sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Micrômegas - III - Voltaire

III
Viagem dos dois habitantes de Sírio e de Saturno

      Estavam os nossos dois filósofos prestes a embarcar na atmosfera de Saturno, com uma bela provisão de instrumentos matemáticos, quando a amante do saturniano, ao saber disso, veio queixar-se em pranto. Era uma linda moreninha que tinha apenas seiscentas toesas, mas que compensava com vários encantos a pequenez de seu talhe.
      - Ah, cruel! - clamava ela. - Depois de te haver resistido durante mil e quinhentos anos, quando enfim começava a render-me, quando apenas passei cem anos em teus braços, tu me deixas para ir viajar com um gigante de um outro mundo! Vai, não passas de um curioso, nunca tiveste amor; se fosses um verdadeiro saturniano, serias fiel. Por onde vais correr? Que queres? As nossas cinco luas são menos errantes que tu, o nosso anel é menos mutável. Pronto! Nunca mais amarei a ninguém.
      O filósofo, por mais que o fosse, beijou-a, chorou com ela, e a dama, depois de haver desmaiado, foi consolar-se com um peralvilho do país.
      Os nossos dois curiosos partiram; saltaram primeiro sobre o anel, que acharam bastante chato, como bem o adivinhou um ilustre habitante do nosso pequeno globo; seguiram, depois, de lua em lua. Como um cometa viesse a passar muito próximo da última, lançaram-se sobre ele, com todos os seus criados e instrumentos. Depois de terem coberto cerca de cento e cinquenta milhões de léguas, toparam com os satélites de Júpiter. Nesse planeta demoraram-se um ano inteiro, durante o qual descobriram belos segredos, que estariam agora em vias de publicação se não fossem os senhores inquisidores, que acharam algumas proposições um pouco fortes. Mas li o manuscrito na biblioteca do ilustre arcebispo de ***, que me deixou examinar seus livros, com uma generosidade e benevolência nunca assaz louvada.
      Mas voltemos aos nossos viajantes. Deixando Júpiter, atravessaram um espaço de cerca de cem milhões de léguas, e passaram pelo planeta Marte, que, como se sabe, é cinco vezes menor que o nosso pequeno globo; viram as duas luas que servem a esse planeta e que escaparam às vistas de nossos astrônomos. Bem sei que o Padre Castel escreverá, e até com muito espírito, contra a existência dessas duas luas; mas reporto-me àqueles que raciocinam por analogia. Sabem esses bons filósofos o quanto seria difícil ao planeta Marte, que fica tão longe do sol, não dispor ao menos de um par de luas. Seja como for, o caso é que os nossos camaradas o acharam tão pequeno, que recearam não encontrar pousada, e seguiram adiante, como dois viajantes que desdenham um mau albergue de aldeia e prosseguem até a cidade vizinha. Mas o siriano e o companheiro logo se arrependeram disso. Viajaram por muito tempo, sem encontrar coisa alguma. Afinal divisaram um pequeno clarão; era a Terra; coisa de causar piedade à gente que vinha de Júpiter. No entanto, com medo de se arrependerem pela segunda vez, resolveram desembarcar aqui mesmo. Passaram para a cauda do cometa e, achando uma aurora boreal adrede, nela se meteram, e chegaram à Terra pelo norte do mar Báltico, a 5 de julho de 1737.

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