Micrômegas
– História filosófica
Voltaire
Voltaire, em Londres, lera com prazer
infinito as Aventuras de Gulliver, de
Swift. Micrômegas pode ser atribuído
à influência dessa fonte. Gulliver é substituído pelo habitante de Sírio. Também
já se falou da possível ligação entre Micrômegas
e a fantasia de Cyrano de Bergerac, Viagem
aos Estados da Lua. Não me parece, entretanto, que Cyrano tenha fornecido
alguma coisa a Voltaire.
Fontenelle, a quem de resto se alude no
romance, pusera em voga a astronomia com suas Palestras sobre a Pluralidade dos Mundos. Voltaire estudara a
mecânica de Newton. Foi do casamento dessas duas correntes, a de Swift e a do
interesse dos mundanos pela astronomia, que nasceu essa Bouffonnerie d’Arlequin, (Bufonaria de Arlequim), na expressão do
próprio autor.
(...)
S.M.
I
Viagem de um habitante da estrela Sírio
ao planeta Saturno
Num desses planetas que giram em torno da
estrela chamada Sírio, havia um jovem de muito espírito a quem tive a honra de
conhecer durante a última viagem que fez a este nosso pequeno formigueiro: chamava-se
Micrômegas, nome bastante adequado a todos os grandes. Tinha oito léguas de
altura: entendo, por oito léguas, vinte e quatro mil passos geométricos de
cinco pés cada um.
Alguns algebristas, gente sempre útil ao
público, tomarão logo da pena e, tendo em vista que o senhor Micrômegas,
habitante do país de Sírio, tem da cabeça aos pés vinte e quatro mil passos, ou
seja, vinte mil pés, e que nós outros, cidadãos da terra, não medimos mais que
cinco pés de altura e o nosso globo nove mil léguas de circunferência, esses
algebristas, dizia eu, calcularão que é preciso, absolutamente, que o globo que
o produziu seja exatamente vinte e um milhões e seiscentas mil vezes maior que
a nossa minúscula terra. Nada mais simples nem mais comum na natureza. Os
Estados de alguns soberanos da Alemanha ou da Itália, cuja volta se pode fazer
em meia hora, comparados ao império da Turquia, de Moscóvia ou da China, não
são mais que uma débil imagem das prodigiosas diferenças que a natureza colocou
em todos os seres.
Sendo Sua Excelência da altura que eu
disse, todos os nossos escultores e pintores convirão sem dificuldade em que a
sua cintura pode medir cinquenta mil pés, o que constitui uma bela proporção.
Quanto a seu espírito, é um dos mais
cultivados que existem; sabe muitas coisas e inventou algumas outras: não tinha
ainda duzentos e cinquenta anos e estudava, segundo o costume, no colégio dos
jesuítas de seu planeta, quando adivinhou, só pela força de seu espírito, mais
de cinquenta proposições de Euclides - isto é, dezoito mais que Blaise Pascal,
o qual, depois de ter adivinhado trinta e duas, por brincadeira, pelo que dizia
sua irmã, tornou-se mais tarde um geômetra bastante medíocre e um péssimo metafísico.
Lá pelos seus quatrocentos e cinquenta anos, ao sair da infância, dissecou
muitos desses pequenos insetos que têm apenas cem pés de diâmetro e que se
furtam aos microscópios ordinários; compôs sobre a matéria um livro bastante
curioso, mas que lhe valeu algumas contrariedades. O mufti de seu país, sujeito
esmiuçador e ignorantíssimo, achou no seu livro proposições suspeitas,
malsoantes, temerárias, heréticas, que cheiravam a heresia, e o perseguiu sem
tréguas: tratava-se de saber se a forma substancial das pulgas de Sírio era a
mesma que a dos caracóis. Micrômegas defendeu-se com espírito; pôs as mulheres
a seu favor; o processo durou duzentos e vinte anos. Afinal o mufti fez com que
o livro fosse condenado por jurisconsultos que não o haviam lido, e o autor
teve ordem de não aparecer na Corte durante oitocentos anos.
Pouco se afligiu ele de ser banido de uma
Corte onde só havia intrigas e mesquinharias. Compôs uma canção muito divertida
contra o mufti, a que este não deu importância; e pôs-se a viajar de planeta em
planeta, para acabar de formar o espírito
e o coração, como se diz. Os que só viajam de cadeira de posta e berlinda
ficarão decerto espantados com as equipagens de lá; pois nós, em nossa pequena
bola de lama, nada concebemos além de nossos usos. O nosso viajante conhecia às
maravilhas as leis da gravitação e todas as forças atrativas e repulsivas.
Utilizava-as tão a propósito que, ou por intermédio de um raio de sol, ou
graças à comodidade de um cometa, ia de globo em globo, ele e os seus, como um
pássaro voeja de ramo em ramo. Em pouco percorreu a Via Láctea; e sou obrigado
a confessar que nunca viu, em meio às estrelas de que é semeada, esse belo céu
empíreo que o ilustre Vigário Derham se gaba de ter enxergado na ponta de sua
luneta. Não que eu pretenda alegar que o Senhor Derham tenha visto mal, Deus me
livre! mas Micrômegas esteve no local, é um bom observador, e eu não quero
contradizer ninguém. Micrômegas, depois de muitas voltas, chegou ao globo de
Saturno. Por mais acostumado que estivesse a ver coisas novas, não pôde, ante a
pequenez do globo e de seus habitantes, evitar esse sorriso de superioridade
que às vezes escapa aos mais sábios. Pois afinal Saturno não é mais que
novecentas vezes maior que a Terra, e os seus cidadãos não passam de anões que
têm apenas umas mil toesas de altura. A princípio, zombou ele um pouco com a
sua gente, mais ou menos como um músico italiano se põe a rir da música de
Lulli, quando chega em França. Mas o siriano, que tinha o espírito justo, compreendeu
que uma criatura pensante poderia muito bem não ser ridícula só por ter seis
mil pés de altura. Familiarizou-se com os saturnianos, depois de os haver
espantado. Ligou-se de estreita amizade com o secretário da Academia de
Saturno, homem de muito espírito, que na verdade nada inventara, mas prestava
excelente conta das invenções dos outros, e fazia passavelmente pequenos versos
e grandes cálculos. Transcreverei aqui, para satisfação dos leitores, uma
singular conversação que Micrômegas teve um dia com o senhor secretário.
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