segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Micrômegas - VI - Voltaire

VI
Do que lhes aconteceu com os homens

      Micrômegas, melhor observador que o anão, viu claramente que os átomos se falavam; e fê-lo notar ao companheiro, que, envergonhado do seu engano quanto à geração, não quis acreditar que tal espécie pudesse trocar idéias. Tinha o dom das línguas, como o siriano; não ouvia os nossos átomos falarem, e supunha que não falavam. Aliás, como poderiam aquelas criaturas imperceptíveis possuir os órgãos da voz, e que teriam a dizer-se? Para falar, é preciso pensar, ou quase; mas, se pensavam, tinham então o equivalente de uma alma. Ora, atribuir um equivalente de alma a uma espécie daquelas parecia-lhe absurdo.
      - Mas - observou Micrômegas - ainda há pouco supunhas que eles praticavam o amor. Será que julgas que se possa praticar o amor sem pensar e sem proferir alguma palavra, ou pelo menos sem se fazer compreender? Achas, aliás, que seja mais difícil fazer um raciocínio que fazer um filho? Quanto a mim, um e outro me parecem grandes mistérios.
      - Já não ouso nem crer nem negar - disse o homúnculo -, não tenho mais opinião. Tratemos primeiro de examinar esses insetos, arrazoaremos depois.
      - Muito bem dito - retrucou Micrômegas. Em seguida tirou do bolso uma tesourinha, com que cortou as unhas, e, com uma lasca da unha do polegar, fabricou uma espécie de trompa acústica, que era como um vasto funil cujo bico aplicou no ouvido. A boca do funil envolvia o navio e a toda a equipagem. A voz mais fraca penetrava nas fibras circulares da unha, de modo que, graças à sua indústria, pôde o filósofo lá do alto ouvir perfeitamente o zumbido dos insetos cá de baixo. Em poucas horas, conseguiu distinguir as palavras, e afinal compreender o francês. O anão fez o mesmo, embora com mais dificuldade. O pasmo dos viajantes redobrava a cada momento. Ouviam insetos falarem com muito bom senso: esse capricho da natureza afigurava-se-lhes inexplicável. Bem podeis imaginar como Micrômegas e o seu anão ardiam de impaciência por travar conversa com os átomos. Temiam que a sua voz de trovão, e sobretudo a de Micrômegas, ensurdecesse os insetos, sem ser ouvida. Cumpria diminuir-lhe a força. Puseram na boca umas espécies de palitos cujas pontas afiladas vinham dar perto do navio. O siriano tinha o anão sobre os joelhos, e o navio com a equipagem sobre uma unha. Inclinava a cabeça e falava baixinho. Afinal, por meio destas e de outras precauções, começou assim o seu discurso:
      - Insetos invisíveis, que a mão do Criador se comprouve em fazer brotar no abismo do infinitamente pequeno, agradeço a Deus por se haver dignado desvendar-me os segredos que pareciam impenetráveis. Na minha corte, talvez não se dignem olhar-vos; mas eu não desprezo ninguém, e ofereço-vos a minha proteção.
      Se alguém chegou ao cúmulo do espanto, foram sem dúvida as pessoas que ouviram tais palavras. Não podiam adivinhar de onde partiam. O capelão de bordo rezou exorcismos, os marinheiros praguejaram, e os filósofos do navio elaboraram um sistema; mas, por mais sistemas que fizessem, não atinavam com quem lhes falava. O anão de Saturno, que tinha a voz mais suave que a de Micrômegas, informou-lhes então com quem estavam tratando. Contou-lhes a partida de Saturno, disse-lhes quem era o Senhor Micrômegas, e, depois de os ter lamentado por serem tão pequenos, perguntou-lhes se sempre haviam estado naquela miserável condição tão vizinha do aniquilamento, o que faziam num globo que parecia pertencer às baleias, se eram felizes, se se multiplicavam, se tinham uma alma, e mil outras questões dessa natureza.
      Um sábio do grupo, mais audaz que os outros e chocado de que duvidassem da sua alma, observou o interlocutor por intermédio de pínulas assestadas sobre um esquadro, fez duas miras e, na terceira, assim lhe falou:
      - Julga então, senhor, só porque tem mil toesas da cabeça aos pés, que é um...
      - Mil toesas! - exclamou o anão. - Meu Deus! Como pode ele saber a minha altura? Mil toesas! Não se engana por uma polegada. Como! Esse átomo mediu-me! É geômetra, conhece as minhas dimensões; e eu, que o vejo através de um microscópio, ainda não conheço as suas.
      - Sim, medi-o - disse o físico -, e medirei também o seu grande companheiro.
      Aceita a proposta, deitou-se Sua Excelência ao comprido; pois, se se pusesse de pé, ficaria com a cabeça muito acima das nuvens. Os nossos filósofos plantaram-lhe uma grande árvore num lugar que o doutor Swift nomearia, mas me guardo de chamar pelo nome, devido a meu grande respeito ás damas. Depois, por uma sequência de triângulos, concluíram que aquilo que eles viam era com efeito um jovem de cento e vinte mil pés de altura.
      Micrômegas pronunciou então estas palavras:
      - Reconheço, mais do que nunca, que nada devemos julgar por sua grandeza aparente. Ó Deus, que destes uma inteligência a substâncias que parecem tão desprezíveis, o infinitamente pequeno vos custa tão pouco como o infinitamente grande; e, se é possível que haja seres ainda mais pequenos do que estes, podem ainda ter um espírito superior ao daqueles soberbos animais que vi no céu e cujo pé bastaria para cobrir o globo a que desci.
      Respondeu-lhe um dos filósofos que ele poderia com toda a segurança acreditar que há de fato seres inteligentes muito menores que o homem. Contou-lhe não tudo o que Virgílio diz de fabuloso sobre as abelhas, mas o que Swammerdam descobriu, e o que Réaumur dissecou. Disse-lhe, enfim, que há animais que estão para as abelhas como as abelhas estão para os homens, e como Micrômegas estava para aqueles imensos animais a que se referira, e como aqueles estão para outras substâncias, diante das quais não passam de átomos. Pouco a pouco a conversa se tornava interessante, e Micrômegas assim falou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário