segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Oração ao Diabo - Orlando Teixeira

ORAÇÃO  AO  DIABO 

Orlando Teixeira
(1874-1902)

Grande Deus Satanás, vermelho deus maldito,
Rei do inferno, senhor absoluto da treva;
Espírito que o mal domina e que o ódio leva,
Arrastado após si, pelo eterno infinito;

Grande deus Satanás, minha alma de precito,
Branca de misticismo, à tua alma se eleva,
E reza esta oração cheia de fé, coeva
Da antiga crença azul do boi Ápis, no Egito.

Dizem que se a alma tens de qualquer desgraçado
Em troca tu lhe dás das torturas o açoite,
E de outros não sei eu que a teu eleito vençam;

Se tanto for mister para que seja amado
Pelos risos bons, a dos olhos da noite,
Grande deus Satanás, lança-me tua bênção.


(“Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, Andrade Muricy,
MEC-INL, 2ª edição, Volume II, Brasília, 1973,
Coleção de Literatura Brasileira, 12, páginas 626-627.)





Série "Diabolu In Versus".

domingo, 30 de agosto de 2015

Nostalgia do Céu - Venceslau de Queirós

NOSTALGIA  DO  CÉU 

Venceslau de Queirós
(1865-1921)

Ei-lo que sonha, triste e só... Que estranho augúrio

A alma te agita, Arcanjo Negro? Que magia,
Que sortilégio, à dura abóbada sombria,
No Orco, te prende o chamejante olhar sulfúreo?

Que encantamento cabalístico assedia
Tua cabeça? Em que palácio, em que tugúrio,
À evocação de Grande Mago, no perjúrio
Presa ficou tua infernal figura esguia?

Nada de mais... Lembra Satã a imensa Queda
No boqueirão da Eterna Sombra que lhe veda,
Eternamente, eternamente, ver os céus...

Punge-o a saudade, a nostalgia, a funda mágoa
De estar (Satã já tem os olhos rasos d’água!)
Longe da Luz, longe do Azul, longe de Deus!

(“Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, Andrade Muricy,
MEC-INL, 2ª edição, Volume I, Brasília, 1973,

Coleção de Literatura Brasileira, 12, página 281.)


Série "Diabolus In Versus".

sábado, 29 de agosto de 2015

Lúcifer - Severiano de Resende

LÚCIFER


Ille, inquam, Lucifer, qui nescit occasum

Canto Litúrgico do Sábado Santo


Severiano de Resende
(1871-1931)

Entoar-te-ei, ó vívido

Astro da manhã,
Sob um novo módulo
Um novo peã.

E à gandara onde íncola
Tu és triste e só
Mandarei num cântico
Alívio ao teu dó.

Na túrbida ténebra
Sem luz e sem paz,
O teu ser misérrimo
Silencioso jaz.

Na geena e no báratro
Do exílio exicial,
Labareda em cólera,
Avejão glacial,

Reinas, grandioso e hórrido,
Ó Monarca exul,
Vitalício antípoda
Do sereno azul.

Multifásio e onímodo
No ademã revel,
Sob os pés torcendo-se
De São Michael,

De São Jorge à fúlgida
Cimitarra ultriz
Curvando a vesânica
Tortuosa cerviz

Até quando, hierático
Infernal dragão,
As raças em pânico
Te amaldiçoarão?

De rastos, ofídico,
Ou acima dos sóis,
Povoas os séculos
De monstros e heróis.

Júpiter Olímpico,
Erecto no altar,
Seja excelso ou ínfero
O teu avatar,

Ou mefistofélico
Mistificador,
Fautor parabólico
Do Mal e da Dor,

Ou dionisíaco,
Gritando o Prazer
E às turbas dando o êxtase
Falaz de viver,

Fantasma sofístico,
Foto Baphomet,
Amuleto ou ídolo,
Deus do candomblé,

Impotente no ímpeto
Contra o santo de Ars,
Didata aos teus discípulos
Soprando a MAGNA ARS.

Que te oprima o anátema,
Te adore o faquir,
Ou te ame o filósofo
Ou o faças sorrir,

No abismo ou no páramo,
Arcanjo, eu bem sei,
Permaneces Príncipe,
Continuas Rei.

Rolaste do vértice
Extremo do céu,
Fugace relâmpago,
Instantâneo réu,

E no surdo e sôfrego
Turbilhão vital,
Invisível dínamo
Da pugna irreal,

Labareda em cólera,
Avejão glacial,

Tu rodas errático
No universo afã,
Desde o gesto fluídico
Da eternal Maçã,

Com que intento, ó Lúcifer,
Com que ideal Satã?

Té que na fronte em sonho enfim te refulja o São Graal,
Como apreender disperso e vário o teu ser integral,
Brisa, escarcéu, maré, torrente, onda ruidosa e errante,
Força perpetuamente palpitante e terebrante,
Confusa como o caos, convulsa como o inquieto mar,
Tendo perdido o sumo dom de se expandir e amar.
Tombaste, sim, precípite, raio torvo e fremente,
Pelos espaços espargindo a fagulha e a semente
Da árvore luminosa e viridente da Expiação
Cuja seiva vivaz de coração em coração
Circula em fogo, em flama, em fluido, em lava, em sangue e em pranto,

Fazendo-nos galés desse encanto, desse quebranto,
Dessa própria tortura tua intensa e desse teu
Próprio cruciar no ermo rochedo nu, ó Prometeu!
Só o Espírito de tudo renova, só o Verbo
Que tudo sana, lançarão no teu penar acerbo
O bálsamo que tu não pedes na tua mudez,
No teu sofrer de cada instante eterno, sem que dês
Um grito para o empíreo irradiante que ao longe encaras,
Sem que um gemido, um ai para as altas landas preclaras
Soltes, sem que para o Paáclito nem para a Cruz
Lances o teu arfante anseio de amor e de luz,
O teu sublime anélito taciturno e latente
Pelo teu sólio augusto junto ao trono onipotente.

Certo imane o teu crime foi e embalde a mente humana
Séculos tenta em fora escrutá-lo! Embalde em soluços,
O homem sofre ante o roaz mistério que de ti promana
E decrépito sobre a Bíblia se arqueia, de bruços.

Debalde o Mago sobre os pergaminhos envelhece
E os incunábulos revolve e as vetustas cabalas,
Embalde, nas regiões em que vaga e rasteja a prece,
Te implora o teurgo em transe o arcano essencial que tu calas.

Embalde à flâmea trípode a atra sibila se erige
E o tábido dervis no antro se lamenta e contorce,
Na ara embalde se imole o touro, o infante, o ariete, a estrige
Nin há que a romper o infindo silêncio te force.

Fez-te o poeta de Albião teatral estrátego facundo,
Deram-te outros uma cambiante e horrenda carantonha,
E o Dante, que baixou ao tanque gélido e profundo,
Bem viu o horror da tua imota agonia medonha.

Mas quem descendar pôde no ruir das mitologias
E pela história que de cruenta púrpura se tinge
O opróbrio imemorial em que tenaz te refugias,
Selando-nos ferrenhamente o teu problema, ó Esfinge?

Quem, um dia, espoliando engrimanços, pentaclos, ritos
E arrostando no umbral da sombra a blasfêmia e a loucura,
Clarividente penetrou os vastos infinitos
Em que teu pecado infando a memória perdura?

Quem, no atanor candente ou no constelante astrolábio,
Vislumbrou lúcido a inenarrável culpa primeva
E que Helena diria ao Doutor Fausto, ao velho sábio,
O edênico sigilo que floriu nos lábios de Eva?
QUOMODO CECIDISTI, LUCIFER? Diante do enigma,
Na boca do profeta ansiosa extingue-se a palavra,
E és da soberba e da revolta o eternal paradigma
E ao teu nuto o erro assoma, o sangue corre, o incêndio lavra.
Certo, imane o teu crime foi e na hora formidanda
Do grande fogo rubro e da tonitruante trombeta,
A fim que à luz incriada o teu espírito se expanda,
Tu surgirás, gigante e nu, à face do planeta.

Diante dos Eloims em lágrimas, pasmos e atentos,
Diante das Doze Tribos e diante dos Nove Coros,
Diante dos Sete Espíritos, diante dos Quatro Ventos,
Diante dos turbilhões de Almas e dos Sóis sonoros,

Diante da unitrina Essência que no éter irradia,
Diante do Tetragramaton vital que o caos penetra,
Diante do Verbo feito Carne e da Virgem Maria,
Diante do Amor que do alto entorna a torrencial faretra,

Dizer virás o poema atroz do teu crime insensato
E o impossível ideal que realizar em vão quiseste
E teu espectro horrífico opresso em plúmbeo reato,
Súbito se envolverá no vasto esbrasear celeste.

As rondas candentes das Esferas súperas
Serafins em brasa, Querubins claríficos,
Ver-te-ão!

As rodas iriais dos Tronos que, translúcidos,
No cosmos montem peso, medida e número,
Ver-te-ão!

As Dominações e Senhorias célicas,
Evoluindo puras sem recontros díspares,
Ver-te-ão!

As Virtudes presas no imortal revérbero,
Multifárias normas do esplendor prismático,
Ver-te-ão!

Fecundando as Causas e as Razões, as prônubas
Potestades tensas na expansão do Arquétipo,
Ver-te-ão!

Lohengrins do além, os Principados vígiles,
Das raças e terras capitães e egrégoros,
Ver-te-ão!

Os Arcanjos e Anjos, desfraldando as flâmulas,
Desdobrando as asas, sopesando as frâmeas,
Ver-te-ão!

Os cortejos densos que tafulham séculos
No vibrante apelo das promessas prístinas,
Ver-te-ão!

Os Patriarcas, desde as diluviais catástrofes,
Dos antigos Pactos testemunhas mêmores,
Ver-te-ão!

Os Anciãos e Juízes, do Sinai ao Líbano,
Que através da Lei foram fiéis aos Símbolos,
Ver-te-ão!

Os Nabis austeros, de almas tão diáfanas,
Que por elas veio a irruente voz do Espírito,
Ver-te-ão!

Solomão e os Reis, entrecambiando rútilas
Com Gaspar, Melchior e Baltasar auréolas,
Ver-te-ão!

Ostentando o alvor das resplendentes túnicas,
Nos seus tronos de ouro, os Papas e os Apóstolos
Ver-te-ão!

Virgens, Confessores e as legiões de Mártires
E a preclara turba dos Doutores fúlgidos
Ver-te-ão!

E os enxames bastos e o revoar intérmino
De Santos e Santas em joviais miríades,
Ver-te-ão!

E ouvirás em redor como o clamor das grandes águas,
Clamor que abafa e que destrói as grandes mágoas,
Clamor que é o Sangue mesmo de Cristo,
E sobre o Lenho em que morreu Jesus para perdoar
Lerás, o joelho em terra e o olhar em pranto, este imprevisto
Ígneo letreiro dentro da luz enorme a irradiar:

SUPEREXALTAT  AUTEM  JUDICIUM  MISERICORDIA

Enquanto na amplidão reboa a cítara heptacórdia.

(“Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, Andrade Muricy,
MEC-INL, 2ª edição, Volume I, Brasília, 1973,
Coleção de Literatura Brasileira, 12, páginas 479-484.)


Série "Diabolu In Versus".

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Canção do Diabo - Emiliano Perneta

CANÇÃO  DO  DIABO


Emiliano Perneta (1866-1921)

Aqui, um dia, neste quarto,
Estava eu a ruminar,
Mas como um ruminante farto,
O tédio amargo, o atroz pesar...

O vento fora pela noite,
Demônio que blasfema em vão,
Cortava rijo como o açoite,
Uivava triste como um cão.

Eu meditava quanto a vida
Me foi cruel, me foi cruel:
Supus que fosse uma bebida
Doce, mas foi veneno e fel!

E sobretudo, que ato breve
Dessa tragédia para rir...
Quando de leve, pois, de leve,
Senti a porta se entreabrir...

O quarto todo iluminou-se,
Mas de uma claridade tal,
Como se fosse dia, e fosse
Dia de festa nupcial.

E um vulto, bem como um segredo,
Mais belo do que uma mulher,
Sorriu-me assim: “Não tenhas medo,
Eu sou o arcanjo Lucifer.

“Trêmulo de um pavor covarde,
Fugiste-me sempre, porém
Sabia eu que, cedo ou tarde,
Serias meu, de mais ninguém.

“Que, ó meu querido e pobre artista,
Todo a fazer teu próprio mel,
Tu sempre foste um diabolista,
Um anjo mau, anjo revel.

“Ora, fugiu-te a primavera,
E os derradeiros sonhos teus:
O céu, a mais banal quimera,
Teu próprio Deus, teu próprio Deus.

“A sorte, mesmo, a prostituta,
Inda mais nua que Laís,
Funambulesco ser, escuta,
Quis todo o mundo; e a ti não quis.

“O seio abriu, que tanto exala,
Ao proxeneta, e ao ladrão;
A ti, porém, indo beijá-la,
A fêmea torpe riu-se: não!

“Teu coração, alma ansiada,
Teu coração, como um Romeu,
De tanto se bater por nada,
Não sei como inda não morreu.

“Teu coração, um catavento,
De cá pra lá sempre a bater,
Só encontrou o enervamento,
E a másc’ra do falso prazer.

..............................................

“Ninguém te amou, nem pôde amar-te,
Nem te entendeu, ser infeliz,
Mas eu, ó triste lírio d’arte,
Sempre te amei, sempre te quis.

“O teu furor pela beleza,
Indiferente ao bem e ao mal,
Desoladora guerra acesa,
E sobretudo ódio infernal;

“A tua esfaimação de oiro,
A sede de subir, subir,
Além daquele sorvedoiro
D’astros e pérolas d’Ofir;

“O orgulho teu, furioso grito,
Luxuriosamente cruel,
Crescendo para o infinito,
Como uma torre de Babel,

“Orgulho infindo, orgulho santo,
E diabólico, bem sei,
Que tanto horror tem feito, tanto,
Ah! eu somente o escutei.

“E disse: aquele é meu, aquelas
Mágoas cruéis são minhas, eu
Vou levantá-lo até as estrelas,
Até a luz, até o céu...

“Vou lhe mostrar reinos de opalas,
Tantas cidades ideais,
Que há de querer talvez contá-las,
Sem as poder contar jamais.

“Vou lhe mostrar torres tão grandes,
Torres de ouro e de marfim,
Cem vezes mais altas que os Andes,
Tantas, tantas, que não têm fim.

“E toda a glória minha, toda,
A ele, cuja imaginação
Inda é mais rica e inda é mais douda
Do que a do próprio Salomão.

“Vendo-o descer a encosta rude
Dos anos maus, o elixir
Eu lhe darei da juventude,
Que o faça rir, que o faça rir...

“Que é só bebê-lo, e embora exausto,
Embora quase morto já,
O triste e magro doutor Fausto
Reflorirá, reflorirá!

“E há de subir comigo, um dia,
Há de subir comigo, a pé,
Por essa longa escadaria,
Que sobem só os que têm fé.

“E eu, o flagelo, eu, o açoite,
Eu, o morcego, o diabo, cruz!
Estranho príncipe da noite,
Hei de inundá-lo só de luz!

“Hei de lhe dar uma tão rara
Virtude, que baste ele olhar,
Baste querer somente, para
Que o vento acalme a voz do mar.

“E hei de fazê-lo de tal modo,
De tal fluidez, que ele por fim,
O ser humano, o limo, o lodo,
Se torne bem igual a mim."

.............................................

Olhei. Brilhava-lhe na fronte
A estrela d’oiro da manhã
Como num límpido horizonte:
- Eu serei teu irmão, Satã!

(1907)

(“Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, Andrade Muricy,
MEC-INL, 2ª edição, Volume I, Brasília, 1973,
Coleção de Literatura Brasileira, 12, páginas 302 a 305.)


Série "Diabolus In Versus".

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Titãs Negros - Cruz e Sousa

TITÃS  NEGROS


Cruz e Sousa

Hirtas de dor, nos áridos desertos,
Formidáveis fantasmas das Legendas,
Marcham além, sinistras e tremendas,
As caravanas, dentre os céus abertos...

Negros e nus, negros Titãs, cobertos
Das bocas vis das chagas vis e horrendas,
Marcham, caminham por estranhas sendas,
Passos vagos, sonâmbulos, incertos...

Passos incertos e os olhares tredos,
Na convulsão de trágicos segredos,
De agonias mortais, febres vorazes...

Tem o aspecto fatal das feras bravas
E o rir pungente das legiões escravas,
De dantescos e torvos Satanases!...

(“Cruz e Sousa – Obra Completa”, Editora Nova Aguilar S.A.,
Organização de Andrade Murici, Atualização e Notas de Alexei Bueno,
Rio de Janeiro, 2000, páginas 295-296.)


Série "Diabolu In Versus".

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Demônios - Cruz e Sousa

DEMÔNIOS


Cruz e Sousa

A língua vil, ignívoma, purpúrea

Dos pecados mortais bava e braveja,
Com os seres impoluídos mercadeja
Mordendo-os fundo, injúria sobre injúria.

É um grito infernal de atroz luxúria,
Dor de danados, dor do Caos que almeja
A toda alma serena que viceja,
Só fúria, fúria, fúria, fúria, fúria!

São pecados mortais feitos hirsutos
Demônios maus que os venenosos frutos
Morderam com volúpias de quem ama...

Vermes da Inveja, a lesma verde e oleosa,
Anões da Dor torcida e cancerosa,
Abortos de almas a sangrar na lama!

(“Cruz e Sousa – Obra Completa”, Editora Nova Aguilar S.A.,
Organização de Andrade Murici, Atualização e Notas de Alexei Bueno,
Rio de Janeiro, 2000, páginas 210.)


Série "Diabolu In Versus".

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Deus do Mal - Cruz e Sousa

DEUS  DO  MAL


Cruz e Sousa

Espírito do Mal, ó deus perverso

Que tantas almas dúbias acalentas,
Veneno tentador na luz disperso
Que a própria luz e a própria sombra tentas;

Símbolo atroz das culpas do Universo,
Espelho fiel das convulsões violentas
Do gasto coração no lodo imerso
Das tormentas vulcânicas, sangrentas;

Toda a tua sinistra trajetória
Tem um brilho de lágrima ilusória,
As melodias mórbidas do Inferno...

És Mal, mas sendo Mal és soluçante,
Sem a graça divina e consolante,
Réprobo estranho do Perdão eterno!

(“Cruz e Sousa – Obra Completa”, Editora Nova Aguilar S.A.,
Organização de Andrade Murici, Atualização e Notas de Alexei Bueno,
Rio de Janeiro, 2000, páginas 191.)


Série "Diabolu In Versus".

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Majestade Caída - Cruz e Sousa

MAJESTADE  CAÍDA


Cruz e Sousa

Esse cornóide deus funambulesco

Em torno ao qual as Potestades rugem,
Lembra os trovões, que tétricos estrugem,
No riso alvar de truão carnavalesco.

De ironias o momo picaresco
Abre-lhe a boca e uns dentes de ferrugem,
Verdes gengivas de ácida salsugem
Mostra e parece um Sátiro dantesco.

Mas ninguém nota as cóleras horríveis,
Os chascos, os sarcasmos impassíveis
Dessa estranha e tremenda Majestade.

Do torvo deus hediondo, atroz, nefando,
Senil, que embora rindo, está chorando
Os Noivados em flor da Mocidade!

(“Cruz e Sousa – Obra Completa”, Editora Nova Aguilar S.A.,
Organização de Andrade Murici, Atualização e Notas de Alexei Bueno,
Rio de Janeiro, 2000, páginas 92-93.)


Série "Diabolu In Versus".

domingo, 23 de agosto de 2015

Satã - Cruz e Sousa

SATÃ


Cruz e Sousa

Capro e revel, com os fabulosos cornos

Na fronte real de rei dos reis vetustos,
Com bizarros e lúbricos contornos,
Ei-lo Satã dentre Satãs augustos.

Por verdes e por báquicos adornos
Vai c’roado de pâmpanos venustos
O deus pagão dos Vinhos acres, mornos,
Deus triunfador dos triunfadores justos.

Arcangélico e audaz, nos sóis radiantes,
À púrpura das glórias flamejantes,
Alarga as asas de relevos bravos...

O Sonho agita-lhe a imortal cabeça...
E solta aos sóis e estranha e ondeada e espessa
Canta-lhe a juba dos cabelos flavos!

(“Cruz e Sousa – Obra Completa”, Editora Nova Aguilar S.A.,
Organização de Andrade Murici, Atualização e Notas de Alexei Bueno,
Rio de Janeiro, 2000, páginas 75-76.)


Cornelis De Vos - O Triunfo de Baco

Série "Diabolu In Versus".

sábado, 22 de agosto de 2015

A Flor do Diabo - Cruz e Sousa

A  FLOR  DO  DIABO 

Cruz e Sousa 

Branca e floral como um jasmim-do-Cabo

Maravilhosa ressurgiu um dia
A fatal Criação do fulvo Diabo,
Eleita do pecado e da Harmonia.

Mais do que tudo tinha um ar funesto,
Embora tão radiante e fabulosa.
Havia sutilezas no seu gesto
De recordar uma serpente airosa.

Branca, surgindo das vermelhas chamas
Do Inferno inquisidor, corrupto e langue,
Ela lembrava, Flor de excelsas famas,
A Via-Láctea sobre um mar de sangue.

Foi num momento de saudade e tédio
De grande tédio e singular Saudade,
Que o Diabo, já das culpas sem remédio,
Para formar a egrégia majestade,

Gerou, da poeira quente das areias
Das praias infinitas do Desejo,
Essa langue sereia das sereias,
Desencantada com o calor de um beijo.

Sobre galpões de sonho os seus palácios
Tinham bizarros e galhardos luxos.
Mais grave de eloqüência que os Horácios,
Vivia a vida dos perfeitos bruxos.

Sono e preguiça, mais preguiça e sono,
Luxúrias de nababo e mais luxúrias,
Moles coxins de lânguido abandono
Por entre estranhas florações purpúreas.

Às vezes, sob o luar, nos rios mortos,
Na vaga ondulação dos lagos frios,
Boiavam diabos de chavelhos tortos,
E de vultos macabros, fugidios.

A lua dava sensações inquietas
Às paisagens avérnicas em torno
E alguns demônios com perfis de ascetas
Dormiam no luar um sono morno...

Foi por horas de Cisma, horas etéreas
De magia secreta e triste, quando
Nas lagoas letíficas, sidéreas,
O cadáver da lua vai boiando...

Foi numa dessas noites taciturnas
Que o velho Diabo, sábio dentre os sábios,
Desencantado o seu poder das furnas,
Com o riso augusto a flamejar nos lábios,

Formou a flor de encantos esquisitos
E de essências esdrúxulas e finas,
Pondo nela oscilantes infinitos
De vaidades e graças femininas.

E deu-lhe a quint’essência dos aromas,
Sonoras harpas de alma, extravagâncias,
Pureza hostial e púbere de pomas,
Toda a melancolia das distâncias...

Para haver mais requinte e haver mais viva,
Doce beleza e original carícia,
Deu-lhe uns toques ligeiros de ave esquiva
E uma auréola secreta de malícia.

Mas hoje o Diabo já senil, já fóssil,
Da sua Criação desiludido,
Perdida a antiga ingenuidade dócil,
Chora um pranto noturno de Vencido.

Como do fundo de vitrais, de frescos
De góticas capelas isoladas,
Chora e sonha com mundos pitorescos,
Na nostalgia das Regiões Sonhadas.

(“Cruz e Sousa – Obra Completa”, Editora Nova Aguilar S.A.,
Organização de Andrade Murici, Atualização e Notas de Alexei Bueno,
Rio de Janeiro, 2000, páginas 103 a 105.)


Série "Diabolu In Versus".

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A Bandeira

A  BANDEIRA


Levantai a bandeira da dor!

Alvorai o pendão da desgraça,

pois Satã deste mundo é o Senhor,
a inspirar toda vida devassa!
Potestades nefastas das noites!
Infamantes espectros danados,
merecemos os vossos açoites
a excitar todos atos malvados!...

(Coro)

Levantai, levantai a bandeira!
Alvorai, alvorai o pendão,
que será para nós a maneira
de louvarmos a atroz perdição!

Levantai a bandeira da dor!
Alvorai o pendão da desgraça,
pois Satã deste mundo é o Senhor,
a inspirar toda vida devassa!
Potestades nefastas das noites!
Infamantes espectros danados,
merecemos os vossos açoites
a excitar todos atos malvados!...

(Coro)

Invocai a Falange do Mal!
Implorai proteção dos Infernos
mais vingança ou desdita fatal,
danação ou castigos eternos!
Concedei maldição aos humanos
que não querem gozar os pecados,
não sabendo os verazes arcanos
que redimem do mal os culpados!

(Coro)

(“O Livro Negro do Satanismo”, Babu Sotito Jaideux,
Edição Especial da Revista “Planeta”, nº 50-A, Novembro de 1976,
Editora Três, São Paulo, página 139.)

(Série "Diabolu In Versus".)



quinta-feira, 20 de agosto de 2015

A Plenitude do Tempo - James Stephens

A  PLENITUDE  DO  TEMPO 

James Stephens

Num trono de ferro enferrujado,
Além da mais remota estrela do espaço,
Eu vi Satã sentado, sozinho,
Velho e encovado era o seu rosto;
Porque seu trabalho fora feito, e ele
Descansava na eternidade.

E até ele, do sol
Vieram seu pai e amigo,
Dizendo – Agora que a obra está feita,
O antagonismo terminou –
E guiou Satã para o
Paraíso que Ele conhecia.

Gabriel, sem carranca;
Uriel, sem lança;
Rafael desceu cantando,
Dando Boas-Vindas ao seu antigo par:
E sentaram ao lado dele
Aquele que havia sido crucificado.

(Série "Diabolu In Versus".)



quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Hino a Satã - Josué Carducci

HINO  A  SATÃ

Josué Carducci


A Ti, imenso princípio do Ser, Matéria e

         Espírito, Razão e Sentimento.

Quando cintila o vinho no copo como a
         Alma brilha no fundo da pupila,
Quando correm a Terra e o Sol e trocam
         palavras de Amor,
E corre o espasmo de um himeneu invisível
         que chega aos Montes e fecunda a planície,
A Ti chegam meus cantos atrevidos.
Eu Te invoco, ó Satã! rei do festim.
Volta com teu hissopo, vil Sacerdote!
Volta com teus salmos! Satã retrocede.
Olha como a ferrugem rói a mística
         espada de Miguel,
E o arcanjo, já sem penas, se despenca
         no vazio!
O raio gelou-se na mão do orgulhoso Jeová,
Como uma chuva de pálidos mistérios de
         planetas apagados!
Os arcanjos vão caindo do alto do firmamento.
Na matéria que nunca pára, rei do
Fenômeno, rei da Forma, vive unicamente Satã.
No relampejar trêmulo de seu negro olhar está
         seu império que aos que desviam atrai.
É ele que brilha com o sangue alegre dos
         enforcados para que a breve alegria não esmoreça.
É ele quem restaura a vida breve, que
         prorroga a Dor e o Amor reanima.
Tu inspiras, ó Satã! o meu verso desafiando,
         Deus dos pontífices cruéis e reis homicidas.
Por Ti vivem Agramancio, Adonis e Astartéa,
         que animam os mármores dos escultores,
         as telas dos pintores, a lira dos poetas.
E o canto das serenas brisas de Jonia deu
         a Vênus Andrômeda.
Por Ti estremecem-se as palmeiras do Líbano
         ao ressuscitar o amante da doce Chypre.
Por Ti agitam-se as danças e as cores.
Por Ti as virgens desfalecem de amor ante
         as odoríferas palmeiras da Iduméa, onde
         branqueiam as espumas chyprianas.
Que importa que o bárbaro furor dos
         orgiáticos ágapes do ato obsceno tenha
         incendiado teus templos com a sagrada
         luz e demolido as estátuas de Argus?
A plebe vem a Ti, agradecida, entre suas
         divindades e, vencida de amor, a pálida
         bruxa com eterna angústia vem remediar
         a natureza enferma.
Foste Tu que do olhar penetrante do
         Alquimista e às pupilas do Mago indomável
         revelaste mais para além do sonolento
         claustro os resplendores de novos céus.
Esquivando-Te até nos compromissos, o triste monge
         ocultou-se no fundo da Tebaida.
Ó alma extraviada de teu caminho,
         Satã é bom e não Te abandona!
Por isso, quando passas, ele Te bendiz. Eis aqui
         a Eloísa.
Em vão te atormentas sob o áspero
         burel, mísero monge.
Os versos de Horácio e de Virgílio soaram
         em teus ouvidos misturados às queixas
         dos salmos de Davi.
E as formas délficas surgiram voluptuosas
         a teu lado, tingindo de rosa a horrenda
         companhia das dobadeiras Lycoria e Glyceria.
De outras visões de um tempo mais belo
         povoam-se as celas insones.
Por Ti as páginas vivas de Tito Livio
         despertam fogosos tribunos, cônsules e
         ardente multidão.
E, repleto de itálico orgulho, dirige-Te,
         ó monge! ao Capitólio.
As poderosas fogueiras não podem destruir
         as fatídicas vozes de Wicleff e João Huss.
No espaço ressoa o grito de alerta e o
         século se renova. O prazo extinguiu-se.
Tremem os símbolos poderosos; caem as
         mitras e as coroas; do claustro mesmo,
         surge ameaçadora a rebelião, debaixo dos
         hábitos de frei Jeronimo Savonarola.
Joga o escapulário Martim Luthero e rompe
         as cadeias do pensamento humano.
E, esplêndida, fulgurante, sobre as chamas
         ergue-se a Matéria. Satã venceu!
Um monstro belo e terrível desencadeia-se,
         percorre o Oceano, percorre a Terra,
         vomitando chamas e, fumegante como
         um vulcão, cai sobre os montes.
Devora planícies, está sobre os abismos,
         oculta-se nos antros profundos e
         surge novamente.
E eis que passa triunfante, ó povo!
         Satã, o Grande.
Passa semeando o Bem por toda parte,
         montado sobre seu carro de fogo, que
         nenhum obstáculo detém.
Louvor a Ti, ó Satã! Ó Rebelião!
Ó Força vingadora da Razão humana!
Que subam a Ti, consagrados, nosso
         incenso e nossos votos!
Venceste ao Jeová dos Sacerdotes!
Glória a Satã!

(Série "Diabolu In Versus".)