sábado, 8 de agosto de 2015

Micrômegas - IV - Voltaire

IV
Do que lhes sucede sobre a face da terra

      Depois de terem repousado um pouco, almoçaram duas montanhas, que os criados lhes prepararam a capricho. Desejaram em seguida fazer um reconhecimento pelo pequeno país onde se achavam. Caminharam a princípio de norte a sul. Os passos ordinários do siriano e do seu pessoal eram de trinta mil pés aproximadamente; o anão de Saturno seguia de longe, arquejando; ora, era preciso que ele corresse uns doze passos enquanto o outro dava uma pernada: imaginai (se é permitido tal comparação) um pequeno cãozinho fraldiqueiro que acompanhasse um capitão da guarda do rei da Prússia.
      Como os dois estrangeiros andassem muito depressa, deram a volta ao mundo em trinta e seis horas; o Sol, na verdade, ou antes, a Terra, faz igual viagem num dia; mas cumpre levar em conta que é mais cômodo girar sobre o próprio eixo do que andar com um pé depois do outro. Ei-los pois de volta ao ponto de partida, depois de terem visto esse pântano, quase imperceptível para eles, que se chama o Mediterrâneo, e esse outro pequeno charco que, sob o nome de Grande Oceano, contorna o formigueiro. A água nunca passara além das canelas do anão, ao passo que o outro apenas molhara os calcanhares. Fizeram tudo o que puderam, andando em todas as direções, para descobrir se este globo era habitado ou não. Agacharam-se, deitaram-se, apalparam por toda parte; mas, como os seus olhos e mãos não eram proporcionados aos pequenos seres que por aqui se arrastam, não receberam a mínima sensação que lhes fizesse suspeitar que nós, e os nossos demais confrades habitantes deste globo, tivéssemos a honra de existir.
      O anão, que as vezes raciocinava muito apressadamente, concluiu a princípio que não havia habitantes na terra. Seu primeiro argumento era de que não vira ninguém. Micrômegas, polidamente, fez-lhe sentir que ele não raciocinava muito bem:
      - Como não distingues, com os teus pequenos olhos, certas estrelas de quinquagésima grandeza que eu percebo distintamente, concluis daí que essas estrelas não existem?
      - Mas - replicou o anão - eu apalpei bem.
      - Mas sentiste mal - respondeu o outro.
      - Mas este globo é tão mal construído - objetou o anão -, é tudo tão irregular e de uma forma que me parece tão ridícula! Tudo parece aqui um pleno caos: não vês estes pequenos arroios que jamais correm em linha reta, esses charcos que não são nem redondos, nem quadrados, nem ovais, nem de nenhuma forma regular; e todos esses grãozinhos pontiagudos de que está eriçado este globo e que me arranharam os pés? (Queria referir-se às montanhas). Repara ainda na forma de todo o globo, como é achatado nos pólos, e a sua maneira inadequada de girar em torno do sol, de modo que a região dos pólos fica necessariamente estéril? Em verdade, o que me faz pensar que não haja aqui ninguém, é que gente de bom senso não moraria em um lugar como este.
      - Pois bem - disse Micrômegas -, talvez os que o habitam não sejam gente de bom senso. Mas há probabilidades de que isto não tenha sido feito inutilmente. Tudo aqui te parece irregular porque em Saturno e Júpiter é tudo feito a régua e compasso. Exatamente por esse motivo é que há aqui um pouco de confusão. Não te disse eu que nas minhas viagens sempre encontrei variedade?
      O saturniano replicou a todas essas razões. E a questão jamais terminaria se, por felicidade, Micrômegas, no calor da discussão, não tivesse rompido o seu colar de diamantes. Estes caíram ao chão. Eram lindas pedras de tamanho variado, tendo as mais volumosas quatrocentas libras de peso, e as menores cinquenta. O anão apanhou algumas; ao aproximá-las dos olhos, viu que, da maneira como estavam lapidadas, constituíam excelentes microscópios. Tomou, pois, um pequeno microscópio de cento e sessenta pés de diâmetro, que aplicou à pupila; e Micrômegas escolheu um de dois mil e quinhentos pés. Eram excelentes; mas, no princípio, nada perceberam com o seu auxílio: era preciso adaptarem-se. Afinal, o habitante de Saturno viu qualquer coisa quase imperceptível que se movia à superfície do mar Báltico: era uma baleia. Pegou-a habilmente com o dedo mínimo e, colocando-a sobre a unha do polegar, mostrou-a a Micrômegas, que se pôs a rir da excessiva pequenez dos habitantes do nosso globo. O saturniano, convencido de que o nosso mundo é habitado, imaginou logo que só o era por baleias; e, como era um grande logicista, quis logo adivinhar de onde um átomo tão pequeno tirava seu movimento, e se tinha idéias, vontade e liberdade. Micrômegas sentiu-se muito embaraçado: examinou o animal com infinita paciência, e o resultado da análise foi que era impossível acreditar que ali se alojasse uma alma. Estavam, pois, os dois viajantes inclinados a pensar que não há espírito em nosso mundo, quando, com o auxílio do microscópio, perceberam algo de mais grosso que uma baleia e que flutuava sobre as águas. Sabe-se que, por aquela época, um bando de filósofos regressava do círculo polar, onde tinham ido fazer observações que a ninguém haviam ocorrido até então. Disseram as gazetas que o seu navio naufragou nas costas de Bótnia e que tiveram grande dificuldade em salvar-se; mas neste mundo nunca se sabe o reverso das cartas. Vou contar ingenuamente como se passaram as coisas, sem nada acrescentar por conta própria, o que não é pequeno esforço para um historiador.

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