

Mais lama contém no fundo.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

A primeira vez - Anônimo

A  PRIMEIRA VEZ
Autor anônimo.
(Reescrevi alguns versos para torná-los setissilábicos.)

O céu estava tão claro,
A lua quase dourada,
No campo só eu e ela,
E não se via mais nada.

A pele dela suave,
As belas ancas expostas;
Passei a tocar de leve
Os dedos em suas costas.

Não sabendo começar,
Olhei o seu corpo esguio.
Decidi por minhas mãos
Sobre o seu peito macio.

O que sentia era medo,
O coração nem batia,
Mas ela, bem lentamente,
As firmes pernas abria.

Ah! Vitoria! Eu consegui!
E tudo então melhorou!
Pelo menos desta vez
O néctar branco jorrou.

Fiquei tonto de alegria
E senti minha alma fraca!
Foi esta a primeira vez
Que eu tirei leite da vaca!

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Um Boêmio no Céu - Catullo da Paixão Cearense

UM  BOÊMIO  NO  CÉU
Catullo da Paixão Cearense

Citarei a seguir alguns trechos do livro “Um Boêmio no Céu”, de Catullo da Paixão Cearense, (1863-1946), Livraria Império Editora, Rio de Janeiro, 1966, 8ª Edição, organização, notas e poliantéia por Guimarães Martins, com 139 páginas. Esta peça de teatro, em 2 atos, escrita em versos, é de 1945. Possuo uma cópia xerográfica do livro. Fala do encontro do Boêmio com São Pedro, na entrada do Céu. Transcreverei inicialmente apenas as falas do Boêmio.

 “Sem o vigor do amor elas lhe domem,
um homem pode amar a mil mulheres,
mas a mulher só pode amar um homem.
O homem tem um coração tão grande,
que é capaz de conter as águas todas,
que o mar por toda a vastidão expande.
O da mulher, porém, é tão pequeno,
tão mimoso, tão leve e tão escasso,
que pode enchê-lo um pingo de sereno.
No coração do homem tudo medra!
O mais mole é mais duro que uma pedra!
O da mulher, Senhor, é tão sensível,
que não pode sofrer nenhum abalo!
É tão sutil, tão leve e tão mimoso,
que um suspiro da flor pode quebrá-lo.”

“Quantas vezes, tangendo um doce acorde
no meu terno violão, cheio de pena,
eu dei um beliscão pecaminoso
no seio em flor de uma mulher morena.”

“Com permissão das vossas barbas brancas
e da vossa careca macilenta,
milagrenta, litúrgica e beata,
eu vos direi, Senhor, que entre as mil virgens
não há mulher mais linda e suculenta,
que tenha o fogo fresco da pimenta,
e que seja mais chic e democrata,
do que esse caruru vertiginoso,
do que esse vatapá turbulentoso,
esse quitute mágico e dengoso,
que Deus humanizou numa mulata!”

A Ciência, através de um telescópio,
devassando os segredos da amplidão,
nada vale diante da blasfêmia
da boca escancarada de um canhão.
Um frêmito de horror sacode a Terra!
Finalmente, Senhor, pesa dizê-lo:
o mundo de hoje é um arsenal de guerra.”

“Desculpai-me, Senhor, esta franqueza,
que, espero, não tomeis por desrespeito.
Se os homens fossem feitos pelo Diabo,
e eu fosse o próprio Diabo, o Rei das Trevas,
eu teria vergonha de os ter feito.
Porque se Deus, Senhor Onipotente,
foi quem os homens, paternal, criou,
foi com certeza o Crápula do Inferno,
o padrinho infernal, que os batizou.”

“O que se dá no mundo, neste instante,
é o combate das calças e das saias,
em que a mulher e o homem se enfurecem!!
A mulher vencerá, pois pela lógica,
sobem as saias, quando as calças descem!!”

“Estrangular, de vez, a Ciência humana,
a ciência sem Deus, a ciência profana!”

“Destruir toda e qualquer religião,
para que a fera humana compreenda
a grandeza de Deus, sua grandeza,
e só conheça um livro: - a Natureza,
o sublime Evangelho de Poesias,
que Deus nos escreveu com o coração.”

“Vós deveis ser a Judas muito grato,
perdoar de coração esse bandido,
o maior dos maiores condenados,
que ficam para sempre relembrados,
esses homens fecais, feitos de pus,
pois se foi certo que vendeu a Cristo,
também foi certo que, ao beijar-lhe a face,
lhe deu a glória universal da cruz!
Sem esse grande miserável, -  Judas,
existiria Deus, mas não Jesus.”

“E Santo Onofre, o santo milongueiro,
por ser um grande santo, e, ao mesmo tempo,
um belo e incorrigível cachaceiro.
Depois do grande, imenso Santo Onofre,
que dizem que no Céu bêbado entrou,”
(...)

Transcreverei a seguir o diálogo do Boêmio com Santo Onofre.

“Santo Onofre:
(falando baixinho ao boêmio)
Vai para a lua, imediatamente!
Foge daqui e torna-te invisível,
que aqui não se farreia, nem se bebe,
e a vida sem beber, é coisa horrível.
Boêmio:
Eu vou ver se te mando umas garrafas...
Santo Onofre:
Mas cadê portador?! É impossível!
Tenho inveja de ti, tanto te invejo,
que em fugir cá do céu inda persisto.
Boêmio:
Tens saudade da Terra?
Santo Onofre:
                                        Está bem visto,
porque esta cachacinha, que aqui bebo,
é uma zurrapa, a que só eu resisto.
A cachaça que vais beber, na Lua,
é tão pura, tão alva e imaculada,
que até parece lágrimas de Cristo.
Aqui, meu velho, não se come nada!
Quem me dera uma bela feijoada!
Tenho vontade de suicidar-me,
de morrer, de uma vez, com alegria,
quando penso, no Céu, que estou comendo
um pedaço de carne seca assada,
com pirão de farinha d’água fria.
Aqui, não se namora! Só se adora!
É só rezar, rezar a toda a hora,
por um capricho, uma exigência tola.
Boêmio:
(indignado)
Tu exageras, pois o Céu tem anjos!
Santo Onofre:
(baixinho)
Que vale um anjo ao pé de uma crioula?!
(indignado)
Aqui não se ouve o pipocar de um beijo!
O dos anjos, é um beijo aristocrata!
Não explode na boca, como um beijo
num sorriso cheiroso de mulata.
São Damião e São Cosme também sofrem
as penas infernais da Santidade,
em que ambos, dia a dia, se consomem!
Nem um tutu com salsa e com torresmo!...
Nem um simples pirão... nem isso mesmo
podem comer!... Não bebem!... Nada comem!
O pobre do São Jorge não se esquece
das conquistas que fez com o seu ginete,
e leva horas inteiras a chorá-lo!
Coitado! Quando apertam-lhe as saudades,
ele monta num cabo de vassoura,
e corre pelo Céu, como um maluco,
pensando que a vassoura é o seu cavalo!
Quem me dera sair daqui, contigo,
fugir deste silêncio, que tortura!
O Céu, com toda a sua santidade,
é um Campo Santo, é um velho cemitério,
e o meu altar de Santo é tão funéreo,
que até parece a minha sepultura.
Foge daqui, te falo, como amigo!
Nós, os grandes boêmios, só nascemos
para viver cantando na desgraça,
porque todo o Infinito e a Eternidade
não valem o prazer que eu tinha n’alma,
quando bebia um copo de cachaça!”

terça-feira, 28 de julho de 2015

A Bunda - Belmiro Braga

A  BUNDA
Belmiro Braga

Quando ela passa todo mundo espia,
Não para a cara, que não é formosa,
Mas para a bunda, que é maravilhosa.
Em bunda, nunca vi tanta magia.

Requebra, sobe, treme e rodopia
Dentro de uma expressão maravilhosa.
Deve ser uma bunda cor-de-rosa,
Da cor do céu quando desponta o dia.

E ela sabe que sua bunda é boa.
Vai pela rua rebolando à toa,
Deixando a multidão maravilhada.

Eu a contemplo, num silêncio mudo.
Embora a cara não valesse nada,
Só aquela bunda me valia tudo.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Maria Têtê - Patativa do Assaré

MARIA TÊTÊ
Patativa do Assaré
(A história da mulher que tinha muita sorte na vida.)

Dotô, meu sinhô dotô,
Eu nunca gostei de inredo
Mas vou lhe dizê quem sou
Mesmo sem pedi segredo.
Sou um cabôco sem sorte,
Naci nas terra do Norte
E se de lá vim me imbora
E tô no Sú do país,
É somente pruque fiz
Um casamento caipora.

Nunca quis questão nem briga
Nem com quem já me ofendeu
Não sei pruque Deus castiga
Um home bom como eu
Que não maltrata ninguém.
Pro sinhô conhecê bem,
Meu nome é Jorge Sutinga,
Sou honesto e sou honrado
E nunca fui viciado,
Não fumo, nem bebo pinga.

Promode vivê tranquilo
Não gosto de censurá,
Só acredito naquilo
Que vejo a prova legá
E é por isto que eu tou certo
Que o mundo é cheio de isperto
Iganando a boa fé;
O dotô vai já sabê
Quem foi Maria Têtê
A minha ingrata muié.

Têtê era uma morena
Destas que sabe laçá
Que infeitiça e que invenena
Logo do premêro oiá:
Lôco por ela eu vivia
E ela tombém me queria
Nós dois tava apaxonado
Com o mesmo pensamento
Até que veio o momento
Do casamento azalado.

Casei com munto prazê,
Pois com certeza lhe digo,
Nunca Maria Têtê
Se aborrecia comigo.
Além de sê munto bela,
Minha vontade era a dela,
Sua vontade era minha.
A nossa vida eu cumparo
Duas conta do rosaro
Correndo na mesma linha.

No meu vivê de marido,
Fiz inveja a munta gente,
De Tetê sempre querido,
Mas como sou decendente
De famia de agregado,
Com dois ano de casado
Por capricho do destino,
Ao lado da minha prenda
Eu fui morá na fazenda
Do coroné Virgulino.

A fazenda era um colosso
De terra, miunça e gado
E o coroné, belo moço
Lôro, dos óio azulado.
Recebeu nóis satisfeito,
Com tenção e com respeito,
Com delicada manêra,
Com inducação e brio,
Como quem recebe um fio
Qui vem das terra istrangêra.

E me dixe: seu Sutinga,
Pode morá sossegado,
Tem baxio e tem catinga
Pro sinhô botá roçado.
Mode o sinhô trabaiá,
Toda vez que precisá,
Posso lhe arrumá dinhêro
E in suas arrumação,
Se achando com precisão,
Pode matá um carnêro.

Com o que ele dixe a mim,
Eu falei para a Têtê:
Patrão delicado assim,
É custoso a gente vê,
Com esta grande franqueza
Já quage tenho a certeza
De nóis miorá depois,
Este é patrão de verdade;
Repare a felicidade
Correndo atrás de nós dois.

As promessa que ele fez
Correto desempenhava,
E com seis ou sete mês
Que nóis na fazenda tava,
Quando foi um certo dia
No caminho que descia
Pra cacimba de bebê,
Têtê achou um tesôro,
Era um rico cordão de ôro,
Valia a pena se vê.

Eu lhe dixe com razão:
- Grande preço a jóia tem,
Acho bom guardá o cordão
Que o dono a percura vem.
Mas Têtê me arrespondeu:
- Esta jóia arguém perdeu,
Ela tava no abandono
Perdida inriba do chão,
Vou usando este cordão
Inté aparecê dono.

Com mais uns tempo pra frente
Que isto tinha acunticido,
Tetê achou novamente
Ôtro objeto perdido.
Da cidade eu tinha vindo,
Quando ela me oió se rindo
Com seu oiá feiticêro
E dixe: quirido Jorge
Hoje eu achei um reloge
Que vale munto dinhêro.

Vendo que ela tinha sorte,
O dito era verdadêro
Proque passava trensporte
Bem perto do meu terrêro,
Dixe com sinceridade
Sem um pingo de mardade
Batê no meu coração:
Este reloginho é
De arguma rica muié
Que passou no caminhão.

Logo um jurgamento eu fiz,
De prazê todo repreto.
Eita, que Têtê feliz
Promode achá objeto!
Foi tanta felicidade,
Que pra dizê a verdade
Inté dinhêro ela achô.
E com tanta coisa achada,
Têtê andava infeitafa
Que nem muié de dotô.

Ela já tinha pursêra
Ané, reloge e cordão,
Mas de minha companhêra
Eu não censurava não!
Pois delicada, tão boa,
Eu não podia mardá.
Meu coração é tranquilo,
Só acredito naquilo
Que veio prova legá.

O tempo alegre corria
E nóis alegre vivendo,
Quando uma coisa eu queria,
Têtê já tava querendo.
Causava admiração
A nossa grande união,
Sem ninguém se aborrecê.
Tudo era amô e carinho,
Mas porém nóis dois sozinho
Sem famía aparecê.

Ia dia, vinha dia,
E a união a crecê
Inté que chegou o dia
De Maria adoecê.
A pobre fazia pena,
Sua cô que era morena
Tava ficando amarela,
Um fastio, uma murrinha
E sintindo uma coisinha
Friviando dentro dela.

Com esta situação
Eu fiquei triste e sem graça,
Pedi um burro ao patrão,
Fui batê lá na farmaça
E contei tudo ao dotô;
Ele um caderno pegou
E logo que o istudo fez
Me garantiu que Maria
Ia sê mãe de famia
No prauzo de nove mês.

Não era coisa medonha,
O dotô logo deu fé
Que era uma tal de cegonha,
Que mexe com as muié
Eu sinti grande alegria
Quando sube que Maria
Ia sê a mãe de um fio,
E tanto que da viage
Só truxe uma beberage
Mode ela acabá o fastio.

A gente fica contente
Que só mesmo deus conhece
Quando o desejo da gente
Na nossa vida acontece.
Eu vivia a maginá
Aqui, ali e acolá,
No mato, in casa e na roça;
Os nove mês eu contava,
Quanto mais dia passava,
Mais Têtê ficava grossa.

Deus é grande e tem bondade
Ele é o nosso Pai Celeste
Que defende a humanidade
De fome, de guerra e peste.
Mas é preciso que eu diga,
Não sei pruquê Deus castiga
Um homem bom cumo eu.
Dotô, veja o meu azá,
Agora é que eu vou contá
O que foi que aconteceu.

Certo dia da sumana,
Eu chegando da cidade,
Vi que na minha chupana
Tinha grande nuvidade,
Tudo in rubuliço tava,
Muié saía e entrava,
Muié entrava e saía
No maió contentamento;
Têtê naquele momento
Já era mãe de famia.

Eu que tudo já sabia
Sinti naquele segundo,
A mais maió alegria
Que si pode tê no mundo.
Mas veja a sorte misquinha:
Quando eu entrei na cuzinha,
Uvi no pé do fogão
Arguém, baixinho, dizê:
O minino da Têtê
Tem a cara do patrão.

Com esta conversa feia,
Que arguém cuchichou dizendo,
Com um fogo nas urêia
Saí pro quarto correndo
E vi lá Têtê deitada
Na cama toda imbruiada,
O corpo todo cuberto
E a cara também ocurta,
Como a pessoa qui furta
E o robô vai discuberto.

Quando naquele minino,
Eu vi a cópias fié
Da cara do Virgulino,
O traidô coroné,
Vi que o tiro da desgraça
Bateu in minha vifraça
E a minha luz apagou.
A coisa tava sem jeito,
O coração no meu peito
Virou um bolo de dô.

Meu trumento e meu castigo
Naquela criança eu via
Não parecia comigo
Nem com a mãe parecia.
Têtê da cô de canela;
Tombém o cabelo dela
Cô de pena de jacu
E o capeta do minino,
Lôro, do cabelo fino
Além disto, os óio azu!

Foi grande a minha caipora
E foi maió o meu desgosto,
Eu saí de porta afora
Com as duas mão no rosto
Andando sem dereção;
E fui me sentá no chão
Lá pru detrás do currá.
E pensando in meu distino
Chorei mais de que minino
Quando chora pra mamá.

Sinti minha arma firida,
Não pude istancá meu choro,
Pruquê Têtê nesta vida
Era todo o meu tesôro,
E eu vi naquele momento
Disonrado o juramento
Mais sagrado deste mundo;
Vi naquela hora misquinha
Que a minha requeza tinha
Virado um cheque sem fundo.

Com o corpo ardendo in brasa,
Eu vortei de pé manêro
E entrando dentro de casa
Como o gato treiçoêro
Quando qué jogá o bote
Arrumei meus cafiote,
Botei no borso uns vintém
E como negro fugido
Saí de casa escondido,
Sem dizê nada a ninguém.

Dotô, derne aquele istante,
Eu virei um vagabundo
E hoje do torrão distante
Ando na lasca do mundo,
Sempre de ruim a pió,
Sem ninguém de mim tê dó,
Vagando com sacrifiço
Todo dia da sumana
Como abêia intaliana
Quando não acha curtiço.

Muié farsa é um castigo
E dela ninguém iscapa,
Têtê foi farsa comigo
Dibaxo de sete capa
Com a cara do seu fio
Discubrio o trocadio,
Vi que o reloge e os ané,
A pursêra, o cordão de ôro
E todo aquele tesôro,
Quem deu foi o coroné.

Veja dotô minha sorte,
Sou vagabundo infeliz
Longe das terra do Norte,
Aqui no Sú do país,
Coberto de sofrimento,
Só proquê meu casamento
Com a Maria Têtê
Foi triste e foi azalado
Foi mesmo que eu tê comprado
Cartia pro ôtro lê.

      Estas décimas são compostas de uma quadra e uma sextilha unidas, com um rígido esquema rimático: ABABCCDEED. E a metrificação setissilábica acompanha o estilo dos cordelistas nordestinos.


sábado, 25 de julho de 2015

As Proezas de Sabina - Patativa do Assaré

AS PROEZAS DE SABINA
Patativa do Assaré
(Esposa dá uma surra no marido ao vê-lo chegar bêbado em casa.)

Derne o Sú até o Norte
O mundo cria de tudo,
Cabra fraco e cabra forte,
Um alegre, outro sisudo.
Diz o professô Raimundo
Que este nosso véio mundo
De tudo pissui com sobra,
Coisa bela e coisa feia,
Home do geno de uvêia,
Muié do geno de cobra.

A vida não vale nada,
Tudo veve a pelejá
E o mundo é uma charada
Custosa de decifrá.
Mas, como quarqué sujeito
Qué tê razão e dereito,
Dá notiça e discrimina
As coisa deste universo,
Eu vou contá nestes verso
As proeza de Sabina.

Sabina é muié dereita,
Munta honestidade tem,
Não apóia nem aceita
Brincadêra com ninguém.
É dessas muié valente,
Atrevida e renitente,
Que, quando pega a falá,
Nem o Satanás resiste.
E ainda hoje ela insiste
Neste Brasi de Cabrá.

Ela nasceu num pranêta
Afobado e revortado,
Não se assombra com careta
Nem tem medo de barbado.
Pensando nesta senhora,
Vem logo em minha mimora
O que diz certo cantô
Nos seus verso nordestino:
“Paraíba masculino,
Muié macho, sim sinhô!”

Há munta gente hoje em dia
Que conhece bem Sabina,
Viu suas istripulias
No tempo que era minina,
Pois era munto sapeca,
Ispatifava as boneca
Que lhe davam de presente
E das colega de escola,
Rasgava livro e sacola:
Sabina não era gente!

Sua mãe munto bondosa,
Com razão lhe castigava,
Mas porém, ela raivosa,
Pelo chão isperneava.
Demenhãzinha bem cedo,
O seu premêro brinquedo
Era matratá os gato;
Era raivosa e atrevida.
Toda hora de comida,
Sabina quebrava um prato.

Ficou moça munto bela,
Era um anjo, era um tesôro,
Mas nunca ninguém viu ela
Com históra de namôro.
Nunca foi apaxonada,
Foi sempre bem respeitada
Por todo povo dali.
Era moça munto sera,
Não gostava de pilera
De mongofa e qui-qui-qui.

Tinha boa qualidade
Aquela linda minina
E os rapaz tinha vontade
De namorá com Sabina,
Mas quando os óio piscava,
A moça se retirava
E não dava confiança.
Era sisuda e sagaz.
Por isso, muntos rapaz
Já tava sem esperança.

Havia um rapaz peitudo,
Por nome de João Pompeu.
Sabia daquilo tudo,
Porém nunca esmoreceu.
Era amoroso e vaidoso,
Desses rapaz corajoso,
Que pra casá não magina,
Infrentá quarqué derrota
E andava perdendo as bota
Pra se casá com Sabina.

João Pompeu sempre dizia:
Quem percisa é quem percura,
Até que ele, certo dia,
Pra cuiê uma madura
Foi uma verde botá.
E mesmo sem namorá,
Sua sorte resorveu.
Com Sabina se incrontando,
Foi logo lhe perguntando:
Você qué casá cum eu?

Ela uviu e foi dizendo:
Lhe dou a minha premessa,
Mas porém, fique sabendo:
Nós tem que casá depressa,
Pois você não continua
Na minha casa e na sua
Se virando em lançadêra.
Veja que o nosso noivado
Não é pra ficá guardado
Como carne em geladêra.

E cada quá o mais ligêro,
Foi resorvê o seu prano.
Era aquele desespero:
Compra pano e cose pano,
Um corria e ôtro corria.
Com menos de cinco dia,
Tava pronto os inxová
E o casamento se deu.
Sabina com João Pompeu
Se casou sem namorá.

Era um casá bem unido,
Valia a pena se vê.
Entre muié e marido
Não havia fuzuê.
Aquelas duas pessoa
Tinha uma vida tão boa
Que fazia inveja a tudo.
Os dois contente vivia,
Eles junto parecia
Duas alma num canudo.

Porém, o tá Luçufé
Nunca se aqueta nem drome,
Veve atentando as muié,
Mode briga com os home.
Muntas vez, a gente vê
A paz, o gozo e o prazê
De duas pessoa unida,
Mas logo depois o Diabo
Vem bardiá com o rabo
As água do má da vida.

João Pompeu era querido,
Todos lhe tinha amizade.
Foi sempre bem recebido
Na boa sociedade.
Gostava de passeá
E umas bicada tomá
Com as pessoa granfina,
Mas tinha pôca demora:
Toda noite às nove hora
Tava perto de Sabina.

Onde os amigo chamava
João Pompeu aparecia.
Sabina não se importava,
Mas lhe disse, um certo dia:
João, você nunca se esqueça,
Sempre cedo me apareça,
Pois você já me compreende,
Tome as suas cachacinha,
Mas não vá saí da linha,
Se não você se arrepende.

Este consêio eu lhe dou,
Pra você tomá coidado,
Pois já conhece quem sou,
Não se casou inganado.
Oiça bem o que lhe digo,
Ande com os seus amigo,
Pode fazê o seu gasto
Nos botequim, por aí,
Mas nunca me chegue aqui
Fazendo de um pé dois rasto.

Dizia ela, zangada:
É bom tomá meu consêio.
João não lhe respondeu nada,
Mas ficou munto vremêio
Uvindo aquelas razão
E disse com seus butão:
O diabo desta muié
Tá fazendo eu ficá ruim,
Hoje eu vou ao botequim
E vorto quando eu quisé.

Na noite do mêrmo dia,
João Pompeu foi para o bá,
Pois bebendo ele queria
De Sabina se vingá.
Não tava de brincadêra,
Se sentou numa cadêra
Calado e munto sisudo,
Con jeito de quem se vinga.
Uísque, cerveja e pinga,
Ele ia inrolando tudo.

A noite tava incelente
E a palestra ia crescendo
E João Pompeu rinitente
Sempre bebendo e dizendo:
Quando eu pra casa vortá,
Se a minha muié brigá
E me recebê com grito,
Mostrando seu geno mau,
Lhe mostro com quantos pau
A gente faz um cambito.

Inquanto aquele pateta
Chingava a sua muié,
Em casa, Sabina, inquieta,
Tava como cascavé
Na hora que perde o bote,
Já preparando o chicote
Pra no marido batê.
Ia dentro e vinha fora,
Pois já era nove hora
E João sem aparecê.

A Sabina ia à cozinha
E andava nos corredô,
Como franga de galinha
Caçando canto pra pô.
E já bem de madrugada,
Interrogava, zangada:
O que diabo aconteceu?
Como a onça da mão torta,
Roncava no pé da porta,
Esperando João Pompeu.

Naquela noite, o coitado
Tava capaz de reboque,
Vortou munto embriagado,
Cacundo como um bodoque.
Não podia se aprumá,
Tremia pra lá e pra cá
Que nem pano de bandêra,
As perna vinha trocada
Como birro de munfada
Nas mão da muié rendêra.

Tava o pobre João Pompeu
Sem entrada e sem saída,
O seu corpo esmoreceu
Com o peso da bebida,
O pobre cambaliava,
Não sabia onde pisava,
Ia inriba e vinha imbaxo.
Assim mêrmo entrou na sala
E disse, tremendo a fala:
Sabina, eu sou cabra macho.

Sabina agarrou o marido,
Sem dó e sem compaxão,
Deu um soco desmedido,
Bateu com ele no chão,
Incarou o pé no cangote
E foi descendo o chicote:
Pegue! Pegue! Pegue! Pegue!
Pra conhecê quem sou eu.
Bateu tanto em João Pompeu,
Como se bate num jegue!

E depois de tê surrado,
Mode mostrá sua fama,
Saiu com o desgraçado,
Jogou inriba da cama
E ainda ficou raiando,
Pileriando e zombando,
Dizendo com ameaça:
Esta pisa extravagante
É pra você, de hoje em diante,
Aprendê tomá cachaça.

Na tarde do mêrmo dia,
João inda tava deitado.
Se levantá não queria,
Pruquê tava incabulado.
Sabina vendo a demora,
Disse: se levante agora,
Pois você não tá doente,
Não quero marido assim,
Se levante, cabra ruim,
Banhe o rosto, escove os dente.

Choroso e desconfiado
Se levantou João Pompeu,
Com o corpo incalombado
Da surra que a muié deu.
Em silêncio e paciente,
Banhou rosto, escovou dente,
Como Sabina mandou.
Sua vergonha era tanta,
Que o pobre só quis a janta,
Porque Sabina obrigou.

Depois daquela questão,
João mudou a sua vida,
Não foi mais à diversão
Nem qué sabê de bebida.
Na sua vida privada,
Pra não vê seus camarada,
Munta vez vai escondido.
É tão grande a sua mágua
Que quando qué bebê água
Não bebe em copo de vrido.


Ficou bastante inzemprado
E a diciprina foi tanta,
Qui mêrmo tanto infadado
Meia-noite se levanta
Pra inganá seus minino.
Ficou um marido fino,
Sabe em casa trabaiá.
Barre casa e faz café,
Pra ele virá muié
Só farta dá de mamá.

      Estas décimas são compostas de uma quadra e uma sextilha unidas, com um rígido esquema rimático: ABABCCDEED. E a metrificação setissilábica acompanha o estilo dos cordelistas nordestinos.