CANÇÃO
DO DIABO
Emiliano Perneta (1866-1921)
Aqui, um dia, neste quarto,
Estava eu a ruminar,
Mas como um ruminante farto,
O tédio amargo, o atroz pesar...
O vento fora pela noite,
Demônio que blasfema em vão,
Cortava rijo como o açoite,
Uivava triste como um cão.
Eu meditava quanto a vida
Me foi cruel, me foi cruel:
Supus que fosse uma bebida
Doce, mas foi veneno e fel!
E sobretudo, que ato breve
Dessa tragédia para rir...
Quando de leve, pois, de leve,
Senti a porta se entreabrir...
O quarto todo iluminou-se,
Mas de uma claridade tal,
Como se fosse dia, e fosse
Dia de festa nupcial.
E um vulto, bem como um segredo,
Mais belo do que uma mulher,
Sorriu-me assim: “Não tenhas medo,
Eu sou o arcanjo Lucifer.
“Trêmulo de um pavor covarde,
Fugiste-me sempre, porém
Sabia eu que, cedo ou tarde,
Serias meu, de mais ninguém.
“Que, ó meu querido e pobre artista,
Todo a fazer teu próprio mel,
Tu sempre foste um diabolista,
Um anjo mau, anjo revel.
“Ora, fugiu-te a primavera,
E os derradeiros sonhos teus:
O céu, a mais banal quimera,
Teu próprio Deus, teu próprio Deus.
“A sorte, mesmo, a prostituta,
Inda mais nua que Laís,
Funambulesco ser, escuta,
Quis todo o mundo; e a ti não quis.
“O seio abriu, que tanto exala,
Ao proxeneta, e ao ladrão;
A ti, porém, indo beijá-la,
A fêmea torpe riu-se: não!
“Teu coração, alma ansiada,
Teu coração, como um Romeu,
De tanto se bater por nada,
Não sei como inda não morreu.
“Teu coração, um catavento,
De cá pra lá sempre a bater,
Só encontrou o enervamento,
E a másc’ra do falso prazer.
..............................................
“Ninguém te amou, nem pôde amar-te,
Nem te entendeu, ser infeliz,
Mas eu, ó triste lírio d’arte,
Sempre te amei, sempre te quis.
“O teu furor pela beleza,
Indiferente ao bem e ao mal,
Desoladora guerra acesa,
E sobretudo ódio infernal;
“A tua esfaimação de oiro,
A sede de subir, subir,
Além daquele sorvedoiro
D’astros e pérolas d’Ofir;
“O orgulho teu, furioso grito,
Luxuriosamente cruel,
Crescendo para o infinito,
Como uma torre de Babel,
“Orgulho infindo, orgulho santo,
E diabólico, bem sei,
Que tanto horror tem feito, tanto,
Ah! eu somente o escutei.
“E disse: aquele é meu, aquelas
Mágoas cruéis são minhas, eu
Vou levantá-lo até as estrelas,
Até a luz, até o céu...
“Vou lhe mostrar reinos de opalas,
Tantas cidades ideais,
Que há de querer talvez contá-las,
Sem as poder contar jamais.
“Vou lhe mostrar torres tão grandes,
Torres de ouro e de marfim,
Cem vezes mais altas que os Andes,
Tantas, tantas, que não têm fim.
“E toda a glória minha, toda,
A ele, cuja imaginação
Inda é mais rica e inda é mais douda
Do que a do próprio Salomão.
“Vendo-o descer a encosta rude
Dos anos maus, o elixir
Eu lhe darei da juventude,
Que o faça rir, que o faça rir...
“Que é só bebê-lo, e embora exausto,
Embora quase morto já,
O triste e magro doutor Fausto
Reflorirá, reflorirá!
“E há de subir comigo, um dia,
Há de subir comigo, a pé,
Por essa longa escadaria,
Que sobem só os que têm fé.
“E eu, o flagelo, eu, o açoite,
Eu, o morcego, o diabo, cruz!
Estranho príncipe da noite,
Hei de inundá-lo só de luz!
“Hei de lhe dar uma tão rara
Virtude, que baste ele olhar,
Baste querer somente, para
Que o vento acalme a voz do mar.
“E hei de fazê-lo de tal modo,
De tal fluidez, que ele por fim,
O ser humano, o limo, o lodo,
Se torne bem igual a mim."
.............................................
Olhei. Brilhava-lhe na fronte
A estrela d’oiro da manhã
Como num límpido horizonte:
- Eu serei teu irmão, Satã!
(1907)
(“Panorama do Movimento Simbolista
Brasileiro”, Andrade Muricy,
MEC-INL, 2ª edição, Volume I, Brasília,
1973,
Coleção de Literatura Brasileira, 12,
páginas 302 a
305.)
Série "Diabolus In Versus".
Nenhum comentário:
Postar um comentário