domingo, 1 de novembro de 2015

Um Moço Muito Branco – João Guimarães Rosa (Parte 2)

      Mas à porta da igreja se achava um cego, Nicolau, pedidor, o qual, o moço em o vendo, olhou-o sem medida e entregadamente — contam que seus olhos eram cor-de-rosa! — e foi em direitura a ele, dando-lhe rápida partícula, tirada da algibeira. Ora, estando o cego debaixo do sol, e corrido de suor, a almas cristãs devia de causar meditação o contraste de tanto padecer o calor do astro-rei aquele que nem as belezas da luz podia gozar. O cego, apalpando a dádiva na mão, em guisa de cogitar em que estúrdia casta de moeda ela consistisse, e se dissertando logo que nenhuma, a levou prestes à boca; ao que, seu menino guia o advertiu: que não seria artigo de se comer, mas espécie de caroço de árvore. Então o cego guardou, com irados ciúmes e por diversos meses, aquela semente, que só foi plantada após o remate dos fatos aqui ainda por narrar: e deu um azulado pé de flor, da mais rara e inesperada: com entreaspecto de serem várias flores numa única, entremeadas de maneira impossível, num primor confuso, e, as cores, ninguém a respeito delas concordou, por desconhecidas no século; definhada, com pouco, e secada, sem produzir outras sementes nem mudas, e nem os insetos a sabiam procurar.
      No que, porem, acabada de se passar aquela cena, surgia no adro Duarte Dias, mais uns companheiros e serviçais, para opor a surpresa de uma exigência e fazer problema: queria carregar consigo o moço, sobre fundamento de que, pela brancura da tez e delicadezas mais, devia de ser um dos Rezendes, seus parentes, desaparecidos no Condado, no terremoto; e que, pois, até o reconhecimento de alguma notícia, competia-lhe o ter em custódia, pelo costume. Sendo que Hilário Cordeiro pronto contestou o postulado, e o argumento por um nada terminava em desavença séria. Duarte Dias porfiando e se excedendo, do que só tornou em si ante o parecer de Quincas Mendanha, do Serro, notável na política e provedor da Irmandade.
      E, todavia, de seu zelo, mais para diante, Hilário Cordeiro iria ter melhor razão, eis que tudo lhe passou a dar sorte, quer na saúde e paz, em sua casa, seja no assaz prosperar dos negócios, cabedais e haveres. E não que o moço lhe facultasse ajuda, na sujeição de serviço ou no vagar a algum ofício, em que, de feito, nem pudesse dar descargo de si — com as mãos não calejadas, alvas e finas, de homem-de-palácio. Ele andava muito na lua, passeava por todo o lugar e alhonde, praticando aquela liberdade vaporosa e o espírito de solidão; parecesse alquebrado de um feitiço, segundo os dizeres do povo. Não embargando que grandes partes tivesse, para o que fosse de funções de engenhos, ferramentas e máquinas, ao que se prestava, fazendo muitas invenções e desembaraçando as ocasiões, ladino, cuidoso e acordado. De estranha memória, só, pois, a de olhar ele sempre para cima, o mesmo para o dia que para a noite — espiador de estrelas. Que vezes, porém, mais lhe prouvesse o divertimemo de acender fogos, sendo de reparo o quanto se influiu, pelo São João, nas tantas e tamanhas fogueiras de festa.
      Do que adveio, justo, o caso da moça Viviana, sempre mal contado. O que foi quando ele lá apareceu, acompanhado do preto José Kakende, e deu com a moça, mui bonita, mas que não se divertia ao igual das outras: e ele se chegou muito a ela, gentil e espantoso, lhe pôs a palma da mão no seio, delicadamente. Ora, sendo assim a moça Viviana a mais formosa, tinha-se para admirar que a beleza do feitio lhe não servisse para transformar, no interior, a própria e vagarosa tristeza. Mas, Duarte Dias, o pai, e que a isso assistia, prorrompeu em pleiteantes brados de: — "Tem que casar! Agora, tem de casar!" — com instância. Afirmava que o moço era homem, e um, e ainda mancebo, e lhe infamara a filha, devendo-lhe de a tomar por consorte e arcar com o estado de casado. O moço ouvia, de boa concórdia, e nem por isso. Mas a grita de Duarte Dias só teve termo, quando o padre Bayão, e outros dos mais velhos, lhe rejeitaram tão descabidas fúrias e insensatez. Também a moça Viviana, com radiosos sorrisos, o serenava. Ela, que, a partir dessa hora, despertou em si um enfim de alegria, para todo o restante de sua vida, donde um dom. Apenas que, Duarte Dias — o que não se entende — ia produzir ainda outros lances de estupefação, eis-aqui.
      De tal guisa que, para o alvoroço de todos, no dia da missa da Dedicação de Nossa Senhora das Neves e vigília da Transfiguração, 5 de agosto, ele veio à Fazenda do Casco, requerendo falar com Hilário Cordeiro. Também o moço lá estava. Outrovisto, e nunca desairoso — a gente espiava, e pensava num logo luar. Então. Duarte Dias declarou: suplicava deixassem-no levar o moço, para sua casa. Que queria assim, e necessitava, muito, não por ambicioneiro ou impostor, nem por interesses somenos, mas por a ele ter cobrado, com contrições de escrúpulo, a fortíssima estima de afeição! Dizia, e desgovernava as palavras, alterado, enquanto que dos olhos lhe corriam bastas lágrimas. Ora, não se compreendendo o descabelo de passo tão contrariado: o de um homem que, para manifestar o amor, ainda não dispunha mais que dos arrebatados meios e modos da violência. Mas, o moço, claro como o olho do sol, o pegou da mão, e, com o preto José Kakende, o foi conduzindo pelos campos —
depois se soube que a terras dele mesmo, Duarte, aonde à tapera de uma olaria. E lá indicou que mandasse cavar: com o que se achou, ali, uma grupiara de diamantes; ou um panelão de dinheiro, segundo diversa tradição. Por arte de qual prodígio, Duarte Dias pensou que ia virar riquíssimo, e mudado de fato esteve, da data por diante, em homem sucinto, virtuoso e bondoso, surprendentemente, consoante o asseverar sobremaravilhado dos coevos.
      Mas, por contra, no dia da venerada Santa Brígida, de voz comum de novo dele se soube: o moço, plácido. Disse-se, que saíra, na véspera, de paragem, pelos altos, num de seus desapareceres: era um tempo de trovoadas secas. José Kakende contava somente que o ajudara a acender, de secreto, com formato, nove fogueiras: e, mais, o Kakende soubesse apenas repetir aquelas suas velhas e divagadas visões — de nuvem, chamas, ruídos, redondos, rodas, geringonça e entes. Com a primeira luz do sol, o moço se fora, tidas asas.
      Todos singularmente se deploraram, para nunca, mal em pensando. Duvidavam dos ares e montes; da solidez da terra. Duarte Dias, de dó, veio a falecer; mas a filha, a moça Viviana, conservou sua alegria. José Kakende conversou muito com o cego. Hilário Cordeiro, e outros, diziam experimentar uma saudade e meia-morte, só de imaginarem nele. Ele cintilava ausente, aconteceu. Pois. E mais nada.

(“Primeiras Estórias”, João Guimarães Rosa, Livraria José Olympio Editora, 1974, Páginas 119 a 125.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário