segunda-feira, 30 de novembro de 2015

domingo, 29 de novembro de 2015

Soneto monossilábico 7

O Sol, no céu, me dá o tom da luz,
da cor, do som que me vem nu, que traz
na luz do Sol, no céu a cor da cruz
e sem ter dó em luz de dor me faz!

A dor que vem é dom que não faz jus
à cor, ao tom, à luz que tem na paz
e nu me faz à luz do Sol que pus
no céu de dor, e cor, e luz... não mais!

No céu de dor de um Sol sem par, na fé
eu vou, de luz em luz, na dor e sei
que a cor e o tom da luz de dor me vem...

E traz a mão que faz a cor da lei
da dor que vem, e sei que luz não é;
No céu de dor, meu Sol a luz não tem!

Ciro Di Verbena

sábado, 28 de novembro de 2015

Soneto monossilábico 6

SOMETO

pika
roxa
kica
coxa

moça
zorra
poça
porra

coça
fica
roça

bica
grossa
pika

Eduardo Kac (pornopoeta)

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Soneto monossilábico 3

Minha Vida

Vou
só.
Sou
mó.

(Ou
dou
dó?)

Ardo:
- Venha,
sorte!

Tardo...
(Vem a
morte.)

Eno Teodoro Wanke

terça-feira, 24 de novembro de 2015

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

domingo, 22 de novembro de 2015

Água-Forte - Manuel Bandeira

Água-Forte
Manuel Bandeira

O preto no branco,
O pente na pele:
Pássaro espalmado
No céu quase branco.

Em meio do pente,
A concha bivalve
Num mar de escarlata.
Concha, rosa ou tâmara?

No escuro recesso,
As fontes da vida
A sangrar inuteis
Por duas feridas.

Tudo bem oculto
Sob as aparências
Da água-forte simples:
De face, de flanco,
O preto no branco.


Água-Viva
 Marcos Nunes Filho
(Calcado em “Água-Forte”, de Manuel Bandeira.)

As trevas na luz,
A dor na ferida:
Ó fênix do sonho,
Teu céu me seduz.

Em meio da dor,
Amêndoas degusto
Num sumo violeta.
Quem é que Amará?!...

Até já nem meço
O sangue vertido.
Os deuses supremos
Jamais são feridos.

E tudo bem claro:
Futuras ciências,
Água-Viva louca...
No sonho da luz
As trevas na luz...

sábado, 21 de novembro de 2015

O Reformador da Natureza - Monteiro Lobato

O Reformador da Natureza

(Adaptado de Monteiro Lobato)

      Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de pôr defeito nas coisas da natureza. O mundo para ele estava errado e a natureza só fazia asneiras.
      - Asneiras, Américo?
      - Pois então?!... Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso. Ali está uma jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas, e lá adiante vejo colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira. Não tenho razão?
      Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência a natureza.
      - Mas o melhor – concluiu – é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?
      E Pisca-Pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.
      Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos. Uma beleza!
      De repente, no melhor da festa, plaf!, uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio o nariz.
      Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão malfeito assim.
      E segue para casa refletindo:
      Que espiga!... Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-Pisca, morto pela abóbora por mim posta no lugar da jabuticaba? Hum! Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem.
      E Pisca-Pisca continuou a piscar pela vida afora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Uma mulher espera por mim - Walt Whitman

Uma mulher espera por mim

Walt Whitman

Uma mulher espera por mim, ela tudo contém, nada falta,
No entanto, tudo ficou faltando se o sexo faltou,
ou se o orvalho do varão certo estivesse faltando.

O sexo contém tudo, corpos, almas,
Significados, experiências, purezas, delicadezas,
resultados, promulgações,
Canções, mandamentos, saúde, orgulho,
o mistério da maternidade, o leite seminal,
Todas as esperanças, benefícios, doações,
todas as paixões, amores, belezas, deleites da terra,
Todos os governos, juízes, deuses seguiram pessoas da terra,
Estes estão contidos no sexo como partes de si mesmo e justificativas de si mesmo.

Sem pejo a mulher de quem eu gosto
conhece e assegura a delícia do seu sexo,
Sem pejo a mulher de quem eu gosto conhece e assegura as suas.

Agora vou dispensar-me de mulheres frias,
Vou ficar com ela que espera por mim e com
aquelas mulheres que são apaixonadas e me satisfazem,
Vejo que me compreendem e não me negam,
Vejo que são dignas de mim, serei o marido vigoroso de tais mulheres.

Elas não são em nada menos do que eu,
Têm a face curtida por sóis luzentes e o sopro dos ventos,
A sua carne possui a velha divina maleabilidade e energia,
Sabem como nadar, remar, cavalgar, lutar, atirar, correr,
golpear, recuar, avançar, resistir, defenderem-se,
São irrevogáveis quanto a seus direitos - são calmas,
claras, seguras de si próprias.

Trago-as para perto de mim, vocês mulheres,
Não posso deixá-las ir, faria bem a vocês,
Estou para vocês e vocês estão para mim,
não apenas para o nosso bem, mas para o bem de outros,
Envoltos em vocês adormecem os maiores heróis e bardos,
Recusam-se a despertar ao toque de qualquer homem, a não ser eu.

Sou eu, mulheres, faço meu caminho,
Sou duro, amargo, grande, indissuadível, mas amo-as,
Eu não as faço sofrer além do necessário para vocês,
Eu verto a substância para encetar filhos e filhas aptos para estes EUA,
pressiono com o músculo rude e lento,
Eu me abraço efetivamente, não escuto súplicas,
Não ouso me afastar até que deposite o que, há muito,
estava acumulado dentro de mim.Através de vocês faço
escoar os reprimidos rios de mim mesmo,
Em vocês contenho mil lágrimas progressivas,
Sobre vocês eu enxerto os enxertos do mais amado de mim e da América,
Os pingos que destilo sobre vocês farão crescer moças impetuosas e atléticas,
novos artistas, músicos e cantores,

As crianças que eu gerar sobre vocês hão de gerar crianças por sua vez,
Hei de exigir homens e mulheres perfeitos do meu consumir amoroso,
Espero que eles se interpenetrem com outros, como eu e vocês nos interpenetramos agora,
Vou contar os frutos das ejeções abundantes deles, assim como conto os frutos das ejeções abundantes que eu agora dou,
Vou aguardar as colheitas de amor,
desde o nascimento, vida, morte, imortalidade,
do que planto tão amorosamente agora.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Elegia XIX: Indo para a Cama - John Donne

Elegia XIX: Indo para a Cama

John Donne

Vem, oh senhora, vem, que ócios não me permito;
Fico agitado toda vez que não me agito.
Quando o inimigo ao inimigo espreita e escuta,
Mais se cansa da espera que da própria luta.
Tira este cinto, cintilante anel celeste,
Que em torno a um mundo mais formoso dispuseste.
Desprende logo o peitoral onde lusis,
Que barra os olhos dos xeretas imbecis.
Despe-te, pois o carrilhão sonoro chama,
Dizendo a mim que a hora chegou de ir para a cama.
Abre o teu espartilho, que eu invejo em tudo:
Contudo, ele te abraça; e se mantém, contudo.
Tua saia, ao cair, revela tal primor,
Que é igual à sombra a se afastar do campo em flor.
Fora a coroa entrelaçada de metal;
Solta os cabelos, diadema natural.
Tira os sapatos, e, sem medo, ora te avia
Ao sacrário do amor, à cama tão macia.
Com essas vestes cândidas, do céu amigo
Os anjos vinham. Anjo meu, trazes contigo
Um paraíso igual ao de Maomé; e embora
Haja espíritos maus também de branco, agora
Sabe-se bem qual anjo é mau, e o bom qual é:
Um deixa em pé os cabelos, o outro a carne em pé.

Concede uma licença à minha mão errante,
Para ir ao meio, encima, embaixo, atrás, adiante.
Oh, minha América! Oh, meu novo continente,
Meu reino, a salvo porque um homem tens à frente.
Tenho aqui minhas minas, meu império aqui;
Que abençoado sou por descobrir a ti!
Este acordo liberta a quem ele segura;
Onde coloco a mão, eu deixo a assinatura.

Nudez completa, da alegria o cerne e a polpa!
Como a alma sai do corpo, o corpo sai da roupa
Para o prazer total. A joia da mulher
E maçã de Atalanta, que sua dona quer
Lançar aos tolos, a que, vendo a gema bela,
Pensem sequiosos no que é dela, e não mais nela.
Como pintura, ou capa de volume, feita
Visando aos leigos, a mulher também se enfeita;
Mas é obra mística, e seu tema se explicita
Somente àqueles a que a graça nobilita,
Como nós. Sendo assim, que eu te conheça inteira;
Sem pejo vem, e, como diante da parteira,
Mostra-te a mim. Atira longe a vestimenta:
Para a inocência punição não se apresenta.

Que esperas? Estou nu... e as horas se consomem.
Mais cobertura tu desejas do que um homem?

(“John Donne: o poeta do amor e da morte”, introdução, seleção, tradução e notas de Paulo Vizioli, J. C. Ismael, Editor, São Paulo, 1985, 2ª Edição, Páginas 39-41.)

Poema musicado por Caetano Veloso:


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Círculo Vicioso - Machado de Assis

         CÍRCULO VICIOSO

         Machado de Assis

         Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
         - “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
         Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
         Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

         - “Pudesse eu copiar o transparente lume,
         Que, da grega coluna à gótica janela,
         Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
         Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

         - “Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
         Claridade imortal, que toda a luz resume!”
         Mas o sol, inclinando a rútila capela:

         - “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
         Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
         Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”


         (“Poesias Completas”, Machado de Assis, Editora Civilização Brasileira S.A., Rio de Janeiro, INL, Brasília, 2ª edição, 1977, página 446.)

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Uma Modesta Proposta – Jonathan Swift

         A sátira “Uma Modesta Proposta”, de Jonathan Swift, 1667-1745, escritor irlandês, autor de “Viagens de Gulliver”, encontra-se na obra “Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal”, organização de Flávio Moreira da Costa, Ediouro, Rio de Janeiro, 2001, 3ª edição, páginas 101 a 108, tradução de Leonardo Fróes. Traz um subtítulo: “Para Impedir que os Filhos de Gente Pobre da Irlanda sejam um Peso para os seus Pais ou o País; e para torná-los úteis ao Povo”.
         Swift fala, no início, do melancólico espetáculo de crianças miseráveis, famintas e esfarrapadas, a importunar os cidadãos pedindo esmolas, acompanhadas de suas mães, a implorar pelo sustento de seus filhos. Diz que aquele que encontrasse um sistema “simples, barato e lícito” para tornar tais crianças elementos aproveitáveis para a sociedade, receberia a gratidão do povo. Até um ano de idade os bebês podem ser amamentados pelas mães, sem nenhuma despesa. O plano de Swift prevê cuidar dos infantes após os primeiros doze meses de vida, de tal maneira que, ao invés de se constituírem num peso para a coletividade, possam, ao contrário, ajudar a alimentar muita gente. A proposta evitaria também os abortos voluntários e a morte de filhos bastardos.
         De um total de um milhão e meio de habitantes, na Irlanda nascia aproximadamente cento e vinte mil crianças por ano, naquela época, de pais miseráveis. Como sustentá-los? Eis uma questão dificílima! Só poderiam se dedicar ao roubo após os seis anos de idade. E meninos e meninas com menos de doze anos não eram comercialmente vendáveis. Desta forma, Swift propôs o seguinte, esperando não encontrar nenhuma objeção:
         “UM Americano muito sabido, do meu Conhecimento em Londres, assegurou-me que uma Criancinha sadia e bem criada é, com um Ano de idade, o Alimento mais delicioso, nutritivo e benéfico que existe, seja Cozida, Grelhada, Assada ou Ferventada; e não duvido de que sirva igualmente para um Fricassê ou um Ragu.”
         Fricassê é um guisado de carne partida em pequenos pedaços, com gemas de ovos e variados temperos. Ragu é carne ensopada ou guisada com legumes e molhos.
         Daquelas cento e vinte mil crianças, um sexto seria reservado para a procriação, ou seja, vinte mil. Destas vinte mil, a quarta parte seria de machos. Assim, com doze meses de existência, cem mil bebês estariam à venda para a classe alta, em todo o Reino. E se aconselharia às mães deixar os seus filhos mamar à vontade no último mês, ficando desta forma gordinhos e rechonchudos, o ideal para uma mesa farta.
         “Uma Criança dará dois Pratos numa Recepção para Amigos; e, quando a Família jantar sozinha, um dos Quartos, traseiro ou dianteiro, será um Prato razoável que, temperado com um pouco de Pimenta e Sal, dará um ótimo Ensopado no quarto Dia, especialmente no Inverno.”
         Um recém-nascido pesaria algo em torno de doze libras. Com um ano poderia chegar a vinte e oito.
         “RECONHEÇO que essa Comida será um pouco cara e, portanto, mais adequada para Proprietários de Terras; que, já tendo devorado a maioria dos Pais, parecem plenamente fazer Jus aos Filhos.”
         A carne de criança estaria disponível o ano inteiro. O custo da criação de bebês de mendigos, trabalhadores manuais e camponeses, incluindo suas vestes, seria de dois xelins por ano; e nenhum cavalheiro abastado se recusaria a pagar dez xelins pela carcaça de um infante bem nutrido. A mãe teria oito xelins de lucro.
         “OS que aproveitam tudo (como devo reconhecer que os Tempos exigem) podem esfolar a Carcaça, cuja Pele, artificialmente tratada, dará admiráveis Luvas para Senhoras e Botas de Verão para Cavalheiros finos.”
         Em Dublin, poderiam se construir matadouros para esta finalidade, não faltando açougueiros. Se bem que o autor da proposta recomende a compra das crianças ainda vivas, matando-as em casa mesmo, a facadas, como se faz com os leitões, preparando a carne ainda quente.
         A seguir, Swift discorre sobre a inconveniência do consumo de carne de rapazinhos e mocinhas de doze a quatorze anos, referindo-se aos famintos, carentes de meios de sobrevivência. Os machos teriam a carne dura e magra, não valendo a pena engordá-los. As fêmeas tornar-se-iam em breve reprodutoras.
         Passa o autor a enumerar algumas vantagens de sua proposta. Os camponeses, arruinados pelos donos das terras, teriam nos filhos uma renda assegurada contra a miséria total. Com o negócio em larga escala, as reservas da Irlanda aumentariam em milhares de libras. Os reprodutores permanentes, além de auferirem um lucro de oito xelins por ano com a venda dos filhos, ficariam livres da obrigação de sustentá-los após os doze meses de idade. Os donos de tabernas se esmerariam em oferecer aos distintos fregueses os melhores pratos, com as receitas mais sofisticadas e caras. Aumentaria o carinho das mães para com os filhos, posto que estes dariam lucros e não despesas à sociedade; elas se rivalizariam, na disputa por levar ao mercado a criança mais gordinha. Os homens amariam muito mais as esposas grávidas, não mais as espancando, tratando-as com o mesmo cuidado que dispensam às suas éguas e porcas prenhes. A carne dos leitões não pode se comparar à de um bebê de um ano, bem criado e gorducho, quer em sabor ou pompa. Assada inteira, uma criança faria grande sucesso nos banquetes oficiais.
         “SUPONDO-SE que Mil Famílias desta Cidade fossem Fregueses constantes de Carne de Criança, além de outras que a tivessem em Reuniões festivas, particularmente Casamentos e Batizados, calculo eu que Dublin consumiria por Ano cerca de Vinte Mil Carcaças, e o resto do Reino (onde provavelmente elas custariam um pouco mais barato), as demais Oitenta Mil.”
         Diz Swift não lhe ocorrer objeção alguma contra a sua proposição, a não ser a de reduzir a população do Reino, o que não o desagradaria. Ressalta que esta ideia se limita somente ao território da Irlanda. Afirma que ela não implica em gastos, nem seria contrária aos interesses da Inglaterra.
         Termina ele com estas palavras:
         “DECLARO, com toda a Sinceridade do meu Coração, não ter o menor Interesse pessoal ao me empenhar em  promover essa Obra tão necessária; um só Motivo me impele, e é o Bem-estar de todo o nosso País, desenvolvendo para tanto o Comércio, cuidando das crianças, socorrendo os Pobres e dando um pouco de Prazer aos Ricos. Não tenho Filhos pelos quais eu me possa habilitar a ganhar sequer um Vintém; o mais novo já está com nove Anos e a minha Esposa passou da idade de ser Mãe.”

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Vocaboilário – João Rangel Coelho (Parte 2)

Boijudo é Boi engordado,
oboié, do Boi requinta,
boiçal é Boi retardado,
boinitão, Boi boa pinta.

Quando o Boi é Ferdinando,
com tendências feminis,
passa a vida só cheirando
boininas e boigaris.

E, reboilando, ranheta,
a gingar, sem menoscabo,
ele se diz borboileta,
com dois chifres e um só rabo.

Se não encontra – coitado! –
por entre as vacas aceite,
chora o leite derramado,
sem dar às vacas deleite.

Boidelaire e até Boicage,
de poesia tão seleta,
cada qual, conforme age,
deve ser um Boi poeta.

No dicionário do jeca
dizem-se coisas assim:
Boi invertido é boineca,
jornal de Boi, boiletim.

Boiando na crista acesa
de tanta palavra fina,
a boilacha é, com certeza,
biscoito que o Boi rumina.

Para mostrar que ele é
assíduo em coisas bizarras,
a boiate é o cabaré,
onde o Boi faz suas farras.

Boicejo é seca bovina,
boidum do Boi são odores
e bota de Boi, boitina,
é ferradura, senhores.

Boirocoxô é Boi leito,
já macróbio, já sem garra;
boiêmio é Boi de talento,
que passa a noite na farra.

Nesse assunto caricato
(dona Vaca me perdoe),
mas afirmo que boiato
é só fofoca de Boi.

Se o Boi, embora pascácio,
fosse troço e manda-chuva,
seria Zé Boinifácio
ou Quintino Boicaiúva.

Há muitos Bois de tutano
e eu, em resumo, os defino:
Boi da Bahia é boiano,
Boi que dança é boilarino.

Ora, se, ouvindo os meus brados
e os meus períodos incertos,
uns estão aboibalhados,
outros estão boiquiabertos,

se em nosso grupo estupendo,
de apetite aboiminando,
nem todos estão bebendo,
mas todos estão boiando,

encerro o meu verbo obscuro
que, a ferir as vossas oiças,
de tão longo e tão escuro,
parece o túnel Reboiças.

Depois de tanta boutade,
feita de afago e de coice,
já percebi que, em verdade,
meu repertório acaboi-se.

Só por isso, ao despedir-me
e ao deixar este palanque,
imitando, com voz firme,
certo adeus da gíria ianque,

amigos meus, perdoai!
ó minha gente, perdoe!
Se os hippies dizem – “bye! bye!”,
eu só vos digo – “boi! boi!”.

         (“Meu Barro Municipal”, João Rangel Coelho, Arsgráfica Editora Ltda., Duque de Caxias/RJ, 1977, páginas 193 a 197.)

domingo, 15 de novembro de 2015

Vocaboilário - João Rangel Coelho (Parte 1)

VOCABOILÁRIO

João Rangel Coelho

Depois deste lauto almoço,
já na hora do café,
eu, com a mente em alvoroço
e com a alma em marcha-à-ré,

para todos, meio asnático,
- que cada um me perdoe -
vou fazer, como gramático,
a apologia do Boi.

Graças ao Boi, velho otário,
num trabalho filológico,
fiz o meu Vocaboilário,
que é também bestialógico.

Se o Egito o Boi idolatra,
digamos o nosso amém,
que o Boi, ao dar-nos a alcatra,
dá-nos o estrume também.

O Boi, animal sagrado,
com irreverências de crítico,
tem chifres, sem ser casado,
tem rabo, sem ser político.

Numa expressão bem tristonha,
pelo labor se destaca
e, altivo, não se envergonha
de sua mãe, que é uma vaca.

Na charrua, satisfeito,
ou dentro do Matadouro,
merece o nosso respeito,
pois todo Boi é um ex-touro.

Virilidade em descanso,
o Boi, que detesta a rixa,
pode ser um bicho manso:
é bicho, mas não é bicha.

Pelo Boi é que promovem
as moças a robustez...
Toda mulher, quando jovem,
tem seu boi de mês em mês.

Manso, moroso, marcado,
calmo, cordato, cornudo,
se não é civilizado,
também não é boitocudo.

O Boi, paciente criatura,
que triste mugido entoa,
tem nos olhos a doçura
de quem, sofrendo, perdoa.

O Boi também é poeta
e, como bom trovador,
suas mágoas interpreta
em trovas deste teor:

“Até nas vacas se encontra
a diferença da sorte:
umas são vacas de leite,
outras são vacas de corte”.

Muito bem. Se a Academia
de Letras – que anedotário! –
trabalha, dia por dia,
a fazer seu Dicionário,

é justo que nós do time
em torno a esta mesa, agora,
tachando o Boi de sublime,
numa linguagem sonora,

toda em termos bem boilados,
com sabor veterinário,
façamos, avacalhados,
o nosso Vocaboilário.

Se a semântica não mente
e descobre maravilhas,
boi... cotado é tão somente
o gostosão das novilhas.

Nosso alegre calepino
ensina, com fins morais,
que o Boi trouxa, o Boi cretino,
é um boibo e nada mais.

Boifetada ou boifetão
é, será e sempre foi,
segundo a nossa lição,
um bruto coice de Boi.

Boina azul ou encarnada,
com apuro ou sem apuro,
na cabeça colocada,
é chapéu de Boi, no duro.

Boitequim... o boitequim,
onde a gente afoga a mágoa,
é, mais ou menos, assim
como o bar do Boi pau-d’água.

E boilina é o Boi sem linha
que, com as manhas mais velhacas,
sem fazer qualquer vaquinha,
vai se encostando nas vacas.

sábado, 14 de novembro de 2015

"A Grande Síntese" - Pietro Ubaldi (Gênio e Nevrose)

         O extraordinário texto que transcreverei a seguir, encontra-se na obra “A Grande Síntese”, do escritor místico ítalo-brasileiro Pietro Ubaldi, Edição Lake, São Paulo, 7ª edição, 1950, páginas 332 a 336. Ele fala de “nevrose”. Nos dicionários modernos, “nevrose” é apenas neurose. Não satisfeito com esta definição, procurei uma antiga enciclopédia (cujos dados editoriais não anotei) e encontrei este outro sentido: “Nevrose – Doença caracterizada por perturbações do sistema nervoso sem lesão anatômica apreciável; qualquer doença nervosa”. Na “Encyclopedia e Diccionario Internacional”, W. M. Jackson, inc. Editores, Rio de Janeiro – Nova York, Volume XIII, página 7852, lemos: “Nevrose (do gr. neuron, nervo), s. f. Doença apyretica, caracterisada por perturbações do systema nervoso sem lesão anatomica apreciavel”. (Com a grafia antiga.) No livro “Racionalismo Cristão”, Centro Redentor, Rio de Janeiro, 1991, 38ª edição, página 34, lemos: “Dá-se o nome de Nevroses, em Medicina, a estados mórbidos que consistem em perturbações funcionais sem lesões materiais nem causas apreciáveis, que se observam, principalmente, não só na vida de relação, mas também na vegetativa”. Eis o texto:

            "GÊNIO  E  NEVROSE

         Encerraremos a exposição da teoria do super-homem, observando como ele se manifesta na evolução biológica, sob a forma do gênio, procurando, pois, compreender as afinidades que, devido a conclusões erradas, se fizeram ressaltar entre o seu tipo e a degeneração nevrótica, e definir, por fim, o fenômeno da degradação biológica no processo genético do psiquismo.
         Enquanto que a mediocridade estacionária pára, na sua fase, em perfeito equilíbrio, lançam-se contra os que tentam novas vias todos os ataques das forças biológicas. O misoneísmo, (nota minha: aversão ao que é novo) como garantia de estabilidade, é impulso de nivelamento, e a vida experimenta asperamente as antecipações e as criações. Se o gênio passa pela terra como um turbilhão, a massa se agarra a ele para mantê-lo em baixo. No tipo comum, os instintos estão em proporção com as condições ambientes; há uma correspondência, já estabelecida antes que o indivíduo nasça, entre ele e a coletividade, e essa correspondência o espera, de maneira que ele encontre já preparado o trabalho e a sua satisfação. E a compreensão é automaticamente perfeita. Contrariamente, o gênio – monstruosa hipertrofia do psiquismo – colocado numa posição biológica supranormal, se encontra, em tudo e por tudo, fora de fase. É impossível estabelecer uma correspondência entre o seu instinto, que normaliza o supranormal, e o ambiente, que exprime uma outra fase e oferece outros embates. A diferença de nível produz uma desproporção; a compreensão não se dá; o desequilíbrio entre a sua alma e o mundo é insanável; a conciliação entre a sua natureza e a vida é impossível.
         E o gênio passa, solitário e dolorido, mas consciente do seu destino; incompreendido e gigantesco, enojado dos ídolos da multidão, aturdido com o ruído da vida, desatento e inábil porque sua alma está toda embevecida com um cântico sem fim que do seu íntimo se desata e sobe ao encontro do infinito. Estranho sonhador, presa do tormento sagrado da criação, absorvido nos ócios fecundos em que amadurece o invisível e íntimo labor, sofre de uma paixão a que responde não o homem, mas o universo. A imensidão do infinito lhe está perto, e ele não vê a terra que atrai todos os olhares e todas as paixões. Vive de lutas titânicas, pede à vida a realização do ideal, sem possibilidade de consentir na mediocridade, aspirado como um turbilhão no afã da evolução. Ele conhece o esmorecimento de quem defronta sozinho o abismo dos grandes mistérios, a vertigem das grandes alturas, o amargurado isolamento da alma em face da inconsciência humana; conhece a luta atroz contra a animalidade a querer ressurgir, as imensas fadigas e os perigos que esperam quem quer desferir o vôo. Os cegos dizem: está louco. Ele se sente esmagado pelo inútil peso do número, compreende a inferioridade de quem não o compreende. Também a ciência, filha da mentalidade utilitária da mediocridade incompetente, mas ávida de julgar, sentencia: nevrose.
         Mas o gênio não pode descer; sente o seu Eu a gritar e não pode calar. Ele não é, como os outros, simplesmente um corpo; é, acima de tudo, uma alma. O espírito, que em tantos cochila e tem que nascer, nele aparece gigante, evidente, troveja e se impõe. Quem pode compreender suas lutas titânicas? A humanidade caminha lentamente, sob o esforço de sua evolução; ele está à frente e arca com toda responsabilidade; arrasta o peso de todos.
         A multidão diz: anormal; a ciência diz: nevrose. Mas conhece porventura a ciência as relações entre dor e ascensão espiritual, entre doença e gênio? Conhece os profundos equilíbrios em que se oculta a função biológica do patológico? Conhece sob que leis de compensação física e moral funcionam as íntimas harmonias da vida? Mas, se ignora todos os fenômenos sutis da alma, e até mesmo a nega, que pode compreender essa ciência fragmentária, incapaz de síntese, dessa complexidade de leis superiores de cuja existência nem sequer suspeita? E como é possível constringir o supranormal, a antecipação biológica, nos limites do tipo médio? E por que este que, evolutivamente, representa o mais medíocre valor, há de ser escolhido para modelo humano? Que é que justifica esse nivelamento, essa redução de altitude a categorias preconcebidas, esse apriorismo que inverte a visão do fenômeno, exaltando no gênio apenas o lado pseudo-patológico da nevrose? Não é patológico o cansaço proveniente de um enorme trabalho, o desequilíbrio necessário dado pelas antecipações evolutivas, o tormento e o esforço das mais elevadas maturações, a inconciliabilidade inevitável entre o super-psiquismo conquistado e o organismo animal.
         Estas vias de aperfeiçoamento moral estão em exata continuação da evolução orgânica darwiniana, e a ciência que compreendeu uma, deveria, por coerência, compreender a outra. É lei de equilíbrio natural que toda hipertrofia, como toda atrofia, seja compensada. Assim como no campo orgânico todo indivíduo tem normalmente um ponto de menor resistência e maior vulnerabilidade, que é cercado por um reforço proporcional de outros pontos estratégicos, também no campo psíquico há um desenvolvimento de qualidades de que a mediania nem sequer suspeita. Não se pode julgar um tipo psíquico, de exceção, com os critérios e unidades de medidas comuns, para relegá-lo sumariamente ao anormal e ao patológico. Insisto sobre isto, porque assim se inverterá a apreciação daquele novo tipo de homem que os tempos modernos têm exatamente a função de criar.
         É sufocar a evolução esse querer reconduzir ao anormal tudo o que exorbita da maioria medíocre, constituindo o tipo humano mais comum, de valor duvidoso, como tipo ideal. É um delito esse querer rebaixar aquilo que não se compreende, esse conjugar e confundir, colocando igualmente fora da lei o sub-normal e o supranormal, isto é, fenômenos que estão simplesmente nos antípodas.
         À parte as injustiças históricas, delineia-se também hoje, por vezes, o tipo humano tendente ao supranormal: é o terceiro tipo de homem, como já vimos. É um tipo de personalidade que exprime, por madureza de instintos, aprimoramento moral e superior intelectualidade, a realizada assimilação das qualidades mais úteis à convivência social, constitutivas do edifício da virtude, a formação, realizada, do tipo para o qual a humanidade tende no seu desenvolvimento. Inteligência, dinamismo, apurada sensibilidade e percepção do belo e do bom, uma retidão em que estão fixados os mais altos ideais de honestidade e altruísmo, que são índices do grau de evolução; uma superior aptidão para fortalecer o encadeiamento social e a funcionar no organismo coletivo; sinais todos esses de nobreza de raça, de aristocracia de espírito.
         Entretanto, há ao mesmo tempo uma sensibilização dolorífica reveladora do esforço para novas adaptações, o tormento de um ser que geme sob o peso de violentas deslocações biológicas, a rebelião de um funcionamento orgânico não costumeiro e que não sabe dobrar-se às exigências que um psiquismo preponderante impõe, na improvisa dilatação das suas potencialidades. Se hoje ele parece um débil, acumula em si, entretanto, qualidades e poderes espirituais que o admitirão, um dia, entre os futuros dominadores do mundo, enquanto que aos normais, aos equilibrados do ciclo das funções animais, caberão, por seleção natural, as funções de servos. Se ele manifesta uma tendência a neurastenizar-se, é que possui um temperamento vanguardeiro, que chama a si o risco da preparação das verdades futuras e desempenha uma grande função no  equilíbrio da vida. Se na sua própria emotividade e afetividade, demasiadamente intensas, na exaltação da inteligência e da sensibilidade, na moral aprimorada, há qualquer coisa de ultra-refinado – como de raça aristocrática que, por estar demasiado madura, agoniza e morre – socialmente ele é um fermento precioso de sensibilidade e atividade, uma centelha de vida no meio de uma massa de medíocres em que a inércia predomina e a vida não sabe senão manter-se e reproduzir-se, fechada no ciclo de suas funções animais.
         E estes seres delicados foram e são obrigados a viver no mundo de todos. E que terrível abalo pode reservar para eles a luta que o tipo comum, carente de escrúpulos e de sensibilidade, pode conduzir tão brutalmente! Eles são generosos e honestos; não sabem prostituir a alma todos os dias por uma vantagem imediata; vivem daquilo que o mundo só irá ver daqui a milênios e pagam caro a própria superioridade. A dor, caminho das grandes ascensões, é o seu mais íntimo companheiro. Neles a natureza humana, que morre para dar vida ao psiquismo super-humano, sofre o tormento da agonia e, com uma afetividade intensa, incompreensível para os normais, implora desesperadamente ajuda para não morrer. O mundo ri, mas já foi assinalado na petição do Grande entre os grandes: ‘Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem’. O homem julgado inconsciente! Triste herança a normalidade! E quanto maior é o espírito, tanto mais fortemente é premido pela dor, para a sua ascensão. É lei da natureza que as grandes criações sejam filhas das grandes dores; que o processo das criações biológicas, que é o mais fecundo, seja o mais laborioso, o mais onerado de fadigas. E qual o trabalho mais penoso do que o de vencer a inércia biológica e dominar o impulso de forças milenárias condensadas no atavismo?
         É bem grave, para quem vive nesse mundo e desses trabalhos, o ter de acrescentar à luta exterior de todos a tensão dessas grandes guerras interiores e o encerrar no centro de si, em lugar de um cérebro aliado e amigo, que ajude na conquista material, um cérebro que visa meta diversa, que não auxilia mas agride a vida, lhe transforma o trabalho e complica os obstáculos, que aumenta o sofrimento, acrescenta às dificuldades do mundo exterior o peso enorme do drama íntimo que, por si só, é suficiente para esmagar um homem. Em que terrível problema não se transformará a vida assim vivida, colocada entre a luta exterior e a interior, ambas sem descanso? A deslocação das aspirações humanas e a inversão dos valores comuns isolam e vergastam; a realidade sensória ultraja o sacrifício; o presente não quer morrer pelo amanhã, o corpo pelo espírito, o tangível pelo imponderável. Custa grande esforço a deslocação do eixo da vida e a revalorização de si mesmo num mais elevado nível, a construção de uma alma nova.
         A este ser a ciência chama psicopático. Há, sem dúvida, uma nevrose patológica de síndrome clínico mais ou menos evidente, em que se acha, de fato, exaltada a tonalidade da dor e da sensibilidade, mas demasiadas vezes a ciência há querido reduzir a isso uma quantidade de fenômenos que pertencem ao supranormal e certas maravilhosas compensações da natureza que sublimam o espírito e põem um agigantamento de manifestações intelectuais no coração de uma psique tormentosa. Tem a ciência desvalorizado, assim, um tipo humano que pode vir a ter uma função na economia da vida social. Com essa incompreensão, a ciência tem invertido a sua tarefa, que é a de valorizar as forças da vida. Grande responsabilidade constitui, para quem fala com autoridade, de uma cátedra, o não saber divisar estas mais altas fases da evolução biológica que, não obstante, é tão estrenuamente defendido, assim como o haver compreendido apenas um fragmento da verdade tão somente para rebaixar o espírito ao nível do corpo, não para elevar o homem à dignidade espiritual.”