segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Um Messias crocodilo em "As Confissões de Frei Abóbora", de J. M. de Vasconcelos

      “Zéfinêta (nota minha: uma lagartixa) pensou como poderia traduzir a história que Ab lhe contara, reduzindo-a à expressão mais simples, àquelas inteligências pequenininhas. Fez pose de grande contadora e começou:
      - Foi assim. Deus, o Grande Camaleão que fez o mundo, estava muito triste. Triste porque havia uma briga danada nos seres que habitavam os grandes rios. Por causa da pesca e das águas, os crocodilos brigavam com os jacarés. Estes com os caimãs e os caimãs com os gaviais; era uma briga tão grande que o rio ficou vermelho de sangue, em vez das águas serem claras...
      Olhou em volta e viu o interesse dos ouvintes. Então dava para continuar.
      - Aí o Grande Camaleão não gostou disso. ‘Afinal não fiz o mundo para que ele se destruísse sozinho’. Pensou que pensou e resolveu dar uma chance ao mundo mandando um filho santo e crocodilo para salvar a humanidade. E assim fez: pegou uma iguana muito linda, muito verde, de olhos redondos que se chamava Maria e era casada com um velho jacaré chamado José e disse: ‘você vai ser a mãe do meu filho’.
      Ouviu-se uma vozinha meio de longe.
      - Não foi nada disso que ele contou.
      Zéfinêta ficou fula de raiva. Ranglabiana admoestou.
      - Cale a boca, Xittitinha. Não se meta em conversas de mais velhos. Vamos, menina, que a história está muito linda e prosaica.
      - Aí foi aquela coisa. Maria ficou esperando uma ninhada, mas que só valia um ovo mesmo, do qual nasceria o filho do Grande Camaleão. Foi procurar um hotel, porque já estava pesada, mas todos os grandes montes de areia do rio estavam ocupados. Depois eles não podiam pagar, porque José era muito velho para caçar e não tinha peixe morto para pagar o aluguel. Eles foram andando e foram andando até que chegaram em Belém.
      Undrubligu ficou intrigado.
      - Que Belém, Belém do Pará?
      - Acho que foi.
      - Não sei, eu tenho um primo que veio de lá, pegando carona num motor, que conhece toda a história de Belém, e nunca falou disso.
      - Pois se o homem disse que foi Belém, é porque foi. Ele não mente. Mas vou continuar ou não vou?
      Chegaram a um acordo e se calaram.
      - Só numa gruta onde moravam dois calangões é que acharam um lugar. Aí nasceu o filho que vinha chamar os homens na cabeça. Foi uma festa. Pegaram um grande jacaré, colaram ele de pirilampos e penduraram no céu como uma grande lanterna para anunciar o nascimento do filho divino do Grande Camaleão. Vieram três grandes reis crocodilos de três cores: um amarelo, um verde e um marrom. Trouxeram presentes caros: pedaços de pirarucu, peixe-elétrico, óleo de boto. Foi uma festa. Eles vieram de muito longe e eram grandes reis.
      - Se vieram de longe, só podem ter vindo de Manaus, descendo o Amazonas.
      Zéfinêta não sabia explicar aquele detalhe.
      -Acho que foi.
      - E daí?
      - Daí, o filho de Maria cresceu e se transformou no mais lindo crocodilo do mundo. Tinha uns olhos verdes lindíssimos e pestanas douradas. Foi falando, dizendo coisas bonitas e belíssimos ensinamentos para a humanidade. Quem aproveitou, aproveitou. Ficou sendo melhor. Mas quem não gostou mesmo foram os ladrões, os safados, os desonestos. E como estes estavam com a maioria, combinaram matar o filho de Maria. Armaram uma emboscada e zuquet: arpoaram ele. Como seu coro era muito lindo fizeram dele milhares de bolsas de crocodilos, cintos e carteiras. Eis porque no Natal todo mundo dá presente e bebe muito. Até hoje ainda dão presente de bolsas de crocodilo, lembrando o que viera para salvar a humanidade. Foi só.
      Ranglabiana comentou:
      - O final está meio descosido, mas é de se louvar a grande memória que tem essa menina e o jeito de contar as coisas.”

      (“As Confissões de Frei Abóbora”, José Mauro de Vasconcelos, Edições Melhoramentos, São Paulo, 3ª Edição, 1969, Página 82-83.)

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