LÚCIFER
Ille, inquam, Lucifer, qui nescit occasum
Canto
Litúrgico do Sábado Santo
Severiano de Resende
(1871-1931)
Entoar-te-ei, ó
vívido
Astro da manhã,
Sob um novo módulo
Um novo peã.
E à gandara onde íncola
Tu és triste e só
Mandarei num cântico
Alívio ao teu dó.
Na túrbida ténebra
Sem luz e sem paz,
O teu ser misérrimo
Silencioso jaz.
Na geena e no báratro
Do exílio exicial,
Labareda em cólera,
Avejão glacial,
Reinas, grandioso e hórrido,
Ó Monarca exul,
Vitalício antípoda
Do sereno azul.
Multifásio e onímodo
No ademã revel,
Sob os pés torcendo-se
De São Michael,
De São Jorge à fúlgida
Cimitarra ultriz
Curvando a vesânica
Tortuosa cerviz
Até quando, hierático
Infernal dragão,
As raças em pânico
Te amaldiçoarão?
De rastos, ofídico,
Ou acima dos sóis,
Povoas os séculos
De monstros e heróis.
Júpiter Olímpico,
Erecto no altar,
Seja excelso ou ínfero
O teu avatar,
Ou mefistofélico
Mistificador,
Fautor parabólico
Do Mal e da Dor,
Ou dionisíaco,
Gritando o Prazer
E às turbas dando o êxtase
Falaz de viver,
Fantasma sofístico,
Foto Baphomet,
Amuleto ou ídolo,
Deus do candomblé,
Impotente no ímpeto
Contra o santo de Ars,
Didata aos teus discípulos
Soprando a MAGNA ARS.
Que te oprima o anátema,
Te adore o faquir,
Ou te ame o filósofo
Ou o faças sorrir,
No abismo ou no páramo,
Arcanjo, eu bem sei,
Permaneces Príncipe,
Continuas Rei.
Rolaste do vértice
Extremo do céu,
Fugace relâmpago,
Instantâneo réu,
E no surdo e sôfrego
Turbilhão vital,
Invisível dínamo
Da pugna irreal,
Labareda em cólera,
Avejão glacial,
Tu rodas errático
No universo afã,
Desde o gesto fluídico
Da eternal Maçã,
Com que intento, ó Lúcifer,
Com que ideal Satã?
Té que na fronte em sonho enfim
te refulja o São Graal,
Como apreender disperso e vário o
teu ser integral,
Brisa, escarcéu, maré, torrente,
onda ruidosa e errante,
Força perpetuamente palpitante e
terebrante,
Confusa como o caos, convulsa
como o inquieto mar,
Tendo perdido o sumo dom de se
expandir e amar.
Tombaste, sim, precípite, raio
torvo e fremente,
Pelos espaços espargindo a
fagulha e a semente
Da árvore luminosa e viridente da
Expiação
Cuja seiva vivaz de coração em
coração
Circula em fogo, em flama, em
fluido, em lava, em sangue e em pranto,
Fazendo-nos galés desse encanto,
desse quebranto,
Dessa própria tortura tua intensa
e desse teu
Próprio cruciar no ermo rochedo
nu, ó Prometeu!
Só o Espírito de tudo renova, só
o Verbo
Que tudo sana, lançarão no teu
penar acerbo
O bálsamo que tu não pedes na tua
mudez,
No teu sofrer de cada instante
eterno, sem que dês
Um grito para o empíreo
irradiante que ao longe encaras,
Sem que um gemido, um ai para as
altas landas preclaras
Soltes, sem que para o Paáclito
nem para a Cruz
Lances o teu arfante anseio de
amor e de luz,
O teu sublime anélito taciturno e
latente
Pelo teu sólio augusto junto ao
trono onipotente.
Certo imane o teu crime foi e
embalde a mente humana
Séculos tenta em fora escrutá-lo!
Embalde em soluços,
O homem sofre ante o roaz
mistério que de ti promana
E decrépito sobre a Bíblia se
arqueia, de bruços.
Debalde o Mago sobre os
pergaminhos envelhece
E os incunábulos revolve e as
vetustas cabalas,
Embalde, nas regiões em que vaga
e rasteja a prece,
Te implora o teurgo em transe o
arcano essencial que tu calas.
Embalde à flâmea trípode a atra
sibila se erige
E o tábido dervis no antro se
lamenta e contorce,
Na ara embalde se imole o touro,
o infante, o ariete, a estrige
Nin há que a romper o infindo
silêncio te force.
Fez-te o poeta de Albião teatral
estrátego facundo,
Deram-te outros uma cambiante e
horrenda carantonha,
E o Dante, que baixou ao tanque
gélido e profundo,
Bem viu o horror da tua imota
agonia medonha.
Mas quem descendar pôde no ruir
das mitologias
E pela história que de cruenta
púrpura se tinge
O opróbrio imemorial em que tenaz
te refugias,
Selando-nos ferrenhamente o teu
problema, ó Esfinge?
Quem, um dia, espoliando
engrimanços, pentaclos, ritos
E arrostando no umbral da sombra
a blasfêmia e a loucura,
Clarividente penetrou os vastos
infinitos
Em que teu pecado infando a
memória perdura?
Quem, no atanor candente ou no
constelante astrolábio,
Vislumbrou lúcido a inenarrável
culpa primeva
E que Helena diria ao Doutor
Fausto, ao velho sábio,
O edênico sigilo que floriu nos
lábios de Eva?
QUOMODO CECIDISTI, LUCIFER?
Diante do enigma,
Na boca do profeta ansiosa
extingue-se a palavra,
E és da soberba e da revolta o
eternal paradigma
E ao teu nuto o erro assoma, o
sangue corre, o incêndio lavra.
Certo, imane o teu crime foi e na
hora formidanda
Do grande fogo rubro e da
tonitruante trombeta,
A fim que à luz incriada o teu
espírito se expanda,
Tu surgirás, gigante e nu, à face
do planeta.
Diante dos Eloims em lágrimas,
pasmos e atentos,
Diante das Doze Tribos e diante
dos Nove Coros,
Diante dos Sete Espíritos, diante
dos Quatro Ventos,
Diante dos turbilhões de Almas e
dos Sóis sonoros,
Diante da unitrina Essência que
no éter irradia,
Diante do Tetragramaton vital que
o caos penetra,
Diante do Verbo feito Carne e da
Virgem Maria,
Diante do Amor que do alto
entorna a torrencial faretra,
Dizer virás o poema atroz do teu
crime insensato
E o impossível ideal que realizar
em vão quiseste
E teu espectro horrífico opresso
em plúmbeo reato,
Súbito se envolverá no vasto
esbrasear celeste.
As rondas candentes das Esferas
súperas
Serafins em brasa, Querubins
claríficos,
Ver-te-ão!
As rodas iriais dos Tronos que,
translúcidos,
No cosmos montem peso, medida e
número,
Ver-te-ão!
As Dominações e Senhorias
célicas,
Evoluindo puras sem recontros
díspares,
Ver-te-ão!
As Virtudes presas no imortal
revérbero,
Multifárias normas do esplendor
prismático,
Ver-te-ão!
Fecundando as Causas e as Razões,
as prônubas
Potestades tensas na expansão do
Arquétipo,
Ver-te-ão!
Lohengrins do além, os
Principados vígiles,
Das raças e terras capitães e
egrégoros,
Ver-te-ão!
Os Arcanjos e Anjos, desfraldando
as flâmulas,
Desdobrando as asas, sopesando as
frâmeas,
Ver-te-ão!
Os cortejos densos que tafulham
séculos
No vibrante apelo das promessas
prístinas,
Ver-te-ão!
Os Patriarcas, desde as diluviais
catástrofes,
Dos antigos Pactos testemunhas
mêmores,
Ver-te-ão!
Os Anciãos e Juízes, do Sinai ao
Líbano,
Que através da Lei foram fiéis
aos Símbolos,
Ver-te-ão!
Os Nabis austeros, de almas tão
diáfanas,
Que por elas veio a irruente voz
do Espírito,
Ver-te-ão!
Solomão e os Reis, entrecambiando
rútilas
Com Gaspar, Melchior e Baltasar
auréolas,
Ver-te-ão!
Ostentando o alvor das
resplendentes túnicas,
Nos seus tronos de ouro, os Papas
e os Apóstolos
Ver-te-ão!
Virgens, Confessores e as legiões
de Mártires
E a preclara turba dos Doutores
fúlgidos
Ver-te-ão!
E os enxames bastos e o revoar
intérmino
De Santos e Santas em joviais
miríades,
Ver-te-ão!
E ouvirás em redor como o clamor
das grandes águas,
Clamor que abafa e que destrói as
grandes mágoas,
Clamor que é o Sangue mesmo de
Cristo,
E sobre o Lenho em que morreu
Jesus para perdoar
Lerás, o joelho em terra e o
olhar em pranto, este imprevisto
Ígneo letreiro dentro da luz
enorme a irradiar:
SUPEREXALTAT AUTEM
JUDICIUM MISERICORDIA
Enquanto na amplidão reboa a
cítara heptacórdia.
(“Panorama do Movimento Simbolista
Brasileiro”, Andrade Muricy,
MEC-INL, 2ª edição, Volume I, Brasília,
1973,
Coleção de Literatura Brasileira, 12,
páginas 479-484.)
Série "Diabolu In Versus".