UM BOÊMIO
NO CÉU
Catullo
da Paixão Cearense
Citarei
a seguir alguns trechos do livro “Um Boêmio no Céu”, de Catullo da Paixão Cearense,
(1863-1946), Livraria Império Editora, Rio de Janeiro, 1966, 8ª Edição,
organização, notas e poliantéia por Guimarães Martins, com 139 páginas. Esta
peça de teatro, em 2 atos, escrita em versos, é de 1945. Possuo uma cópia
xerográfica do livro. Fala do encontro do Boêmio com São Pedro, na entrada do
Céu. Transcreverei inicialmente apenas as falas do Boêmio.
“Sem o vigor do amor elas lhe domem,
um
homem pode amar a mil mulheres,
mas
a mulher só pode amar um homem.
O
homem tem um coração tão grande,
que
é capaz de conter as águas todas,
que
o mar por toda a vastidão expande.
O
da mulher, porém, é tão pequeno,
tão
mimoso, tão leve e tão escasso,
que
pode enchê-lo um pingo de sereno.
No
coração do homem tudo medra!
O
mais mole é mais duro que uma pedra!
O
da mulher, Senhor, é tão sensível,
que
não pode sofrer nenhum abalo!
É
tão sutil, tão leve e tão mimoso,
que
um suspiro da flor pode quebrá-lo.”
“Quantas
vezes, tangendo um doce acorde
no
meu terno violão, cheio de pena,
eu
dei um beliscão pecaminoso
no
seio em flor de uma mulher morena.”
“Com
permissão das vossas barbas brancas
e
da vossa careca macilenta,
milagrenta,
litúrgica e beata,
eu
vos direi, Senhor, que entre as mil virgens
não
há mulher mais linda e suculenta,
que
tenha o fogo fresco da pimenta,
e
que seja mais chic e democrata,
do
que esse caruru vertiginoso,
do
que esse vatapá turbulentoso,
esse
quitute mágico e dengoso,
que
Deus humanizou numa mulata!”
“A
Ciência, através de um telescópio,
devassando
os segredos da amplidão,
nada
vale diante da blasfêmia
da
boca escancarada de um canhão.
Um
frêmito de horror sacode a Terra!
Finalmente,
Senhor, pesa dizê-lo:
o
mundo de hoje é um arsenal de guerra.”
“Desculpai-me,
Senhor, esta franqueza,
que,
espero, não tomeis por desrespeito.
Se
os homens fossem feitos pelo Diabo,
e
eu fosse o próprio Diabo, o Rei das Trevas,
eu
teria vergonha de os ter feito.
Porque
se Deus, Senhor Onipotente,
foi
quem os homens, paternal, criou,
foi
com certeza o Crápula do Inferno,
o
padrinho infernal, que os batizou.”
“O
que se dá no mundo, neste instante,
é
o combate das calças e das saias,
em
que a mulher e o homem se enfurecem!!
A
mulher vencerá, pois pela lógica,
sobem
as saias, quando as calças descem!!”
“Estrangular,
de vez, a Ciência humana,
a
ciência sem Deus, a ciência profana!”
“Destruir
toda e qualquer religião,
para
que a fera humana compreenda
a
grandeza de Deus, sua grandeza,
e
só conheça um livro: - a Natureza,
o
sublime Evangelho de Poesias,
que
Deus nos escreveu com o coração.”
“Vós
deveis ser a Judas muito grato,
perdoar
de coração esse bandido,
o
maior dos maiores condenados,
que
ficam para sempre relembrados,
esses
homens fecais, feitos de pus,
pois
se foi certo que vendeu a Cristo,
também
foi certo que, ao beijar-lhe a face,
lhe
deu a glória universal da cruz!
Sem
esse grande miserável, - Judas,
existiria
Deus, mas não Jesus.”
“E
Santo Onofre, o santo milongueiro,
por
ser um grande santo, e, ao mesmo tempo,
um
belo e incorrigível cachaceiro.
Depois
do grande, imenso Santo Onofre,
que
dizem que no Céu bêbado entrou,”
(...)
Transcreverei
a seguir o diálogo do Boêmio com Santo Onofre.
“Santo
Onofre:
(falando
baixinho ao boêmio)
Vai
para a lua, imediatamente!
Foge
daqui e torna-te invisível,
que
aqui não se farreia, nem se bebe,
e
a vida sem beber, é coisa horrível.
Boêmio:
Eu
vou ver se te mando umas garrafas...
Santo
Onofre:
Mas
cadê portador?! É impossível!
Tenho
inveja de ti, tanto te invejo,
que
em fugir cá do céu inda persisto.
Boêmio:
Tens
saudade da Terra?
Santo
Onofre:
Está bem visto,
porque
esta cachacinha, que aqui bebo,
é
uma zurrapa, a que só eu resisto.
A
cachaça que vais beber, na Lua,
é
tão pura, tão alva e imaculada,
que
até parece lágrimas de Cristo.
Aqui,
meu velho, não se come nada!
Quem
me dera uma bela feijoada!
Tenho
vontade de suicidar-me,
de
morrer, de uma vez, com alegria,
quando
penso, no Céu, que estou comendo
um
pedaço de carne seca assada,
com
pirão de farinha d’água fria.
Aqui,
não se namora! Só se adora!
É
só rezar, rezar a toda a hora,
por
um capricho, uma exigência tola.
Boêmio:
(indignado)
Tu
exageras, pois o Céu tem anjos!
Santo
Onofre:
(baixinho)
Que
vale um anjo ao pé de uma crioula?!
(indignado)
Aqui
não se ouve o pipocar de um beijo!
O
dos anjos, é um beijo aristocrata!
Não
explode na boca, como um beijo
num
sorriso cheiroso de mulata.
São
Damião e São Cosme também sofrem
as
penas infernais da Santidade,
em
que ambos, dia a dia, se consomem!
Nem
um tutu com salsa e com torresmo!...
Nem
um simples pirão... nem isso mesmo
podem
comer!... Não bebem!... Nada comem!
O
pobre do São Jorge não se esquece
das
conquistas que fez com o seu ginete,
e
leva horas inteiras a chorá-lo!
Coitado!
Quando apertam-lhe as saudades,
ele
monta num cabo de vassoura,
e
corre pelo Céu, como um maluco,
pensando
que a vassoura é o seu cavalo!
Quem
me dera sair daqui, contigo,
fugir
deste silêncio, que tortura!
O
Céu, com toda a sua santidade,
é
um Campo Santo, é um velho cemitério,
e
o meu altar de Santo é tão funéreo,
que
até parece a minha sepultura.
Foge
daqui, te falo, como amigo!
Nós,
os grandes boêmios, só nascemos
para
viver cantando na desgraça,
porque
todo o Infinito e a Eternidade
não
valem o prazer que eu tinha n’alma,
quando
bebia um copo de cachaça!”