terça-feira, 11 de agosto de 2015

Micrômegas - VII - Voltaire

VII
Conversação com os homens

      - Ó átomos inteligentes, em quem o Ser Eterno se comprazeu em manifestar seu engenho e poderio, deveis sem dúvida gozar das mais puras alegrias sobre o vosso globo; pois, tendo tão pouca matéria e parecendo puro espírito, deveis passar a vida a amar e a pensar, que é o que constitui a verdadeira vida dos espíritos. A verdadeira felicidade, que não vi em parte nenhuma, com certeza é aqui que existe.
      A tais palavras, todos os filósofos abanaram a cabeça; e um deles, mais franco que os outros, confessou de boa fé que, excetuando um pequeno número de habitantes muito pouco considerados, o resto é tudo uma assembléia de loucos, de maus e de infelizes.
      - Nós temos mais matéria do que é necessário - disse ele - para fazer muito mal, se o mal vem da matéria, e temos espírito em demasia, se o mal vem do espírito. Não sabeis, por exemplo, que, no instante em que vos falo, há cem mil loucos da nossa espécie, cobertos de chapéus, que matam cem mil outros animais cobertos de um turbante, ou que são massacrados por estes, e que, quase por toda a Terra, é assim que se faz, desde tempos imemoriais?
      O siriano estremeceu e perguntou qual poderia ser o motivo dessas terríveis querelas entre tão mesquinhos animais.
      - Trata-se - disse o filósofo - de uma porção de lama do tamanho de vosso calcanhar. Não que algum desses milhões de homens que se exterminam pretenda um palmo que seja dessa lama. Trata-se apenas de saber se pertencerá a certo homem a que chamam Sultão, ou a outro homem a que chamam César, não sei por quê. Nenhum dos dois viu, ou jamais verá, o pedacinho de terra em questão, e quase nenhum desses animais que mutuamente se degolam já viu algum dia o animal pelo qual se degolam.
      - Infelizes! - exclamou o siriano indignado. - Pode-se acaso conceber mais furiosa loucura? Vem-me até vontade de dar três passos e esmagar com três patadas esse formigueiro de ridículos assassinos.
      - Não vos deis a esse incômodo; eles já trabalham bastante para a sua própria ruína. Ficai sabendo que, passados dez anos, já não resta nem a centésima parte desses miseráveis, e, mesmo que não tivessem puxado da espada, a fome, a fadiga ou a intemperança os levam a quase todos. Aliás, não é a estes que é preciso punir, mas sim a esses bárbaros sedentários que, do fundo de seu gabinete, ordenam, durante a digestão, o massacre de um milhão de homens, e em seguida o agradecem solenemente a Deus.
      O viajante sentia-se apiedado da pequena raça humana, na qual descobria tão espantosos contrastes.
      - Já que pertenceis ao pequeno número dos sábios - disse-lhes ele - e aparentemente não matais a ninguém por dinheiro, dizei-me em que vos ocupais então.
      - Dissecamos moscas - respondeu o filósofo -, medimos linhas, encordoamos números, pomo-nos de acordo acerca de dois ou três pontos que entendemos, e disputamos sobre dois ou três mil que não entendemos.
      Ocorreu então ao siriano e ao companheiro a fantasia de interrogar aqueles átomos pensantes sobre coisas que ambos conheciam.
      - Quanto contais - indagou Micrômegas - da estrela da Canícula à grande estrela dos Gêmeos?
      - Trinta e dois graus e meio - responderam todos ao mesmo tempo.
      - Quanto contais daqui até a lua?
      - Sessenta semidiâmetros da Terra, em números redondos.
      - Quanto pesa o vosso ar?
      Supunha confundi-los nesse ponto, mas todos responderam que o ar pesa cerca de novecentas vezes menos que igual volume de água e dezenove mil vezes menos que o ouro.
      O anãozinho de Saturno, atônito com suas respostas, sentiu-se tentado a tomar como feiticeiros àqueles mesmos a quem havia negado uma alma quinze minutos antes. Afinal disse-lhes Micrômegas:
      - Já que sabeis tão bem o que se acha fora de vós, decerto sabeis ainda melhor o que tendes por dentro. Dizei-me o que é a vossa alma e como formais as vossas idéias.
      Os filósofos falaram todos ao mesmo tempo, como antes, mas foram de diferentes opiniões. O mais velho citava Aristóteles, outro pronunciava o nome de Descartes, este o de Malebranche, aquele o de Leibniz, aqueloutro o de Locke. Um velho peripatético disse em voz alta com toda a segurança:
      - A alma é uma enteléquia, razão pela qual tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, página 633 da edição do Louvre: (...), etc.
      - Não entendo muito bem o grego - disse o gigante.
      - Nem eu tampouco - replicou o inseto filosófico.
      - Por que então - tornou o siriano - citais um certo Aristóteles em grego?
      - É que - replicou o sábio - cumpre citar aquilo de que não se compreende nada na língua que menos se entende.
      O cartesiano tomou a palavra e disse:
      - A alma é um espírito puro, que recebeu no ventre da mãe todas as idéias metafísicas, e que, ao sair de lá, é obrigada a ir para a escola e aprender de novo tudo o que tão bem sabia e que não mais saberá!
      - Então não valia a pena - retrucou o animal de oito léguas - que a tua alma fosse tão sábia no ventre de tua mãe, para ser tão ignorante quando tivesses barba no queixo. Mas que entendes por espírito?
      - Bela pergunta! - exclamou o raciocinante. - Não tenho disso a mínima idéia: dizem que não é matéria.
      - Mas sabes ao menos o que é a matéria?
      - Perfeitamente - respondeu o homem. - Por exemplo, esta pedra é cinzenta, e de determinada forma, tem as suas três dimensões, é pesada e divisível.
      - Pois bem - disse o siriano -, e essa coisa que te parece divisível, pesada e cinzenta, saberás dizer-me exatamente o que seja? Tu lhe vês alguns atributos; mas o fundo da coisa, acaso o conheces?
      - Não - disse o outro.
      - Não sabes, pois, o que é a matéria.
      Então o Senhor Micrômegas, dirigindo a palavra a outro sábio, a quem equilibrava sobre o polegar, perguntou-lhe o que era a sua alma, e o que fazia.
      - Absolutamente nada - respondeu o filósofo malebranchista -, é Deus que faz tudo por mim; vejo tudo em Deus, faço tudo em Deus: é ele quem faz tudo, sem que eu me preocupe.
      - É o mesmo que se não existisses - tornou o sábio de Sírio. - E tu, meu amigo - disse a um leibniziano que ali se achava -, que vem a ser a tua alma?
      - É - respondeu o leibniziano - um ponteiro que indica as horas, enquanto o meu corpo toca o carrilhão; ou, se quiserdes, é ela quem carrilhona, enquanto o meu corpo marca a hora; ou então, é minha alma o espelho do universo, e meu corpo a moldura do espelho: isso é bem claro.
      Um minúsculo partidário de Locke achava-se ali perto; e quando afinal lhe dirigiram a palavra:
      - Eu não sei como é que penso - respondeu -, mas sei que nunca pude pensar senão com o auxilio de meus sentidos. Que haja substâncias imateriais e inteligentes, eu disso não duvido; mas também não nego que Deus possa comunicar pensamento à matéria. Venero o poder eterno, não me cabe limitá-lo; nada afirmo, contento-me em acreditar que há mais coisas possíveis do que se pensa.
      O animal de Sírio sorriu: não achou que fosse aquele o menos sábio; e o anão de Saturno teria abraçado o sectário de Locke, se não fora a extrema desproporção entre ambos. Mas, por desgraça, havia ali um animalículo de capelo que cortou a palavra a todos os animalículos filosofantes: disse que sabia o segredo de tudo, o qual se achava na Suma de Santo Tomás; mediu de alto a baixo os dois habitantes celestes; sustentou-lhes que as suas pessoas, os seus mundos, sóis e estrelas, tudo era feito unicamente para o homem. A isto, os nossos dois viajantes tombaram um nos braços do outro, sufocados de riso, esse riso inextinguível que, segundo Homero, é próprio dos deuses; seus ombros e ventres agitavam-se, e, nessas convulsões, o navio que Micrômegas trazia na unha caiu no bolso das calças do saturniano. Os dois o procuraram por muito tempo; afinal encontraram e reajustaram tudo convenientemente. O siriano retomou os pequenos insetos; falou-lhes de novo com muita bondade, embora no íntimo se achasse um tanto agastado de ver que os infinitamente pequenos tivessem um orgulho quase infinitamente grande. Prometeu-lhes que redigiria um belo livro de filosofia, escrito bem miudinho, para seu uso, e que, nesse livro, veriam eles o fim de todas as coisas. Com efeito, entregou-lhes esse volume, que foi levado para a Academia de Ciências de Paris. Mas, quando o secretário o abriu, viu apenas um livro em branco. - Ah! bem que eu desconfiava... – disse ele.

(“Contos”, Voltaire [François Marie Arouet], Abril Cultural, São Paulo, 1ª Edição, maio 1972, Tradução de Mário Quintana, Coleção Os Imortais da Literatura Universal, Volume 40, Páginas 109 a 129.)

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