A sátira “Uma Modesta Proposta”, de Jonathan Swift, 1667-1745, escritor
irlandês, autor de “Viagens de Gulliver”, encontra-se na obra “Os 100 Melhores
Contos de Humor da Literatura Universal”, organização de Flávio Moreira da
Costa, Ediouro, Rio de Janeiro, 2001, 3ª edição, páginas 101 a 108, tradução de
Leonardo Fróes. Traz um subtítulo: “Para Impedir que os Filhos de Gente Pobre
da Irlanda sejam um Peso para os seus Pais ou o País; e para torná-los úteis ao
Povo”.
Swift
fala, no início, do melancólico espetáculo de crianças miseráveis, famintas e
esfarrapadas, a importunar os cidadãos pedindo esmolas, acompanhadas de suas
mães, a implorar pelo sustento de seus filhos. Diz que aquele que encontrasse
um sistema “simples, barato e lícito” para tornar tais crianças elementos
aproveitáveis para a sociedade, receberia a gratidão do povo. Até um ano de
idade os bebês podem ser amamentados pelas mães, sem nenhuma despesa. O plano
de Swift prevê cuidar dos infantes após os primeiros doze meses de vida, de tal
maneira que, ao invés de se constituírem num peso para a coletividade, possam,
ao contrário, ajudar a alimentar muita gente. A proposta evitaria também os
abortos voluntários e a morte de filhos bastardos.
De um total de um milhão e meio de habitantes, na Irlanda nascia
aproximadamente cento e vinte mil crianças por ano, naquela época, de pais
miseráveis. Como sustentá-los? Eis uma questão dificílima! Só poderiam se
dedicar ao roubo após os seis anos de idade. E meninos e meninas com menos de
doze anos não eram comercialmente vendáveis. Desta forma, Swift propôs o
seguinte, esperando não encontrar nenhuma objeção:
“UM Americano muito sabido, do meu Conhecimento em Londres, assegurou-me
que uma Criancinha sadia e bem criada é, com um Ano de idade, o Alimento mais
delicioso, nutritivo e benéfico que existe, seja Cozida, Grelhada, Assada ou
Ferventada; e não duvido de que sirva igualmente para um Fricassê ou um Ragu.”
Fricassê é um guisado de carne partida em pequenos pedaços, com gemas de
ovos e variados temperos. Ragu é carne ensopada ou guisada com legumes e
molhos.
Daquelas cento e vinte mil crianças, um sexto seria reservado para a
procriação, ou seja, vinte mil. Destas vinte mil, a quarta parte seria de
machos. Assim, com doze meses de existência, cem mil bebês estariam à venda
para a classe alta, em todo o Reino. E se aconselharia às mães deixar os seus
filhos mamar à vontade no último mês, ficando desta forma gordinhos e
rechonchudos, o ideal para uma mesa farta.
“Uma Criança dará dois Pratos numa Recepção para Amigos; e, quando a
Família jantar sozinha, um dos Quartos, traseiro ou dianteiro, será um Prato
razoável que, temperado com um pouco de Pimenta e Sal, dará um ótimo Ensopado
no quarto Dia, especialmente no Inverno.”
Um recém-nascido pesaria algo em torno de doze libras. Com um ano
poderia chegar a vinte e oito.
“RECONHEÇO que essa Comida será um pouco cara e, portanto, mais adequada
para Proprietários de Terras; que, já tendo devorado a maioria dos Pais,
parecem plenamente fazer Jus aos Filhos.”
A carne de criança estaria disponível o ano inteiro. O custo da criação
de bebês de mendigos, trabalhadores manuais e camponeses, incluindo suas
vestes, seria de dois xelins por ano; e nenhum cavalheiro abastado se recusaria
a pagar dez xelins pela carcaça de um infante bem nutrido. A mãe teria oito
xelins de lucro.
“OS que aproveitam tudo (como devo reconhecer que os Tempos exigem)
podem esfolar a Carcaça, cuja Pele, artificialmente tratada, dará admiráveis
Luvas para Senhoras e Botas de Verão para Cavalheiros finos.”
Em Dublin, poderiam se construir matadouros para esta finalidade, não
faltando açougueiros. Se bem que o autor da proposta recomende a compra das
crianças ainda vivas, matando-as em casa mesmo, a facadas, como se faz com os
leitões, preparando a carne ainda quente.
A seguir, Swift discorre sobre a inconveniência do consumo de carne de
rapazinhos e mocinhas de doze a quatorze anos, referindo-se aos famintos,
carentes de meios de sobrevivência. Os machos teriam a carne dura e magra, não
valendo a pena engordá-los. As fêmeas tornar-se-iam em breve reprodutoras.
Passa o autor a enumerar algumas vantagens de sua proposta. Os
camponeses, arruinados pelos donos das terras, teriam nos filhos uma renda
assegurada contra a miséria total. Com o negócio em larga escala, as reservas
da Irlanda aumentariam em milhares de libras. Os reprodutores permanentes, além
de auferirem um lucro de oito xelins por ano com a venda dos filhos, ficariam
livres da obrigação de sustentá-los após os doze meses de idade. Os donos de
tabernas se esmerariam em oferecer aos distintos fregueses os melhores pratos,
com as receitas mais sofisticadas e caras. Aumentaria o carinho das mães para
com os filhos, posto que estes dariam lucros e não despesas à sociedade; elas
se rivalizariam, na disputa por levar ao mercado a criança mais gordinha. Os
homens amariam muito mais as esposas grávidas, não mais as espancando,
tratando-as com o mesmo cuidado que dispensam às suas éguas e porcas prenhes. A
carne dos leitões não pode se comparar à de um bebê de um ano, bem criado e
gorducho, quer em sabor ou pompa. Assada inteira, uma criança faria grande
sucesso nos banquetes oficiais.
“SUPONDO-SE que Mil Famílias desta Cidade fossem Fregueses constantes de
Carne de Criança, além de outras que a tivessem em Reuniões festivas, particularmente
Casamentos e Batizados, calculo eu que Dublin consumiria por Ano cerca de Vinte
Mil Carcaças, e o resto do Reino (onde provavelmente elas custariam um pouco
mais barato), as demais Oitenta Mil.”
Diz Swift não lhe ocorrer objeção alguma contra a sua proposição, a não
ser a de reduzir a população do Reino, o que não o desagradaria. Ressalta que
esta ideia se limita somente ao território da Irlanda. Afirma que ela não
implica em gastos, nem seria contrária aos interesses da Inglaterra.
Termina ele com estas palavras:
“DECLARO, com toda a Sinceridade do meu Coração, não ter o menor
Interesse pessoal ao me empenhar em
promover essa Obra tão necessária; um só Motivo me impele, e é o Bem-estar
de todo o nosso País, desenvolvendo para tanto o Comércio, cuidando das
crianças, socorrendo os Pobres e dando um pouco de Prazer aos Ricos. Não tenho
Filhos pelos quais eu me possa habilitar a ganhar sequer um Vintém; o mais novo
já está com nove Anos e a minha Esposa passou da idade de ser Mãe.”
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