quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Micrômegas - II - Voltaire

II
Conversação do habitante do Sírio com o de Saturno

      Depois que sua Excelência se deitou o secretário aproximou-se de seu rosto:
      - Tem-se de confessar - disse Micrômegas - que a natureza é bastante variada.
      - Sim - disse o saturniano -, a natureza é como um canteiro cujas flores...
      - Ah! - exclama o outro. - Deixe o canteiro em paz.
      - Ela é - tornou o secretário - como uma assembléia de loiras e morenas cujos adornos...
      - Que tenho eu a ver com as suas morenas?
      - É então como uma galeria de pinturas cujos traços...
      - Ora! - atalha o viajante. - De uma vez por todas: a natureza é como a natureza. Para que buscar-lhe comparações?
      - Para ser agradável ao senhor - respondeu o secretário.
      - Eu não quero que me agradem - retrucou o viajante. - Quero que me instruam. Comece por me dizer quantos sentidos têm os homens do seu globo.
      - Temos setenta e dois - disse o acadêmico. - E todos os dias nos queixamos de tão pouco. A nossa imaginação vai além de nossas necessidades; achamos que, com os nossos setenta e dois sentidos, o nosso anel, as nossas cinco luas, somos muito limitados; e, apesar de toda a nossa curiosidade e do considerável número de paixões que resultam dos nossos setenta e dois sentidos, ainda temos tempo de sobra para nos aborrecermos.
      - Não duvido - disse Micrômegas -, pois no nosso globo temos cerca de mil sentidos, e resta-nos ainda não sei que vago desejo, não sei que inquietação, que incessantemente nos adverte do pouco que nós somos e de que existem seres muito mais perfeitos. Tenho viajado um pouco; vi mortais muito abaixo de nós; vi-os muito superiores; mas a nenhum vi que não tivesse mais desejos que verdadeiras necessidades, e mais necessidades que satisfação. Talvez chegue um dia ao país onde não falta nada; mas desse pais até agora ninguém me deu notícias.
      O saturniano e o siriano alongaram-se então em conjeturas; mas, depois de muitos raciocínios tão engenhosos quão incertos, foi preciso voltar aos fatos.
      - Quanto tempo vivem vocês? - indagou o siriano.
      - Ah! pouquíssimo - replicou o homenzinho de Saturno.
      - Exatamente como entre nós - disse o siriano; - vivemos sempre a queixar-nos do pouco. Deve ser uma lei universal da natureza.
       - Ai! - suspirou o saturniano. - Vivemos apenas quinhentas grandes revoluções do sol (o que, pela nossa maneira de contar, dá aproximadamente uns quinze mil anos). Bem vê que é quase o mesmo que morrer no momento em que se nasce; a nossa existência é um ponto, a nossa duração um instante, o nosso globo um átomo. Apenas começa a gente a instruir-se um pouco, quando chega a morte, antes que se tenha adquirido experiência. Quanto a mim, não ouso fazer projeto algum; sou como uma gota de água em um oceano imenso. Sinto-me envergonhado, principalmente diante do senhor, da figura ridícula que faço neste mundo.
      - Se o amigo não fosse filósofo - respondeu Micrômegas -, eu temeria afligi-lo dizendo-lhe que a nossa vida é setecentas vezes mais longa que a sua. Mas bem sabe que, quando nos cumpre devolver o corpo aos elementos e reanimar a natureza sob outra forma (que é o que se chama morrer), quando é chegado esse instante de metamorfose, ter vivido uma eternidade, ou um dia, é precisamente a mesma coisa. Estive em países onde se vivia mil vezes mais tempo do que no meu, e vi que ainda se queixavam. Mas há por toda parte gente de bom senso, que sabe tomar o seu partido e agradecer ao autor da natureza. Expandiu ele por este universo uma profusão infinita de variedades, com uma admirável espécie de uniformidade. Por exemplo, todos os seres pensantes são diferentes, e todos se assemelham no fundo, pelo dom do pensamento e dos desejos. A matéria está por toda parte, mas tem em cada globo propriedades diversas. Quantas dessas propriedades contam os senhores na sua matéria?
       - Se se refere - disse o saturniano - a essas propriedades sem as quais julgamos que este globo não poderia subsistir tal como é, contamos trezentas, como a extensão, a impenetrabilidade, a mobilidade, a gravitação, a divisibilidade, e o resto.
      - Aparentemente - replicou o viajante -, basta esse pequeno número para os objetivos do Criador quanto à vossa pequena habitação. Em tudo admiro a sua sabedoria; vejo por toda parte diferenças; mas também proporções por toda parte. Pequeno é o vosso globo, vossos habitantes também o são; tendes poucas sensações; vossa matéria tem poucas propriedades: tudo isto é obra da Providência. De que cor é verdadeiramente o vosso sol?
      - De um branco bastante amarelado - disse o saturniano. – E, quando dividimos um de seus raios, vemos que contém sete cores.
      - O nosso sol tende para o vermelho - disse o siriano -, e temos trinta e nove cores primitivas. Dentre os sóis de que me aproximei, não há dois que se assemelhem, como não há entre vós um rosto que não seja diferente de todos os outros.
      Após várias perguntas dessa natureza, indagou quantas substâncias essencialmente diferentes se contavam em Saturno. Soube que não havia mais que umas trinta, como Deus, o espaço, a matéria, os seres extensos que sentem e pensam, os seres pensantes que não têm extensão, os que se penetram, os que não se penetram, e o resto. O siriano, em cuja pátria se contavam trezentas, e que descobrira três mil outras em suas viagens, deixou o filósofo de Saturno prodigiosamente espantado. Afinal, depois de haverem comunicado um ao outro um pouco do que sabiam e muito do que não sabiam, depois de haverem trocado idéias durante uma revolução do sol, resolveram fazer juntos uma pequena viagem filosófica.

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