sábado, 29 de agosto de 2015

Lúcifer - Severiano de Resende

LÚCIFER


Ille, inquam, Lucifer, qui nescit occasum

Canto Litúrgico do Sábado Santo


Severiano de Resende
(1871-1931)

Entoar-te-ei, ó vívido

Astro da manhã,
Sob um novo módulo
Um novo peã.

E à gandara onde íncola
Tu és triste e só
Mandarei num cântico
Alívio ao teu dó.

Na túrbida ténebra
Sem luz e sem paz,
O teu ser misérrimo
Silencioso jaz.

Na geena e no báratro
Do exílio exicial,
Labareda em cólera,
Avejão glacial,

Reinas, grandioso e hórrido,
Ó Monarca exul,
Vitalício antípoda
Do sereno azul.

Multifásio e onímodo
No ademã revel,
Sob os pés torcendo-se
De São Michael,

De São Jorge à fúlgida
Cimitarra ultriz
Curvando a vesânica
Tortuosa cerviz

Até quando, hierático
Infernal dragão,
As raças em pânico
Te amaldiçoarão?

De rastos, ofídico,
Ou acima dos sóis,
Povoas os séculos
De monstros e heróis.

Júpiter Olímpico,
Erecto no altar,
Seja excelso ou ínfero
O teu avatar,

Ou mefistofélico
Mistificador,
Fautor parabólico
Do Mal e da Dor,

Ou dionisíaco,
Gritando o Prazer
E às turbas dando o êxtase
Falaz de viver,

Fantasma sofístico,
Foto Baphomet,
Amuleto ou ídolo,
Deus do candomblé,

Impotente no ímpeto
Contra o santo de Ars,
Didata aos teus discípulos
Soprando a MAGNA ARS.

Que te oprima o anátema,
Te adore o faquir,
Ou te ame o filósofo
Ou o faças sorrir,

No abismo ou no páramo,
Arcanjo, eu bem sei,
Permaneces Príncipe,
Continuas Rei.

Rolaste do vértice
Extremo do céu,
Fugace relâmpago,
Instantâneo réu,

E no surdo e sôfrego
Turbilhão vital,
Invisível dínamo
Da pugna irreal,

Labareda em cólera,
Avejão glacial,

Tu rodas errático
No universo afã,
Desde o gesto fluídico
Da eternal Maçã,

Com que intento, ó Lúcifer,
Com que ideal Satã?

Té que na fronte em sonho enfim te refulja o São Graal,
Como apreender disperso e vário o teu ser integral,
Brisa, escarcéu, maré, torrente, onda ruidosa e errante,
Força perpetuamente palpitante e terebrante,
Confusa como o caos, convulsa como o inquieto mar,
Tendo perdido o sumo dom de se expandir e amar.
Tombaste, sim, precípite, raio torvo e fremente,
Pelos espaços espargindo a fagulha e a semente
Da árvore luminosa e viridente da Expiação
Cuja seiva vivaz de coração em coração
Circula em fogo, em flama, em fluido, em lava, em sangue e em pranto,

Fazendo-nos galés desse encanto, desse quebranto,
Dessa própria tortura tua intensa e desse teu
Próprio cruciar no ermo rochedo nu, ó Prometeu!
Só o Espírito de tudo renova, só o Verbo
Que tudo sana, lançarão no teu penar acerbo
O bálsamo que tu não pedes na tua mudez,
No teu sofrer de cada instante eterno, sem que dês
Um grito para o empíreo irradiante que ao longe encaras,
Sem que um gemido, um ai para as altas landas preclaras
Soltes, sem que para o Paáclito nem para a Cruz
Lances o teu arfante anseio de amor e de luz,
O teu sublime anélito taciturno e latente
Pelo teu sólio augusto junto ao trono onipotente.

Certo imane o teu crime foi e embalde a mente humana
Séculos tenta em fora escrutá-lo! Embalde em soluços,
O homem sofre ante o roaz mistério que de ti promana
E decrépito sobre a Bíblia se arqueia, de bruços.

Debalde o Mago sobre os pergaminhos envelhece
E os incunábulos revolve e as vetustas cabalas,
Embalde, nas regiões em que vaga e rasteja a prece,
Te implora o teurgo em transe o arcano essencial que tu calas.

Embalde à flâmea trípode a atra sibila se erige
E o tábido dervis no antro se lamenta e contorce,
Na ara embalde se imole o touro, o infante, o ariete, a estrige
Nin há que a romper o infindo silêncio te force.

Fez-te o poeta de Albião teatral estrátego facundo,
Deram-te outros uma cambiante e horrenda carantonha,
E o Dante, que baixou ao tanque gélido e profundo,
Bem viu o horror da tua imota agonia medonha.

Mas quem descendar pôde no ruir das mitologias
E pela história que de cruenta púrpura se tinge
O opróbrio imemorial em que tenaz te refugias,
Selando-nos ferrenhamente o teu problema, ó Esfinge?

Quem, um dia, espoliando engrimanços, pentaclos, ritos
E arrostando no umbral da sombra a blasfêmia e a loucura,
Clarividente penetrou os vastos infinitos
Em que teu pecado infando a memória perdura?

Quem, no atanor candente ou no constelante astrolábio,
Vislumbrou lúcido a inenarrável culpa primeva
E que Helena diria ao Doutor Fausto, ao velho sábio,
O edênico sigilo que floriu nos lábios de Eva?
QUOMODO CECIDISTI, LUCIFER? Diante do enigma,
Na boca do profeta ansiosa extingue-se a palavra,
E és da soberba e da revolta o eternal paradigma
E ao teu nuto o erro assoma, o sangue corre, o incêndio lavra.
Certo, imane o teu crime foi e na hora formidanda
Do grande fogo rubro e da tonitruante trombeta,
A fim que à luz incriada o teu espírito se expanda,
Tu surgirás, gigante e nu, à face do planeta.

Diante dos Eloims em lágrimas, pasmos e atentos,
Diante das Doze Tribos e diante dos Nove Coros,
Diante dos Sete Espíritos, diante dos Quatro Ventos,
Diante dos turbilhões de Almas e dos Sóis sonoros,

Diante da unitrina Essência que no éter irradia,
Diante do Tetragramaton vital que o caos penetra,
Diante do Verbo feito Carne e da Virgem Maria,
Diante do Amor que do alto entorna a torrencial faretra,

Dizer virás o poema atroz do teu crime insensato
E o impossível ideal que realizar em vão quiseste
E teu espectro horrífico opresso em plúmbeo reato,
Súbito se envolverá no vasto esbrasear celeste.

As rondas candentes das Esferas súperas
Serafins em brasa, Querubins claríficos,
Ver-te-ão!

As rodas iriais dos Tronos que, translúcidos,
No cosmos montem peso, medida e número,
Ver-te-ão!

As Dominações e Senhorias célicas,
Evoluindo puras sem recontros díspares,
Ver-te-ão!

As Virtudes presas no imortal revérbero,
Multifárias normas do esplendor prismático,
Ver-te-ão!

Fecundando as Causas e as Razões, as prônubas
Potestades tensas na expansão do Arquétipo,
Ver-te-ão!

Lohengrins do além, os Principados vígiles,
Das raças e terras capitães e egrégoros,
Ver-te-ão!

Os Arcanjos e Anjos, desfraldando as flâmulas,
Desdobrando as asas, sopesando as frâmeas,
Ver-te-ão!

Os cortejos densos que tafulham séculos
No vibrante apelo das promessas prístinas,
Ver-te-ão!

Os Patriarcas, desde as diluviais catástrofes,
Dos antigos Pactos testemunhas mêmores,
Ver-te-ão!

Os Anciãos e Juízes, do Sinai ao Líbano,
Que através da Lei foram fiéis aos Símbolos,
Ver-te-ão!

Os Nabis austeros, de almas tão diáfanas,
Que por elas veio a irruente voz do Espírito,
Ver-te-ão!

Solomão e os Reis, entrecambiando rútilas
Com Gaspar, Melchior e Baltasar auréolas,
Ver-te-ão!

Ostentando o alvor das resplendentes túnicas,
Nos seus tronos de ouro, os Papas e os Apóstolos
Ver-te-ão!

Virgens, Confessores e as legiões de Mártires
E a preclara turba dos Doutores fúlgidos
Ver-te-ão!

E os enxames bastos e o revoar intérmino
De Santos e Santas em joviais miríades,
Ver-te-ão!

E ouvirás em redor como o clamor das grandes águas,
Clamor que abafa e que destrói as grandes mágoas,
Clamor que é o Sangue mesmo de Cristo,
E sobre o Lenho em que morreu Jesus para perdoar
Lerás, o joelho em terra e o olhar em pranto, este imprevisto
Ígneo letreiro dentro da luz enorme a irradiar:

SUPEREXALTAT  AUTEM  JUDICIUM  MISERICORDIA

Enquanto na amplidão reboa a cítara heptacórdia.

(“Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, Andrade Muricy,
MEC-INL, 2ª edição, Volume I, Brasília, 1973,
Coleção de Literatura Brasileira, 12, páginas 479-484.)


Série "Diabolu In Versus".

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