Mas à porta da
igreja se achava um cego, Nicolau, pedidor, o qual, o moço em o vendo, olhou-o
sem medida e entregadamente — contam que seus olhos eram cor-de-rosa! — e foi
em direitura a ele, dando-lhe rápida partícula, tirada da algibeira. Ora,
estando o cego debaixo do sol, e corrido de suor, a almas cristãs devia de causar
meditação o contraste de tanto padecer o calor do astro-rei aquele que nem as
belezas da luz podia gozar. O cego, apalpando a dádiva na mão, em guisa de
cogitar em que estúrdia casta de moeda ela consistisse, e se dissertando logo
que nenhuma, a levou prestes à boca; ao que, seu menino guia o advertiu: que
não seria artigo de se comer, mas espécie de caroço de árvore. Então o cego
guardou, com irados ciúmes e por diversos meses, aquela semente, que só foi
plantada após o remate dos fatos aqui ainda por narrar: e deu um azulado pé de
flor, da mais rara e inesperada: com entreaspecto de serem várias flores numa
única, entremeadas de maneira impossível, num primor confuso, e, as cores,
ninguém a respeito delas concordou, por desconhecidas no século; definhada, com
pouco, e secada, sem produzir outras sementes nem mudas, e nem os insetos a
sabiam procurar.
No que, porem,
acabada de se passar aquela cena, surgia no adro Duarte Dias, mais uns
companheiros e serviçais, para opor a surpresa de uma exigência e fazer
problema: queria carregar consigo o moço, sobre fundamento de que, pela
brancura da tez e delicadezas mais, devia de ser um dos Rezendes, seus
parentes, desaparecidos no Condado, no terremoto; e que, pois, até o
reconhecimento de alguma notícia, competia-lhe o ter em custódia, pelo costume.
Sendo que Hilário Cordeiro pronto contestou o postulado, e o argumento por um
nada terminava em desavença séria. Duarte Dias porfiando e se excedendo, do que
só tornou em si ante o parecer de Quincas Mendanha, do Serro, notável na
política e provedor da Irmandade.
E, todavia, de
seu zelo, mais para diante, Hilário Cordeiro iria ter melhor razão, eis que
tudo lhe passou a dar sorte, quer na saúde e paz, em sua casa, seja no assaz
prosperar dos negócios, cabedais e haveres. E não que o moço lhe facultasse
ajuda, na sujeição de serviço ou no vagar a algum ofício, em que, de feito, nem
pudesse dar descargo de si — com as mãos não calejadas, alvas e finas, de
homem-de-palácio. Ele andava muito na lua, passeava por todo o lugar e alhonde,
praticando aquela liberdade vaporosa e o espírito de solidão; parecesse
alquebrado de um feitiço, segundo os dizeres do povo. Não embargando que
grandes partes tivesse, para o que fosse de funções de engenhos, ferramentas e
máquinas, ao que se prestava, fazendo muitas invenções e desembaraçando as
ocasiões, ladino, cuidoso e acordado. De estranha memória, só, pois, a de olhar
ele sempre para cima, o mesmo para o dia que para a noite — espiador de
estrelas. Que vezes, porém, mais lhe prouvesse o divertimemo de acender fogos,
sendo de reparo o quanto se influiu, pelo São João, nas tantas e tamanhas
fogueiras de festa.
Do que adveio,
justo, o caso da moça Viviana, sempre mal contado. O que foi quando ele lá
apareceu, acompanhado do preto José Kakende, e deu com a moça, mui bonita, mas
que não se divertia ao igual das outras: e ele se chegou muito a ela, gentil e
espantoso, lhe pôs a palma da mão no seio, delicadamente. Ora, sendo assim a
moça Viviana a mais formosa, tinha-se para admirar que a beleza do feitio lhe
não servisse para transformar, no interior, a própria e vagarosa tristeza. Mas,
Duarte Dias, o pai, e que a isso assistia, prorrompeu em pleiteantes brados de:
— "Tem que casar! Agora, tem de
casar!" — com instância. Afirmava que o moço era homem, e um, e ainda
mancebo, e lhe infamara a filha, devendo-lhe de a tomar por consorte e arcar
com o estado de casado. O moço ouvia, de boa concórdia, e nem por isso. Mas a
grita de Duarte Dias só teve termo, quando o padre Bayão, e outros dos mais
velhos, lhe rejeitaram tão descabidas fúrias e insensatez. Também a moça
Viviana, com radiosos sorrisos, o serenava. Ela, que, a partir dessa hora,
despertou em si um enfim de alegria, para todo o restante de sua vida, donde um
dom. Apenas que, Duarte Dias — o que não se entende — ia produzir ainda outros
lances de estupefação, eis-aqui.
De tal guisa
que, para o alvoroço de todos, no dia da missa da Dedicação de Nossa Senhora
das Neves e vigília da Transfiguração, 5 de agosto, ele veio à Fazenda do
Casco, requerendo falar com Hilário Cordeiro. Também o moço lá estava.
Outrovisto, e nunca desairoso — a gente espiava, e pensava num logo luar.
Então. Duarte Dias declarou: suplicava deixassem-no levar o moço, para sua
casa. Que queria assim, e necessitava, muito, não por ambicioneiro ou impostor,
nem por interesses somenos, mas por a ele ter cobrado, com contrições de
escrúpulo, a fortíssima estima de afeição! Dizia, e desgovernava as palavras,
alterado, enquanto que dos olhos lhe corriam bastas lágrimas. Ora, não se
compreendendo o descabelo de passo tão contrariado: o de um homem que, para
manifestar o amor, ainda não dispunha mais que dos arrebatados meios e modos da
violência. Mas, o moço, claro como o olho do sol, o pegou da mão, e, com o
preto José Kakende, o foi conduzindo pelos campos —
depois se soube que a terras dele mesmo, Duarte, aonde à
tapera de uma olaria. E lá indicou que mandasse cavar: com o que se achou, ali,
uma grupiara de diamantes; ou um panelão de dinheiro, segundo diversa tradição.
Por arte de qual prodígio, Duarte Dias pensou que ia virar riquíssimo, e mudado
de fato esteve, da data por diante, em homem sucinto, virtuoso e bondoso,
surprendentemente, consoante o asseverar sobremaravilhado dos coevos.
Mas, por contra,
no dia da venerada Santa Brígida, de voz comum de novo dele se soube: o moço,
plácido. Disse-se, que saíra, na véspera, de paragem, pelos altos, num de seus
desapareceres: era um tempo de trovoadas secas. José Kakende contava somente
que o ajudara a acender, de secreto, com formato, nove fogueiras: e, mais, o
Kakende soubesse apenas repetir aquelas suas velhas e divagadas visões — de
nuvem, chamas, ruídos, redondos, rodas, geringonça e entes. Com a primeira luz
do sol, o moço se fora, tidas asas.
Todos singularmente se deploraram, para
nunca, mal em pensando. Duvidavam dos ares e montes; da solidez da terra.
Duarte Dias, de dó, veio a falecer; mas a filha, a moça Viviana, conservou sua
alegria. José Kakende conversou muito com o cego. Hilário Cordeiro, e outros,
diziam experimentar uma saudade e meia-morte, só de imaginarem nele. Ele
cintilava ausente, aconteceu. Pois. E mais nada.
(“Primeiras Estórias”, João Guimarães Rosa, Livraria
José Olympio Editora, 1974, Páginas 119 a 125.)
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