sábado, 14 de novembro de 2015

"A Grande Síntese" - Pietro Ubaldi (Gênio e Nevrose)

         O extraordinário texto que transcreverei a seguir, encontra-se na obra “A Grande Síntese”, do escritor místico ítalo-brasileiro Pietro Ubaldi, Edição Lake, São Paulo, 7ª edição, 1950, páginas 332 a 336. Ele fala de “nevrose”. Nos dicionários modernos, “nevrose” é apenas neurose. Não satisfeito com esta definição, procurei uma antiga enciclopédia (cujos dados editoriais não anotei) e encontrei este outro sentido: “Nevrose – Doença caracterizada por perturbações do sistema nervoso sem lesão anatômica apreciável; qualquer doença nervosa”. Na “Encyclopedia e Diccionario Internacional”, W. M. Jackson, inc. Editores, Rio de Janeiro – Nova York, Volume XIII, página 7852, lemos: “Nevrose (do gr. neuron, nervo), s. f. Doença apyretica, caracterisada por perturbações do systema nervoso sem lesão anatomica apreciavel”. (Com a grafia antiga.) No livro “Racionalismo Cristão”, Centro Redentor, Rio de Janeiro, 1991, 38ª edição, página 34, lemos: “Dá-se o nome de Nevroses, em Medicina, a estados mórbidos que consistem em perturbações funcionais sem lesões materiais nem causas apreciáveis, que se observam, principalmente, não só na vida de relação, mas também na vegetativa”. Eis o texto:

            "GÊNIO  E  NEVROSE

         Encerraremos a exposição da teoria do super-homem, observando como ele se manifesta na evolução biológica, sob a forma do gênio, procurando, pois, compreender as afinidades que, devido a conclusões erradas, se fizeram ressaltar entre o seu tipo e a degeneração nevrótica, e definir, por fim, o fenômeno da degradação biológica no processo genético do psiquismo.
         Enquanto que a mediocridade estacionária pára, na sua fase, em perfeito equilíbrio, lançam-se contra os que tentam novas vias todos os ataques das forças biológicas. O misoneísmo, (nota minha: aversão ao que é novo) como garantia de estabilidade, é impulso de nivelamento, e a vida experimenta asperamente as antecipações e as criações. Se o gênio passa pela terra como um turbilhão, a massa se agarra a ele para mantê-lo em baixo. No tipo comum, os instintos estão em proporção com as condições ambientes; há uma correspondência, já estabelecida antes que o indivíduo nasça, entre ele e a coletividade, e essa correspondência o espera, de maneira que ele encontre já preparado o trabalho e a sua satisfação. E a compreensão é automaticamente perfeita. Contrariamente, o gênio – monstruosa hipertrofia do psiquismo – colocado numa posição biológica supranormal, se encontra, em tudo e por tudo, fora de fase. É impossível estabelecer uma correspondência entre o seu instinto, que normaliza o supranormal, e o ambiente, que exprime uma outra fase e oferece outros embates. A diferença de nível produz uma desproporção; a compreensão não se dá; o desequilíbrio entre a sua alma e o mundo é insanável; a conciliação entre a sua natureza e a vida é impossível.
         E o gênio passa, solitário e dolorido, mas consciente do seu destino; incompreendido e gigantesco, enojado dos ídolos da multidão, aturdido com o ruído da vida, desatento e inábil porque sua alma está toda embevecida com um cântico sem fim que do seu íntimo se desata e sobe ao encontro do infinito. Estranho sonhador, presa do tormento sagrado da criação, absorvido nos ócios fecundos em que amadurece o invisível e íntimo labor, sofre de uma paixão a que responde não o homem, mas o universo. A imensidão do infinito lhe está perto, e ele não vê a terra que atrai todos os olhares e todas as paixões. Vive de lutas titânicas, pede à vida a realização do ideal, sem possibilidade de consentir na mediocridade, aspirado como um turbilhão no afã da evolução. Ele conhece o esmorecimento de quem defronta sozinho o abismo dos grandes mistérios, a vertigem das grandes alturas, o amargurado isolamento da alma em face da inconsciência humana; conhece a luta atroz contra a animalidade a querer ressurgir, as imensas fadigas e os perigos que esperam quem quer desferir o vôo. Os cegos dizem: está louco. Ele se sente esmagado pelo inútil peso do número, compreende a inferioridade de quem não o compreende. Também a ciência, filha da mentalidade utilitária da mediocridade incompetente, mas ávida de julgar, sentencia: nevrose.
         Mas o gênio não pode descer; sente o seu Eu a gritar e não pode calar. Ele não é, como os outros, simplesmente um corpo; é, acima de tudo, uma alma. O espírito, que em tantos cochila e tem que nascer, nele aparece gigante, evidente, troveja e se impõe. Quem pode compreender suas lutas titânicas? A humanidade caminha lentamente, sob o esforço de sua evolução; ele está à frente e arca com toda responsabilidade; arrasta o peso de todos.
         A multidão diz: anormal; a ciência diz: nevrose. Mas conhece porventura a ciência as relações entre dor e ascensão espiritual, entre doença e gênio? Conhece os profundos equilíbrios em que se oculta a função biológica do patológico? Conhece sob que leis de compensação física e moral funcionam as íntimas harmonias da vida? Mas, se ignora todos os fenômenos sutis da alma, e até mesmo a nega, que pode compreender essa ciência fragmentária, incapaz de síntese, dessa complexidade de leis superiores de cuja existência nem sequer suspeita? E como é possível constringir o supranormal, a antecipação biológica, nos limites do tipo médio? E por que este que, evolutivamente, representa o mais medíocre valor, há de ser escolhido para modelo humano? Que é que justifica esse nivelamento, essa redução de altitude a categorias preconcebidas, esse apriorismo que inverte a visão do fenômeno, exaltando no gênio apenas o lado pseudo-patológico da nevrose? Não é patológico o cansaço proveniente de um enorme trabalho, o desequilíbrio necessário dado pelas antecipações evolutivas, o tormento e o esforço das mais elevadas maturações, a inconciliabilidade inevitável entre o super-psiquismo conquistado e o organismo animal.
         Estas vias de aperfeiçoamento moral estão em exata continuação da evolução orgânica darwiniana, e a ciência que compreendeu uma, deveria, por coerência, compreender a outra. É lei de equilíbrio natural que toda hipertrofia, como toda atrofia, seja compensada. Assim como no campo orgânico todo indivíduo tem normalmente um ponto de menor resistência e maior vulnerabilidade, que é cercado por um reforço proporcional de outros pontos estratégicos, também no campo psíquico há um desenvolvimento de qualidades de que a mediania nem sequer suspeita. Não se pode julgar um tipo psíquico, de exceção, com os critérios e unidades de medidas comuns, para relegá-lo sumariamente ao anormal e ao patológico. Insisto sobre isto, porque assim se inverterá a apreciação daquele novo tipo de homem que os tempos modernos têm exatamente a função de criar.
         É sufocar a evolução esse querer reconduzir ao anormal tudo o que exorbita da maioria medíocre, constituindo o tipo humano mais comum, de valor duvidoso, como tipo ideal. É um delito esse querer rebaixar aquilo que não se compreende, esse conjugar e confundir, colocando igualmente fora da lei o sub-normal e o supranormal, isto é, fenômenos que estão simplesmente nos antípodas.
         À parte as injustiças históricas, delineia-se também hoje, por vezes, o tipo humano tendente ao supranormal: é o terceiro tipo de homem, como já vimos. É um tipo de personalidade que exprime, por madureza de instintos, aprimoramento moral e superior intelectualidade, a realizada assimilação das qualidades mais úteis à convivência social, constitutivas do edifício da virtude, a formação, realizada, do tipo para o qual a humanidade tende no seu desenvolvimento. Inteligência, dinamismo, apurada sensibilidade e percepção do belo e do bom, uma retidão em que estão fixados os mais altos ideais de honestidade e altruísmo, que são índices do grau de evolução; uma superior aptidão para fortalecer o encadeiamento social e a funcionar no organismo coletivo; sinais todos esses de nobreza de raça, de aristocracia de espírito.
         Entretanto, há ao mesmo tempo uma sensibilização dolorífica reveladora do esforço para novas adaptações, o tormento de um ser que geme sob o peso de violentas deslocações biológicas, a rebelião de um funcionamento orgânico não costumeiro e que não sabe dobrar-se às exigências que um psiquismo preponderante impõe, na improvisa dilatação das suas potencialidades. Se hoje ele parece um débil, acumula em si, entretanto, qualidades e poderes espirituais que o admitirão, um dia, entre os futuros dominadores do mundo, enquanto que aos normais, aos equilibrados do ciclo das funções animais, caberão, por seleção natural, as funções de servos. Se ele manifesta uma tendência a neurastenizar-se, é que possui um temperamento vanguardeiro, que chama a si o risco da preparação das verdades futuras e desempenha uma grande função no  equilíbrio da vida. Se na sua própria emotividade e afetividade, demasiadamente intensas, na exaltação da inteligência e da sensibilidade, na moral aprimorada, há qualquer coisa de ultra-refinado – como de raça aristocrática que, por estar demasiado madura, agoniza e morre – socialmente ele é um fermento precioso de sensibilidade e atividade, uma centelha de vida no meio de uma massa de medíocres em que a inércia predomina e a vida não sabe senão manter-se e reproduzir-se, fechada no ciclo de suas funções animais.
         E estes seres delicados foram e são obrigados a viver no mundo de todos. E que terrível abalo pode reservar para eles a luta que o tipo comum, carente de escrúpulos e de sensibilidade, pode conduzir tão brutalmente! Eles são generosos e honestos; não sabem prostituir a alma todos os dias por uma vantagem imediata; vivem daquilo que o mundo só irá ver daqui a milênios e pagam caro a própria superioridade. A dor, caminho das grandes ascensões, é o seu mais íntimo companheiro. Neles a natureza humana, que morre para dar vida ao psiquismo super-humano, sofre o tormento da agonia e, com uma afetividade intensa, incompreensível para os normais, implora desesperadamente ajuda para não morrer. O mundo ri, mas já foi assinalado na petição do Grande entre os grandes: ‘Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem’. O homem julgado inconsciente! Triste herança a normalidade! E quanto maior é o espírito, tanto mais fortemente é premido pela dor, para a sua ascensão. É lei da natureza que as grandes criações sejam filhas das grandes dores; que o processo das criações biológicas, que é o mais fecundo, seja o mais laborioso, o mais onerado de fadigas. E qual o trabalho mais penoso do que o de vencer a inércia biológica e dominar o impulso de forças milenárias condensadas no atavismo?
         É bem grave, para quem vive nesse mundo e desses trabalhos, o ter de acrescentar à luta exterior de todos a tensão dessas grandes guerras interiores e o encerrar no centro de si, em lugar de um cérebro aliado e amigo, que ajude na conquista material, um cérebro que visa meta diversa, que não auxilia mas agride a vida, lhe transforma o trabalho e complica os obstáculos, que aumenta o sofrimento, acrescenta às dificuldades do mundo exterior o peso enorme do drama íntimo que, por si só, é suficiente para esmagar um homem. Em que terrível problema não se transformará a vida assim vivida, colocada entre a luta exterior e a interior, ambas sem descanso? A deslocação das aspirações humanas e a inversão dos valores comuns isolam e vergastam; a realidade sensória ultraja o sacrifício; o presente não quer morrer pelo amanhã, o corpo pelo espírito, o tangível pelo imponderável. Custa grande esforço a deslocação do eixo da vida e a revalorização de si mesmo num mais elevado nível, a construção de uma alma nova.
         A este ser a ciência chama psicopático. Há, sem dúvida, uma nevrose patológica de síndrome clínico mais ou menos evidente, em que se acha, de fato, exaltada a tonalidade da dor e da sensibilidade, mas demasiadas vezes a ciência há querido reduzir a isso uma quantidade de fenômenos que pertencem ao supranormal e certas maravilhosas compensações da natureza que sublimam o espírito e põem um agigantamento de manifestações intelectuais no coração de uma psique tormentosa. Tem a ciência desvalorizado, assim, um tipo humano que pode vir a ter uma função na economia da vida social. Com essa incompreensão, a ciência tem invertido a sua tarefa, que é a de valorizar as forças da vida. Grande responsabilidade constitui, para quem fala com autoridade, de uma cátedra, o não saber divisar estas mais altas fases da evolução biológica que, não obstante, é tão estrenuamente defendido, assim como o haver compreendido apenas um fragmento da verdade tão somente para rebaixar o espírito ao nível do corpo, não para elevar o homem à dignidade espiritual.”

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