quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 9)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      - Que há, meu amigo? Aborreceste? perguntava-lhe o velho sacerdote ao trazer-lhe a comida. Paciência! Não deves fazer nada! prosseguia ele. Breve terminarei meu trabalho, e então começarás a viver. É verdade que a minha saúde me traz cada vez mais apreensivo, mas farei todo o esforço possível para concluir o trabalho antes de minha morte. Não te posso deixar dessa maneira...
     O diabo ouviu-o. No entanto, pareceu não perceber coisa alguma, tão absorto estava em suas reflexões.
      - Contradições por toda a parte! murmurou com os olhos cheios de espanto.
      - Como? exclamou alarmado o sacerdote. Onde encontras tantas contradições? As contradições não existem senão no espirito, que, sempre descontente, procura a lógica em tudo. O principal não é o espirito, mas a consciência. Isto, porém, se se vive com a consciência tranquila!
      - Mas, por acaso a consciência não é guiada pelo espirito? O senhor, meu padre, se contradiz.
      - Oh! santo Deus! Como és difícil de te contentares! Cada conversa contigo me fatiga enormemente e acabo com dor de cabeça. Devo, no entanto, conservá-la serena, pois, do contrario, não poderei acabar o trabalho que estou fazendo. Para dizer a verdade, és um diabo muito desagradável! Confessa-me, com franqueza, se obedeces exatamente as minhas ordens.
      - Em que?
      - Ficas imóvel? Não fazes nada, absolutamente nada?
      - Sim. Ontem matei uma mosca, tão somente porque me aborrecia demasiado!... não sei se é ou não permitido matar moscas...
      - Moscas?.. Naturalmente!... Isto é, espera um pouco... Estás vendo? Agora, eu mesmo ignoro se pode ou não matar moscas. Grande acontecimento! Antes que me fizesses tal pergunta, jamais havia pensado nisso e, também eu, matava moscas... Agora...
      - A mosca é um ser vivo - disse o diabo com triste acento.
      - Quem o duvida? - respondeu comovido o sacerdote. - Então, também eu matei seres vivos! Quão pecador sou!...
      O diabo, que procurava soluções claras e precisas, perguntou-lhe:
      - Em resumo, é licito ou não é licito matar moscas?
      - Moscas?...
      Tais palestras perturbavam os dois. Ambos acabavam confusos e, mirando-se reciprocamente, com olhares estúpidos, não sabiam de que maneira prosseguir.
      O sacerdote não levava muito a sério essas contradições; de regresso à sua casa, esquecia-se delas e punha-se, tranquilamente, a trabalhar. Mas para o diabo elas constituíam verdadeiro martírio. Cheio de forças diabólicas, capaz de mover montanhas, permanecia indeciso ante as moscas que o picavam e - como uma criança - não sabia de que modo portar-se com elas. Como se as moscas compreendessem seu estado de alma pareciam zombar e caçoar dele: zumbiam insolentemente ao redor de sua cabeça, metiam-se-lhe nas suas peludas orelhas, faziam cocegazinhas nos seus lábios cerrados, assumiam posturas provocadoras, desafiavam-no...
      O diabo havia odiado muito em sua vida, mas todos estes ódios não eram nada comparados ao ódio feroz que nutria pelas débeis e insignificantes moscas...
      O sacerdote estava cada vez mais fraco: a saúde declinava e as poucas forças diminuíram cada vez mais... Sentia-se a todo o instante tão cansado, que era obrigado a se deitar um pouco.
      Há três anos que o diabo estava encerrado no canto da torre da igreja, condenado a uma mágoa absoluta, esperando pacientemente o programa do bem, que o sacerdote lhe havia prometido. Não atormentava mais o professor com as suas contradições; suplicava-lhe somente, que concluísse quanto antes o seu trabalho.
      - Apresse-se, meu padre!
      - Não tenhas medo, amigo! Não morrerei sem concluir minha obra. Segundo os meus cálculos, ainda me restam seis meses de vida, pouco mais ou menos. Sim, seis meses! Meu trabalho está quase terminado. Continua tranquilo, e não percas o ânimo. Vim precisamente para te anunciar uma boa notícia: hoje vão queimar vivo um herege. Vem comigo para assistir o espetáculo. Isto nos agradará, e nos divertirá um pouco.
      - Não obstante, está escrito nas Santas Escrituras: "Não matarás" - pensou o diabo, porém, não disse uma palavra ao sacerdote e aceitou gostosamente a proposta, sobretudo porque se aborrecia terrivelmente na solidão.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 8)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      - Perdoa-me que te haja ofendido, meu amigo. Quanto ao problema do bem, vou fazer-te uma pergunta: tu és um diabo curioso de saber tudo; provavelmente visitaste inúmeros templos e museus e viste muitas obras de arte. Dize-me: agradaram-te?
      O diabo refletiu um pouco, e respondeu:
      - Umas sim, outras não.
      - Mas o que apreciaste foi por sua beleza, não é verdade?
      - Naturalmente.
      - E ouviste falar que existem leis para a beleza ?
      - Sim, muito já se escreveu sobre isso.
      - Muito bem. Suponhamos, agora, que aprendeste essas leis. Poderias criar algo de belo?
      - Não basta conhecer as leis; necessita-se também ter talento e isso me falta.
      - Eis aí! Mas então, por que, ó animal, pretendes praticar o bem, sem talento para ele? Requer-se mais talento para o bem do que para a beleza. O bem exige um enorme talento.
      O diabo contemplava, com grande assombro, o sacerdote.
      - Ótima saída! - disse. - O senhor exagera, meu padre. Se eu pinto um mau quadro, não me mandarão, por esse crime, ao inferno, ao passo que se quebro a cabeça a meu próximo, já não será a mesma coisa. Além disso, ninguém me obriga a pintar quadros. No entanto, existe a obrigação moral de fazer o bem. Mandam fazê-lo e não indicam de que maneira... E se alguém se engana, ainda o castigam.
      - Não te dizia eu que para fazer o bem é preciso talento?
      - E no caso de não o possuir, devo sofrer eternamente as penas infernais, não é isso?
      O sacerdote fez um gesto desesperado, dizendo:
      - Não sei, meu amigo. Perdi a cabeça, falando contigo.
      - Pois não me fale mais do talento. Dê-me regras ou leis. Desejo fazer o bem e o seu dever é ensinar-me como devo fazê-lo. Do contrário...
      Estava tão enfurecido, que ameaçou ir à casa de outro sacerdote.
      O velho pároco sentiu-se ofendido, e disse num tom de censura:
      - Portas-te mal, muito mal comigo. Sofri em tua companhia, esperei trazer-te ao bom caminho como a ovelha desgarrada, principiei a querer-te como a um filho e tu pretendes agora me atraiçoar. Eu também tenho amor próprio e não é justo que o firas. Se não te parece mal, em lugar dessas regras gerais, perigosas não somente para um diabo mas também para um homem, vou traçar-te uma linha, de procedimento, a que deves te submeter-te todos os dias. Tenho muito tempo de sobra, e começarei a trabalhar imediatamente. Farei, para ti, uma espécie de agenda para todo o ano; nela encontrarás tudo quanto deves fazer diariamente... Mas não deverás te afastar um milímetro sequer do que estiver escrito nela. Caso contrário, cometerás novos erros. Se esqueceres alguma coisa, ou tiveres dúvida a propósito de qualquer detalhe, melhor será que nada faças, a expor-te a novas desventuras. Fecha os olhos, tapa os ouvidos, não te movas e fica sossegado, pois assim, pelo menos, estarás livre de dar mau passo. Hoje mesmo principiarei a trabalhar e tu subirás no alto da igreja e permanecerás ali, quietinho. Se te aborreceres, auxilia um pouco o sineiro. O coitado já está velho e se esquece de tocar os sinos, muitas vezes. Toca-o, pois, para a glória de Deus!
      O velho sacerdote entregou-se ao trabalho com afinco, enquanto o diabo principiou a não fazer nada. Instalara-se num pequeno desvão situado na torre da igreja, entre os sinos, as cordas e os trastes velhos. Uma das paredes da torre tinha na sua parte superior uma janelinha cheia de teias de aranha.
      Cada dois ou três dias o velho sacerdote levava ao diabo um pouco de comida, sentando-se um instante ao seu lado, a fim de conversar com ele. O resto do tempo o diabo não via ninguém e não fazia outra coisa senão refletir.
      O sacerdote temia essas reflexões, vendo nelas - e razão tinha ele - uma espécie de ação, impelindo-o a cerrar hermeticamente o espírito do diabo, não deixando que ele pensasse em nada. Este prometia obedecer-lhe, porém isso era mais forte do que a sua vontade. Tornava-se dificílimo não pensar no que havia visto e ouvido, no que consistia sua idéia fixa, isto é, no bem. O bem possui tantas formas... O próprio Deus diz tão depressa uma coisa como outra! Há inumeráveis verdades que se cruzam, entrechocam-se, batem-se umas contra as outras. Parece que se contradizem, mas na realidade não é assim. Qual é pois a "verdade verdadeira"?
      Ou, se todas são verdades, como distingui-las e encontrar a que possa servir melhor?
      Tais pensamentos quase enlouqueciam o diabo inspirando-lhe mesmo certo terror. Permanecia, durante horas inteiras, imóvel no seu canto empoeirado, sem se mover, sem respirar sequer.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Abdreiev (Parte 7)

 CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      - Não cometi nenhum - respondeu tristemente o diabo. - Procedi de acordo com a lei que o senhor me ensinou sem me opor ao mal.
      - Então, por que choras, fazendo-me também chorar?
      - Ah!, meu padre! Antigamente não sofria, mas agora sofro infinitamente. Talvez o que fiz, seguindo suas indicações, seja verdadeiramente o bem, mas por que não me causa ele nenhuma alegria? É impossível que aquele que pratique o bem, não sinta alegria de espécie alguma. Se o senhor soubesse quanto eu sofro! Sente-se, e lhe contarei tudo. O senhor mesmo verá onde está o bem e o que tenho feito.
      E o diabo contou minuciosamente como o haviam perseguido, batido, saqueado e maltratado. Eis aqui o que lhe acontecera por ultimo:
      - Achava-me deitado, meu padre, atrás de uma grande pedra à beira da estrada e vi a  aproximação de dois bandidos. Do outro lado da estrada e na mesma direção, vinha uma mulher com um embrulho nos braços que parecia de valor.
      Os bandidos correram para ela e gritaram: "Dá-nos isso!" Mas a mulher negou-se. Então um dos bandidos tirou sua espada...
      - E o que fez? - exclamou, com voz comovida, o sacerdote.
      - Feriu com ela a infeliz mulher, partindo-lhe a cabeça. Ela caiu, juntamente com o precioso fardo que levava nos braços. Quando os bandidos o abriram viram que o tesouro da assassinada era uma criança. Os bandidos puseram-se a rir e um deles, o que estava com a espada, segurou a criança por uma das perninhas, alçou-a no ar e...
      - Como? - perguntou, trêmulo, o sacerdote.
      - ...atirou-a contra as pedras...
      O sacerdote se pôs a gritar:
      - Mas tu, tu?... Não fizeste nada para defender a mãe e o filho? DESGRAÇADO! COMO NÃO ATACASTE OS BANDIDOS?
      - Com o quê? Antes do acontecido me haviam roubado até meu bastão, única arma que possuía.
      - Vamos ver!... Uma vez que tu és diabo, deves ter cornos... Devia atacá-los com os teus cornos! Na tua qualidade de diabo, podias haver encontrado um meio de lutar contra eles.
      - O senhor se esquece, meu padre, que está escrito: NÃO TE OPONHAS AO MAL?
      Reinou um demorado silêncio. Depois o sacerdote, pálido como um cadáver, caiu de joelhos, e disse cheio de remisão:
      - A culpa é minha! Não foste tu, nem foram os bandidos quem assassinou a mãe e o filho. O assassino fui eu... Espera um pouco meu amigo: vou rogar a Deus que perdoe nossos pecados.
      A oração durou muito tempo, tanto, que o diabo dormiu. O sacerdote o despertou dizendo-lhe:
      - Estas grandes palavras não são para nós. Em geral, não se necessitam palavras, nem leis. Vejo bem claro, que alguma vezes é preciso odiar. Em algumas ocasiões convém deixar-se bater, mas há circunstâncias em que se torna necessário maltratar os demais. Este é o verdadeiro sentido do bem!
      - Nesse caso estou perdido - disse resolutamente o diabo, com uma triste entonação na voz. - O senhor pode fazer por seu lado o que lhe agrade; a mim, porém, dê-me leis para seguir.
      - Nada mais posso fazer! Para que te enganes outra vez e me faças pecar? Não, meu amigo; basta. Acabaram-se as regras! Já não existem mais regras que valham!
      O diabo ficou furioso.
      - Mas se não existem regras é que tampouco existe o bem?
      - Como? Não existe o bem? Então, não é o bem isto de ocupar-me de ti há tanto tempo? Vai-te!  És um ingrato!
      Mas o diabo, que parecia sumir-se no mais profundo desespero, replicou:
      - O que o senhor me ensinou é bem pouca coisa. Não tem do que se ufanar.
      - É difícil ensinar o diabo.
      - Se o senhor não possui forças para ensinar o diabo, é porquê o seu bem vale muito pouco.
      - Cala-te, desgraçado, ou te porei na rua.
      - Faça-o. Não me restará outro remédio senão voltar ao inferno.
      Reinou novamente o silêncio.
      Depois o diabo disse:
      - Hei de regressar, por força, ao inferno, meu padre?
      Sua voz era tão triste e comovida, que o sacerdote se condoeu e, com um gesto de amizade, lhe falou:

domingo, 27 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 6)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      O diabo executava, não só zelosamente, mas com abnegação, tudo quanto lhe era ordenado, dando provas de uma vontade de ferro. Não obstante, o débil engenho humano não podia prever todas as complicações da vida, e ele se enganava a cada instante, procedendo bem num caso e portando-se mal noutro.
      Se um pobre lhe pedia alguma coisa de forma não prevista pelo sacerdote, negava-o. Eram tão frequentes estes casos, que o próprio sacerdote principiava a desanimar-se. Não suspeitava que a vida tivesse tantos e tão variados aspectos, nem que escondesse em si tantos e tão obscuros mistérios, e tantos e tão inesperados problemas.
      "De onde provém tudo isto?" - pensava quebrando a cabeça, enquanto o diabo, sentado atrás de uma coluna da igreja, curava as feridas, soltando suspiros dolorosos, e sem nada compreender.
      Não só o diabo, mas também o servo de Deus não conseguia compreender nada daquilo.
      E o velho padre continuava pensando: "Não haverá mais remédio a não ser que lhe permita comentar os preceitos, embora seja um tanto perigoso. Ensinar-lhe-ei as leis gerais, e ele que as comente depois tratando de adaptá-las às circunstâncias".
      Com suma docilidade o diabo se aveio com este novo sistema.
      Sentia-se alquebrado, quase sem energias, mas estava pronto a todos os sacrifícios. Até então todos os seus sacrifícios não lhe haviam servido para nada. Batiam-lhe tanto, que só isto bastaria para fazer dele um mártir; mas em vez de acontecer isso, as pancadas não faziam mais do que sobrecarregá-lo de novos pecados, pois os que lhe batiam tinham sobradas razões para se enfurecerem contra ele.
      Aliás, ele mesmo o reconhecia, assim como o sacerdote que o protegia. O pobre diabo, que jamais vira uma só lágrima, aprendeu até a chorar. Chorava tanto, que somente por suas lágrimas e por seu fervoroso desejo de encontrar o caminho do bem merecia ser inscrito no numero dos santos.
      Quando o sacerdote anunciou ao diabo que daquela data em diante lhe seria dado comentar os preceitos e adaptá-los à vida real, tal como os compreendia, ele sentiu-se cheio de alegria e foi com certo orgulho que declarou:
      - Agora, meu padre, o senhor pode ficar tranquilo a meu respeito. Já que o senhor permite que eu comente os preceitos, não farei mais tolices. Tenho espirito firme e ideias positivas; há muito tempo que não bebo álcool, e estou certo de não mais me enganar. Somente lhe peço que não me oculte nada. Diga-me qual a lei mais importante e mais grave da vida. Principiaremos por esta e depois o senhor me ensinará as outras. O velho sacerdote pôs-se a procurar na sua memória e a consultar tudo quanto havia lido e aprendido durante a sua vida. Depois soltou um suspiro de consolo e disse:
      - Existe uma lei como a que tu queres, mas tenho medo de revelá-la, pois é perigosa. Tenho, porém, confiança na ajuda de Deus. Presta atenção para não cometeres nenhum erro. Olha!... E abrindo um livro sagrado, o sacerdote mostrou ao diabo estas palavras, grandes e misteriosas: * * * NÃO TE OPONHAS AO MAL * * *
      Ao ver estas terríveis palavras, o diabo ficou assustadíssimo, perdendo todo o seu habitual orgulho:
      - Tenho medo, meu padre, disse ele. Estou quase certo de cometer erros com isto.
      O sacerdote também estava assustado. E ambos, o servo de Deus e o de Satã, cheios de terror, se contemplavam reciprocamente.
      - Apesar de tudo, experimenta! - disse, por fim, o padre. - O que há de bom nesta lei é que tu mesmo não deverás fazer nada; tem que deixar os demais fazerem contigo o que bem quiserem. Permita-lhes procederem à vontade e submete-te repetindo sempre esta frase: "Perdoai-os, Deus Onipotente, porque não sabem o que fazem". - Estas palavras são importantíssimas. Não as esqueça!
      O diabo se foi, novamente, à procura do caminho do bem.
      Passaram-se dois meses sem que aparecesse.
      Durante esse tempo, o velho cura esperava-o ansiosamente, a todo momento. Finalmente ele regressou.
      Havia emagrecido horrivelmente e todo ele era apenas ossos. Estava faminto e sedento. Tudo quanto possuía lhe havia sido arrebatado. Estava todo coberto de cicatrizes. O velho sacerdote sentiu certa alegria: tudo testemunhava que seu discípulo não se havia oposto ao mal. No entanto, impressionava-o dolorosamente a expressão de temor e de angústia que se lia nos olhos do diabo. Este, respirando com dificuldade e escarrando sangue, olhou para o velhinho, a quem amava com todo o corarão, e a velha igreja, onde encontrara um refugio sossegado e desandou a chorar, perdidamente. O sacerdote pôs-se a chorar também adivinhando que sucedera qualquer coisa de muito grave
      - Vamos! Conta-me os erros que acaso cometeste.

sábado, 26 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 5)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      - Desgraçado! Mil vezes desgraçado! - exclamou furioso o sacerdote. – Mas não acabaste de dizer que te pediram muitas coisas?
      - Sim.
      - Pediram-te, por exemplo, pão?
      - Sim.
      - E não lhes deste?
      - Não. Esperava que me pedissem a camisa... Veja, meu padre, que não faço senão asneiras. Não me repreenda o senhor, se me engano ao procurar o caminho do bem. Quero encontrá-lo, custe o que custar. Por algum motivo renunciei ao inferno, como a todos os seus prazeres. Por algum motivo passei, durante dois anos, os dias e as noites sobre os livros, devorando-os. Agora vejo que não existe salvação para mim...
      - Espera... e não te desesperes. Vou ensinar-te ainda umas tantas coisas... Diz-me, porém; por que deu aquele homem uma bengalada na tua cabeça? Talvez sejas uma vitima inocente e, nesse caso, uma parte dos teus pecados poderá ser perdoada.
      O diabo fez um ar de dúvida.
      - Nem eu mesmo o sei. Antes, também acreditava ser uma vítima inocente, mas agora já não sei mais nada. A coisa ocorreu da seguinte forma: depois de longos passeios pela cidade, cansado e desesperado, mas ainda cheio do mais ardente desejo de fazer o bem, sentei-me na margem do rio Arno, para descansar um pouco e restaurar as forças. De repente vi que um homem se afogava no rio. Nos seus esforços desesperados para se salvar, chegou muitas vezes perto de mim.
      - E tu, infeliz?
      - Eu? Contemplei-o, perguntando a mim mesmo como era possível que ele se mantivesse à tona da água quando, segundo todas as leis da física, ele já devia ter-se afogado. Enquanto assim refletia, acudiu uma porção de gente, atraída pelos seus gritos. Se o senhor quer saber a verdade, não foi um só que me bateu, mas inúmeros...
      Triste e abatido, cheio de feridas e cicatrizes, o diabo permaneceu de pé ante o sacerdote.
      Este contemplava-o atentamente, com ar pensativo.
      Depois suspirou e, aproximando-se dele, atraiu-o para perto de si, beijando-lhe a fronte. Ao fazer isso, percebeu que a cabeça do diabo estava coberta de sangue seco.
      O diabo, depois de haver recebido o beijo, disse com voz assustada:
      - Tenho medo, meu padre. Vi no inferno horrores sem nome, mas jamais me senti tão perturbado e inquieto como agora. Não há nada mais terrível do que aspirar apaixonadamente o bem e não saber como ele é. Não consigo compreender como podem viver as pessoas na terra, ignorando o que é o bem. Com todo o meu coração, tenho piedade delas!
      - Vivem, apesar de tudo, respondeu o sacerdote. - Uns, como animais, sem se preocuparem com estes graves problemas; outros procuram, como tu, o caminho do bem e da virtude, e sofrem porque não conseguem encontrá-lo. Outros, ainda, crendo haverem encontrado o bom caminho, inventam preceitos saudáveis e vivem perfeitamente com eles.
      - E essa gente se salva? - perguntou o diabo, desconfiado.
      - Só Deus o sabe! Isto vai além dos nossos conhecimentos... Quanto a ti, não te desesperes. Eu não te abandonarei, e te ensinarei ainda algumas coisas mais. Não me faltará tempo nem paciência para tanto. Tu és um diabo muito impulsivo, mas não se deve perder a esperança. Agora, vai lavar as feridas da cabeça.
      Assim terminou a conversa entre o diabo e o sacerdote.
      Ambos ignoravam que, precisamente no momento de beijar o sacerdote a fronte abominável do diabo, ao mesmo tempo que este, por sua vez, se compadecia dos que desconheciam o bem, se realiza esse mesmo bem, que eles inutilmente buscavam.
      Separaram-se. O sacerdote foi à procura de novos caminhos que conduzissem ao bem. O diabo encerrou-se na igreja, atrás das empoeiradas colunas, para ali se restabelecer dos ferimentos, e esforçar-se por compreender os grandes e misteriosos problemas do bem e do mal.
      O sacerdote começou, novamente, a ensinar o bem ao dócil diabo. Isto, porém, foi a causa de uma nova série de aborrecimentos para ambos. Dava o bom padre a seu discípulo ensinamentos pormenorizados para as diferentes circunstâncias da vida, e tudo caminhava bem enquanto estas se apresentavam justamente sob o mesmo aspecto, e na mesma ordem prevista pelo professor.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 4)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      - Amar? Como se isto fosse tão fácil! É precisamente o que não posso fazer. De que maneira quer o senhor que um diabo ame? Compreenda-me, padre, que sendo diabo por natureza, não posso me sentir como um anjo; mas ao mesmo tempo não quero fazer mal, antes, ao contrário, pretendo somente fazer o bem. Isto é o que desejo que o senhor me ensine.
      O sacerdote respondeu-lhe tristemente:
      - Por desgraça, por causa da tua natureza, tu possues uma alma abominável.
      - Claro! - confirmou o diabo. - Por isso quero lutar contra minhas inclinações naturais. Não quero ser condenado ao inferno para toda a eternidade, pois aspiro ao céu, como os anjos. Espero que os anjos não sejam os únicos candidatos ao céu, não é verdade?... Preciso que o senhor me ajude. Concedo-lhe, novamente, um prazo de sete dias. Se não encontrar o senhor nenhum meio de salvar-me, acabou-se. Irei para o inferno!
      Passaram-se outra vez os sete dias.
      O sacerdote chamou novamente o diabo e lhe disse:
      - Depois de largas reflexões, encontrei para ti dois preceitos muito práticos. Espero que não tenhas nenhuma dificuldade em adotá-los. Está escrito no Evangelho: "Se te pedem a camisa, dá-a, embora não tenhas outra". Outro preceito ordena: "Se te dão uma bofetada na face direita, oferece igualmente a esquerda". Segue estes mandamentos. Será a tua primeira prova. Logo veremos o resultado. Hás de convir que é muito simples!
      O diabo refletiu um pouco, sorrindo, depois, alegremente:
      - Isto sim! Agora já sei o que é o bem. Não sei como lhe agradecer...
      Transcorreram outras duas semanas.
      O velho sacerdote estava certo de que havia encontrado o meio de salvar a alma do diabo. Mas logo este voltou a sua casa. Mostrava-se mais triste do que nunca: estava com o rosto cheio de manchas de sangue e de cicatrizes. Brilhava no seu corpo escuro uma camisa complemente nova.
      - Isto não dá resultado! - declarou com voz pesarosa!
      - Que dizes? Que te aconteceu? - perguntou assustado o sacerdote - é de se acreditar que brigaste com alguém. Olha teu nariz... E teus olhos?... Ai! meu Deus! Tinhas a intenção de praticar o bem e, ao invés, te entregaste a brigas... Ou será que alguém te feriu?
      - Não! O caso é que eu briguei.
      - Mas, como? Não te havia dito: "Se alguém te dá uma bofetada na face direita, oferece igualmente a esquerda?" Não te recordas?
      - Sim, recordo-me perfeitamente. Estive durante quinze dias, passeando pela cidade, à procura de alguém que me esbofeteasse, mas como ninguém o fez, me vi na impossibilidade de cumprir o santo preceito.
      - Mas não disseste que andaste a brigar?
      - Isto é outro caso. Tive uma disputa com certo senhor; ele me deu uma bengalada na cabeça. Naturalmente eu lhe devolvi a pancada. A discussão acabou numa verdadeira batalha. Sem me ufanar disso, devo informar ao senhor que ele não foi sem uma lembrança minha: quebrei-lhe duas costelas.
      O velho sacerdote fez um gesto de desesperação:
      - Mas, homem! Eu te havia dito "Se te esbofeteiam a face direita... Mas o diabo o interrompeu, gritando:
      - Eu digo ao senhor que não me deram na cara, mas na cabeça. Se se tratasse do rosto, teria sabido como fazer...
      O pobre sacerdote ficou completamente desnorteado. Afinal, depois de um largo silêncio, disse ao diabo:
      - Ai meu Deus! Como és estúpido! Geralmente mostras grande habilidade, e até mesmo regular erudição, mas no que se refere ao conceito do bem, qualquer um o entende melhor. Como não compreendeste que as palavras do Evangelho devem ser interpretadas num sentido mais amplo?
      - No entanto, o senhor mesmo disse que não se deve interpretar os santos preceitos, e sim cumpri-los ao pé da letra!...
      - Tu és um desgraçado! Que vou fazer agora contigo? Não posso seguir-te por toda a parte, para acautelar-te sobre os erros... É preferível que não saias à rua... E que quer dizer esta camisa nova? Ganhas-te-a, de presente?
      - Qual! Comprei-a para dar ao primeiro que ma pedisse. Durante quinze dias estive passeando pela cidade, entre os pobres. Pediram-me tudo que o senhor possa imaginar, menos a camisa. Provavelmente ignoram o caminho do bem...

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 3)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      Durante dois anos o diabo estudou de cabo a rabo todos os livros que o sacerdote lhe dera, esforçando-se por encontrar neles resposta à pergunta que o perturbava: No que consiste o bem e como fazê-lo para que não se transforme no mal?
      Há muito tempo que conhecia a língua hebraica e agora estudou também o grego, para poder ler os livros religiosos não traduzidos, no próprio original. Comparou os textos, procurando os erros que tinham escapado aos outros, fez vários descobrimentos e chegou mesmo a criar novos esquemas religiosos.
      Com tudo isso a saúde do nosso abnegado diabo começou a ressentir-se sensivelmente. Emagreceu e, apesar de tudo, não pôde encontrar resposta ao problema que tanto o preocupava. Acabou por desesperar-se.
      Ao fim de dois longos anos de sofrimento e trabalhos, apresentou-se em casa do sacerdote. Despertando-o em plena noite, gritou-lhe:
      - Salva-me, meu padre !
      - Vamos vamos! O que aconteceu? - perguntou o sacerdote espantado. – Que te sucede agora?
      - Li todos os seus livros e continuo tão ignorante como antes a respeito de tudo que se refere ao bem. Salva-me, meu padre! Eu não posso viver assim!
      - Está certo de que lestes todos os livros? Tens tão pouca paciência?
      - Todos, meu padre! Agora mesmo terminei o último. Desgraçadamente, para mim, tenho um espírito curioso, diabólico e incapaz de suportar contradições, e os seus livros estão cheios delas...
      O sacerdote moveu a cabeça num gesto de reprovação.
      - Isso é mau!... muito mau... Em vez de crer, não fazes outra coisa senão criticar e procurar contradições. Satanás te incita a isso.
      - Que posso fazer? Não posso ser de outra maneira. Não encontro nesses livros senão contradições. De um lado, tudo é proibido, de outro, tudo é permitido; o que é bom segundo um livro, torna-se mau noutro. Por exemplo: para começar dignamente uma nova vida, tinha a intenção de me casar com uma mulher honrada, a fim de praticar o bem ao seu lado. Mas depois de ter lido todos esses livros, já não sei se o matrimônio é um bem ou é um mal.
      - Aquele que se sente capaz...
      - Não se trata disso. O senhor, por exemplo, é celibatário, como todos os sacerdotes católicos, que consideram o matrimônio como um pecado mortal. No entanto, os antigos patriarcas, que eram tão santos como os senhores, possuíram mulher, e até muitas mulheres cada um. Se São Joaquim não se tivesse casado, não teria aquela filha, que era uma santa também...
      - Cala-te, pecador!... É realmente perigoso falar contigo. Obriga-nos a incorrer em heresias... Se te parece bem, casa-te.
      - Não é isto que espero do senhor.
      - Que esperas então?
      - Preciso de uma resposta que me possa servir sempre, para todos os casos da vida, que encerre em si nenhuma contradição, e que me indique como devo proceder para não cometer erros. Isso é o que necessito. Quanto ao matrimônio, como não tenho pressa, esperarei um pouco. Entretanto, meu padre, reflita. Concedo-lhe o prazo de sete dias. Se, transcorrido este prazo, o senhor não me puder dar uma resposta clara e decisiva, voltarei ao inferno, e o senhor não me verá nunca mais.
      Estava furioso o pobre diabo! Como se apaixonara pela causa do bem!
      O velho sacerdote, compreendendo seu estado de alma, não se zangou ao ouvir suas grosseiras palavras e começou a refletir. Refletiu seis dias seguidos.
      No sétimo, chamou o diabo, dizendo-lhe:
      - És um diabo inteligente e, no entanto, ao leres os livros, escapou-te uma coisa muito importante. Olha aqui: vê o que está escrito: "Ama a teu próximo como a ti mesmo". Bem vês que não pode ser mais claro. Ama. A isto se reduz tudo.
      O sacerdote tinha um ar triunfal.
      Mas o diabo não parecia nem um pouco entusiasmado, e respondeu:
      - Não! Isso não está claro. Para provar o amor do próximo, é preciso fazer-lhe algum bem; mas como ignoro em que consiste o bem, posso fazer-lhe algum mal, algum grande mal, até mesmo arremessá-lo ao inferno. Além disso, não é nada difícil isso de dizer que devemos amar ao próximo como a nós mesmos...
      - Como és exigente! Pois bem: ama o teu próximo simplesmente, e não como a ti mesmo. Então compreenderás tudo, principiarás a praticar o bem, sem nenhum esforço de tua parte.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 2)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      Após uma de suas visitas ao inferno, voltou com particular satisfação à tranquila igrejinha e durante dois dias e duas noites dormiu como um justo atrás da coluna. Quando despertou, disfarçou-se de homem, dirigindo-se ao confessionário, onde se achava o pároco, pois era hora das confissões. O velho sacerdote ficou estupefato, quando este senhor desconhecido, já idoso, de expressão triste e aborrecida, nariz grande, lábios finos e enrugados, apresentou-se como diabo. Mas este lhe jurou, e o sacerdote acabou por acreditá-lo. Com curiosidade perfeitamente infantil, pôs-se a interrogá-lo sobre as coisas do inferno.
      O diabo, porém, não mostrou desejo de querer falar nelas.
      - Ai! meu padre. Aquilo não é viver; é um verdadeiro inferno...
      - Bem, mas onde estão os teus cornos e os teus cascos? - perguntou o padre, curiosamente. - E para que vieste aqui? Para tentar-me, ou para arrepender-te? Se julgas que me tentas, previno-te de que não o conseguirás. E com um sorriso levemente irônico acrescentou:
      - Eu, meu caro senhor, não me deixo tentar!
      - Pois apesar de tudo, logrei fazê-lo cair em tentação muitas vezes. Recorda-se da carne que comeu no ultimo dia de jejum?
      - Que carne?
      - Faz hoje quinze dias. - O sacerdote ficou inquieto.
      - Então, foste tu quem me sugeriste essa ideia pecadora? Ai meu Deus! Vai-te... vai-te... Não te quero ver mais! Põe teus cornos na cabeça, vai-te... Se não fizeres, chamarei o sacristão.
      - Vim para arrepender-me... e o senhor me escorraça! – exclamou tristemente o diabo. - No entanto, está escrito no Evangelho que se uma ovelha desgarrada...
      - Mas, conheces tu o Evangelho? - perguntou o assombrado sacerdote.
      - O senhor pode examinar-me - respondeu orgulhosamente o diabo.
      - Impossível!
      - Interrogue-me e verá.
      - Eis uma surpresa! Vamos à minha casa; ali te examinarei. Não convém que continues neste santo lugar... Que coisa tão extraordinária! Um diabo que conhece o Evangelho! Vamos para casa!...
      Durante toda a noite o pároco, em sua casa, examinou o.diabo e cada vez mais se assombrava.
      - Tu és um verdadeiro sábio em questões religiosas! Realmente! - Porventura as estudaste?
      - Um pouco - respondeu modestamente o diabo.
      Apesar dessa modéstia, conservava sua dignidade; não se humilhava; nem mostrava demasiada afetação. Via-se logo que era um diabo sério, ponderado e judicioso. Não se orgulhava dos seus conhecimentos, e por isso agradava mais ainda ao velho sacerdote.
      - Afinal, - perguntou-lhe o padre - o que desejas?
      Então o diabo caiu de joelhos, exclamando:
      - Ensine-me, meu padre, a praticar a virtude. Sinto grande desejo disso. Eu não posso viver sem praticar a virtude, porém não sei como fazê-lo. Quanto ao Satanás e a todos os misteres diabólicos, renuncio a eles para sempre.
      E, com o fito de confirmar suas palavras, o diabo cuspiu desdenhosamente três vezes seguidas.
      O pároco, então, bateu amigavelmente no ombro do diabo; este afastou-se um pouco, pois não lhe agradava que o tratassem com demasiada familiaridade e perguntou insistentemente e com melancólica entonação na voz:
      - Meu padre, vai o Senhor ensinar-me a praticar a virtude?
      - Já o veremos! Antes de mais nada, é preciso começar a ler as obras dos Santos. Tu conheces bem a Bíblia, mas isso só não basta... Vai passear um pouco... Enquanto passeias, far-te-ei uma lista do que deves ler. Ouve, meu amigo... Estás sempre assim?
      - Que diz o senhor?
      - Falo da tua aparência... Tens um aspecto estranho... Dir-se-ia que comes pouco e te entregas sempre a tristes reflexões... Ou talvez não estejas sempre assim!... Se podes tomar outra forma, mostra-me... embora seja eu velho, nunca vi outros diabos...
      Mas o diabo não lhe quis dizer a verdade.
      - Não! Estou sempre assim - foi a resposta.
      - Verdade?... Tanto melhor... Pois olha: vai dar uma voltazinha, enquanto eu trabalho para o teu bem... Embora tivesse dito que és sábio, na realidade, meu amigo, ainda te falta muito... muito...
      - O que mais me interessa é aprender a praticar a virtude. Ensinar-me-á o senhor?
      - Sim, sim... - disse o velho sacerdote, tranquilizando-o. – Lerás muitos livros e aprenderás tudo... Não tenhas medo...

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 1)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      - Quem não ama o bem?
      Uma vez, um diabo, já entrado em anos e a quem tinham apelidado, no inferno, de Narigão, sentiu, inesperadamente, certa inclinação à virtude. Entregara-se na sua mocidade, como todos os diabos, a insignificantes proezas diabólicas, mas, com a idade, já um tanto cansado do seu oficio, tornara-se comedido.
      Embora gozasse de ótima saúde, os excessos juvenis quebraram-lhe um pouco as forças e ele não sentia entusiasmo algum pelas tolices da mocidade. Cada vez sentia mais acentuada propensão para a ordem (virtude esta muito comum entre os diabos); dotado de espírito firme e esclarecido, embora um tanto metafísico, gostava de filosofar.
      Acabou por perder a fé na perfeição do inferno e nos costumes diabólicos. Enfadava-se principalmente nos dias festivos, quando não tinha nenhuma tarefa a desempenhar e não sabia como matar o tempo, tanto mais que era celibatário.
      Para lutar contra essa situação que tanto lhe perturbava o espírito, entregou-se ao trabalho, mudando várias vezes de ofício. De inicio, instalou-se como diabo tentador em uma igrejinha católica de Florença. Ali, segundo suas próprias palavras, saboreou pela primeira vez o repouso de espirito. Ali, também principiou sua conversão.
      A igreja, era muito pequena, e ele tinha pouco trabalho. As míseras velhacadas que tanto agradavam os diabos jovens - apagar as velas, fazer com que o sacristão tropeçasse ou que as velhinhas, enquanto rogavam a Deus, pensassem coisas escabrosas - não o agradavam; ao contrário, chegavam a lhe causar engulhos. Quanto às tataranhadas importantes, não se oferecia oportunidade para elas.
      Todos os paroquianos eram pessoas modestas, que dificilmente se deixavam tentar. Nem ouro, que nunca haviam visto; nem o amor passional, que jamais conheceram; nem os orgulhosos sonhos de ambição, completamente estranhos à sua natureza, podiam turvar a paz de suas almas superficiais, razão pela qual todos os esforços do diabo eram inúteis.
      Quanto aos pecados insignificantes, os fieis entregavam-se a eles de-per-si, sem necessidade de serem tentados pelo diabo, e este não precisava quebrar a cabeça para inventar coisa alguma, mesmo porque o numero dos pequenos pecados era muito reduzido.
      A principio quis tentar o pároco em pessoa, mas todas suas tentativas fracassaram; o pároco era um velho já desdentado, um tanto volvido à infância novamente, e puro como uma donzela. Somente conseguia fazê-lo esquecer, algumas tardes, as palavras de sua oração, substituindo-as por outras, ou comer carne nos dias de jejum, ou então dormir até muito tarde, faltando à missa da madrugada. Mas o diabo sentia muito bem que tudo isso não passava de pecadilhos exteriores e que semelhantes meios não bastam para a perdição da alma de um crente.
      Pouco a pouco começou a cansar-se do seu oficio, pondo no trabalho cada vez mais indiferença ou formalismo. Por descargo de consciência, ocasionalmente contava, a alguma velha ajoelhada diante da Virgem, uma anedota escabrosa, cuspia duas ou três vezes num canto da igreja, ou fazia com que o velho sacerdote confundisse as palavras da missa sempre no mesmo ponto. Depois de haver cumprido o seu dever, apressava-se a sentar no seu lugar favorito, à sombra de uma coluna, para acompanhar, devotadamente, num breviário furtado, as palavras do santo oficio. Mas esse passatempo, embora agradável, era contrário à natureza ativa do diabo.
      Para não permanecer ocioso começou paulatinamente a trabalhar. Tornou-se, por vontade própria, uma espécie de sacristão-ajudante da igreja. Varria-a de manhã, limpava o metal das portas, ativava os candeeiros durante a missa e, junto aos demais paroquianos, acompanhava o coro, cantando em voz de falsete o "Ora pro nobis".
      Se lhe acontecia entrar na igreja pela porta da rua, molhava suas garras na água benta,  benzendo-se com ela. Quando todos os crentes se acercavam do pároco para que os  abençoasse, acompanhava a multidão, atropelando as pessoas, conforme seus hábitos diabólicos.
      Durante as raras visitas ao inferno, onde precisava apresentar informes acerca de suas atividades (os quais, por sua vez, eram arqui-falsos, como todos os informes dos diabos de Satanás), nosso diabo sentia aumentar cada vez mais seu asco pelo inferno, e por seus costumes, sua barulheira infernal, sua sujeira e desordem. As bruxas gritadeiras, que antigamente lhe pareciam tão cativantes e belas, não lhe inspiravam agora senão aversão; se divertia prendendo-lhes as vassouras com a porta, observando depois o terror e as torturas dessas desventuradas, que procuravam inutilmente livrar suas vassouras de tal aperto. No inferno todo o mundo mentia e re-mentia sem cessar; cada palavra era um embuste. Satanás mentia mais do que todos juntos; e o nosso diabo, que já havia perdido os hábitos do ambiente, sentia-se enfermo, ansioso por sair dali, para respirar um pouco.

A Igreja do Diabo - Machado de Assis (Parte 2)

A IGREJA DO DIABO
(Machado de Assis)

CAPÍTULO III - A BOA NOVA AOS HOMENS

      Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
      - Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
      Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.
      Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
      As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
      Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
      E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
      Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: — Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

CAPÍTULO IV - FRANJAS E FRANJAS

      A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
      Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.
      A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
      Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:
      - Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

domingo, 20 de setembro de 2015

A Igreja do Diabo - Machado de Assis (Parte 1)

A IGREJA DO DIABO
(Machado de Assis)

CAPÍTULO I - DE UMA IDEIA MIRÍFICA

      Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
      - Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
      Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: — Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

CAPÍTULO II - ENTRE DEUS E O DIABO

      Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
      - Que me queres tu? perguntou este.
      - Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
      - Explica-te.
      - Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
      - Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
      - Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia, não vos parece?
      - Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
      - Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.
      - Vai.
      - Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
      - Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?
      O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma ideia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
      - Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...
      - Velho retórico! murmurou o Senhor.
      - Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, — a indiferença, ao menos, — com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, — ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...
      Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
      - Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
      - Já vos disse que não.
      - Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?
      - Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
      - Negas esta morte?
      - Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
      - Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!
      Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

sábado, 19 de setembro de 2015

O Diabo na visão de Rubem Braga

      “Eu e Bebu na hora neutra da madrugada
      Muitos homens, e até senhoras, já receberam a visita do Diabo, e conversaram com ele de um modo elegante e paradoxal. Centenas de escritores sem assunto inventaram uma palestra com o Diabo. Quanto a mim, o caso é diferente. Ele não entrou subitamente em meu quarto, não apareceu pelo buraco da fechadura, nem sob a luz vermelha do abajur. Passou um dia inteiro comigo. Descemos juntos o elevador, andamos pelas ruas, trabalhamos e comemos juntos.
      A principio confesso que estava um pouco inquieto. Quando fui comprar cigarros, receei que ele dirigisse algum galanteio baixo à moça da tabacaria. É uma senhorinha de olhos de garapa e cabelos castanhos muito simples, que eu conheço e me conhece, embora a gente não se cumprimente. Mas o Diabo se comportou honestamente. O dia todo – era um sábado – correu sem novidade. Ele esteve ao meu lado na mesa de trabalho, no restaurante, no engraxate, no barbeiro. Eu lhe paguei o cafezinho; ele me pagou o bonde.
      À tarde, eu já não o chamava de Belzebu, mas apenas de Bebu, e ele me chamava de Rubem. Nossa intimidade caminhava rapidamente, mesmo sem a gente esperar. Quando um cego nos pediu esmola, dei duzentos réis. É meu hábito, sempre dou duzentos réis. Ele deu uma prata de dois mil-réis, não sei se por veneta ou porque não tinha mais miúdo. Conversamos pouco; não havia assunto.
      À noite, depois do jantar, fomos ao cinema... Outra vez me voltou a inquietude que sentira pela manhã. Por coincidência, ele ficou sentado junto a duas mocinhas que eu conhecia vagamente, por serem amigas de uma prima que tenho no subúrbio. Temi que ele fosse inconveniente; eu ficaria constrangido. Vigiei-o durante a metade da fita, mas ele estava sossegado em sua cadeira; tranquilizei-me. Foi então que reparei que ao meu lado esquerdo sentara-se uma rapariga que me pareceu bonita. Observei-a na penumbra. A sua pele era morena, e os cabelos quase crespos. Sentia a tepidez de seu corpo. Ela acompanhava a fita com muita atenção. Lentamente, toquei o seu braço com o meu; era fácil e natural; isto sempre acontece por acaso com as pessoas que estão sentadas juntas no cinema. Mas aquela caricia banal me encheu as veias de desejo. Suavemente, deslizei a minha mão para a esquerda. A moça continuava olhando para o filme. Achei-a linda e tive a impressão de que ela sentia como eu estava emocionado, e que isto lhe dava prazer.
      Mas neste momento, ouço um pequeno riso e viro-me. Bebu está me olhando. Na verdade não está rindo; está sério. Mas em seus olhos há uma qualquer malícia. Envergonhei-me como uma criança. A fita acabou e não falamos no incidente. Eu fui para o jornal fazer o plantão da noite.
      Só conversamos à vontade pela madrugada. A madrugada tem uma hora neutra que há muito tempo observo. É quando passo a tarde toda trabalhando, e depois ainda trabalho até a meia-noite na redação. Estou fatigado, mas não me agrada dormir. E aí que vem, não sei como, a hora neutra. Eu e Bebu ficamos diante de uma garrafa de cerveja em um bar qualquer. Bebemos lentamente sem prazer e sem aborrecimento. Na minha cabeça havia uma vaga sensação de efervescência, alguma coisa morna, como um pequeno peso.  Isto sempre me acontece: é a madrugada, depois de um dia de trabalheiras cacetes. Conversamos não me lembro sobre o quê. Pedimos outra cerveja. Muitas vezes pedimos outra cerveja. Houve um momento em que olhei sua cara banal, seu ar de burocrata avariado, e disse:
      - Bebu, você não parece o Diabo. É apenas, como se costuma dizer, um pobre-diabo.
      Ele me fitou com seus olhos escuros e disse:
      - Um pobre-diabo é um pobre Deus que fracassou.
      - Disse isso sem solenidade nenhuma, como se não tivesse feito uma frase. De repente me perguntou se eu acreditava no Bem e no Mal. Não respondi; eu não acreditava.
      Mas a nossa conversa estava ficando ridícula. Desagradava-me falar sobre esses assuntos vagos e solenes. Disse-lhe isto, mas ele não me deu a menor atenção. Grunhiu apenas:
      - Existem.
      Depois, afrouxou o laço da gravata e falou:
      - Há o Bem e o Mal, mas não é como você pensa. Afinal quem é você? Em que você pensa? Com certeza naquela moça que vende cigarros, de olhos de garapa, de cabelos castanhos...
      Estas palavras de Bebu me desagradaram. Ele dissera exatamente como por acaso: aquela moça de olhos de garapa... Era assim que eu me exprimia mentalmente, era esta a imagem que me vinha à cabeça sempre que pensava nos olhos daquela senhorinha.
      Sei que não é uma comparação nova; há muitos olhos que tem aquela mesma cor meio verde, meio escura, de caldo de cana; olhos doces, muito doces; e muitas pessoas já notaram isso; e até eu já vi essa imagem em uma poesia, não lembro de quem. Mas a coincidência era alarmante; não podia ser coincidência. Bebu lia no meu pensamento, e, o que era pior, lia sem nenhum interesse, como se lê um jornal de anteontem. Isso me irritou:
      - Ora, Bebu, não se trata de mim. Você estava falando do Bem e do Mal. Uma conversa besta...
      Ele não ligou:
      - Está bem, Rubem: o Bem e o Mal existem, fique sabendo. Você morou muito tempo em São José do Rio Branco, não morou?
      - Estive lá quase dois anos. Trabalhava com o meu tio. Um lugarzinho parado...
      - Bem. Lá havia um prefeito, um velho prefeito, o Coronel Barbirato. Mas o nome não tem importância. Imagine isto: uma cidade pequena onde há sempre um prefeito, o mesmo prefeito. Esse prefeito nunca será deposto, nunca deixará de ser reeleito, sempre será o prefeito. E há também um homem que lhe faz oposição. Esse homem uma vez quis depor o prefeito, mas foi derrotado e o será sempre. O povo da cidade teme, aborrece, estima, odeia o prefeito; não importa. Pois é isto.
      Bebu pôs um pouco de cerveja no copo e continuou falando.
      - É isto: o Bem e o Mal. O prefeito acha que os bancos do jardim devem ser colocados diante da igreja: isto é o Bem. O homem da oposição acha que eles devem ficar em volta do coreto? Isto é o Mal. Entretanto...
      - Bebu, deixe de ser chato.
      - Não amole. Você sabe a minha história. Fiz uma revolução contra Deus. Perdi, fui vencido, fui exilado; nunca tive nem implorei anistia. Deus me venceu para todos os séculos, para a eternidade. É o prefeito eterno, ninguém pode fazer nada. Agora, se tem coragem, imagine isto: eu saio de meu inferno uma bela tarde, junto meu pessoal, faço uma campanha de radiodifusão, arranjo armamento, vou até o Paraíso e derroto aquele patife. Expulso de lá aquela canalha, todas aquelas onze mil virgens, aquela santaria imunda. O que acontece?
      Eu não respondi. Irritava-me aquele modo de falar. Bebu continuou com mais veemência:
      - Acontece isto, seu animal: não acontece nada! Você reparou quando uma revolução vence? Os homens se renderão diante do fato consumado. O Bem será o Mal, e o Mal será o Bem. Quem passou a vida adulando Deus irá para o inferno deixar de ser imbecil. Eu farei a derrubada: em vez de anjinhos, os capetinhas; em vez dos santos, os demônios. Tudo será a mesma coisa, mas exatamente o contrário. Não precisarei nem modificar as religiões. Só mudar uma palavra nos livros santos: onde estiver ‘não’, escrever ‘sim’, onde estiver ‘pecado’, escrever ‘virtude’. E o mundo tocará para a frente. Vocês não seguirão a minha lei, como não seguem a dele; não importa, será sempre a lei.
      Eu me sentia atordoado. Percebi que lá fora, na rua, as lâmpadas se apagavam e murmurei: seis horas. Bebu falava com um ar de desconsolo.
      - Mas não pense nisto. Aquele patife está firme. É possível depô-lo? Impossível! Impossível...
      Olhei a sua cara. Dentro de seus olhos, no fundo deles, muito longe, havia um brilho. Era uma pequena, miserável esperança, muito distante, mas todavia irredutível. Senti pena de Bebu. É estranho, eu não posso olhar uma pessoa assim, no fundo dos olhos, sem sentir pena. Fui consolando:
      - Enfim, meu caro, não adiantaria coisa alguma. Você como está, vai bem. Tem seu prestígio...
      - Eu estou bem? Canalha! Pensa que, quando me revoltei, foi à toa? Conhece o meu programa de governo, sabe quais foram os ideais que me levaram à luta? Pode explicar por que, através de todos os séculos, desde que o mundo não era mundo até hoje, até sempre, fui eu, Lúcifer, o único que teve peito para se revoltar? Você sabe que, modéstia à parte, eu era o melhor da turma? Eu era o mais brilhante, o mais feliz, o mais puro, era feito de luz. Por que é que me levantei contra ele, arriscando tudo? O governo atual diz que eu fui movido pela ambição e pela vaidade. Mas todos os governos dizem isto de todos os revolucionários fracassados! Olhe, você é tão burro que eu vou lhe dizer. Esta joça não ficava assim não. Eu podia lhe contar o meu programa; não conto, porque não sou nenhum desses políticos idiotas que vivem salvando a pátria com plataformas. Mas reflita um pouco, meu animal. Deus me derrotou, me esmagou, e nunca nenhum vencedor foi mais infame para com um vencido. Mas pelo amor que você tem a esse canalha, diga-me: o que é que ele fez até agora? A vida que ele organizou e que ele dirige não é uma miséria? - uma porca miséria? Você sabe perfeitamente disto. Os homens não sofrem, não se matam, não vivem fazendo burradas? É impossível esconder o fracasso. Deus fracassou, fracassou mi-se-ra-vel-men-te! E agora, vamos, me diga: por pior que eu fosse, acha possível, camarada, acha possível que eu organizasse um mundo tão ridículo, tão sujo?
      Não respondi a Bebu. Esvaziamos em silêncio o último copo de cerveja. Eu ia pedir outra, mas refleti amargamente que não tinha mais dinheiro no bolso. Ele, por sua vez, constatou o mesmo. Saímos. Lá fora já era dia:
      - Puxa vida! Que sol claro, Bebu! Isto deve ser sete horas.
      Andamos até a esquina da Avenida.
      Ele me perguntou:
      - Onde é que você vai?
      - Vou dormir. E você?
      Bebu me olhou com seus olhos escuros e respondeu com um sorriso de anjo:
      - Vou à missa...
      Julho, 1933”

      (“200 Crônicas Escolhidas”, Rubem Braga, Círculo do Livro S.A., São Paulo, Páginas 49 a 53.)