Sétima
Novela da Oitava Jornada do “Decamerão” de Giovanni Boccaccio
Rinieri
e Helena: Pagando Gelo com Fogo
Uma
vingança extraordinária!...
- Caríssimas mulheres, frequentemente
sucede que a arte é escarnecida pela própria arte; assim sendo, é prova de
pouco siso alguém estar deleitando-se com o escarnecer os outros. Graças às
diversas estoriazinhas contadas até agora, rimos muito das burlas praticadas;
contudo, não se falou de nenhuma de que se tivesse feito vingança. Contudo, eu
pretendo fazer com que vocês tenham alguma piedade de uma justa retribuição
dada a uma nossa cidadã; esta cometeu uma falsidade; porém a falsidade
recaiu-lhe sobre a cabeça, e quase lhe trouxe a morte. Não será sem utilidade
para vocês o escutar esta novela, pois, em seguida, vocês evitarão pregar peças
aos outros; e assim procedendo demonstrarão muito siso.
Não decorreram ainda muitos anos, desde o
tempo em que, em Florença, houve uma jovem, linda de corpo, de espírito
orgulhoso e linhagem nobre. Possuía suficiente abundância de bens de fortuna.
Tinha o nome de Helena. Com a morte de seu marido, tornou-se viúva e nunca mais
desejou contrair novo casamento, pois estava apaixonada por um rapazinho, muito
lindo e elegante, que ela escolhera. Livre de todas as demais preocupações,
ela, com a ajuda de sua criada, na qual tinha inteira confiança, passava,
com frequência, excelentes momentos de encantador deleite, junto com ele.
Sucedeu que, naquela época, um rapaz
chamado Rinieri retornou de Paris a Florença. O rapaz era um nobre de nossa
cidade, que fizera um longo período de estudos em Paris; não o realizara,
contudo, para depois vender a varejo a sua sabedoria, como é costume de muitos,
e sim para conhecer a razão final das coisas, e ainda para lhes conhecer o
motivo - coisa que, aliás, calha bem a todo gentil-homem. Ao seu regresso,
viu-se ele muito homenageado em Florença, fosse por causa de sua nobreza, fosse
por causa de sua sabedoria; por isso, passou a viver na cidade.
Entretanto, como acontece com frequência,
isto é, como é normal que os homens que mais conhecimentos têm de coisas profundas
sejam aqueles que com mais facilidade se tornam maltratados pelo amor, Rinieri
não escapou à regra. Certo dia, para divertir-se um pouco, este moço foi a uma
festa; nela, surgiu-lhe aos olhos a tal Helena, inteiramente vestida de preto,
como é hábito as viúvas se vestirem; portanto, ele viu-a cheia de beleza, no
seu entender; além disso, achou-a tão dotada de características de
agradabilidade, a ponto de, nisso, superar outra mulher qualquer que tivesse,
até aquela época, contemplado; a si mesmo, julgou o rapaz que bem poderia
considerar-se abençoado o homem ao qual Deus desse a graça de poder tê-la,
inteiramente sua, nos braços. Rinieri fitou-a, de maneira discreta, muitas
vezes; contudo, sabendo que as grandes coisas não podem ser alcançadas sem esforço,
resolveu, com os seus botões, por tudo — esforço e solicitude — na tarefa de
cair na simpatia daquela mulher; pretendia, deste modo, conquistar-lhe o amor;
e, em consequência, desfrutar com ela as delícias da afeição.
Jovem e viúva, a mulher não estava com os
olhos postos no inferno, quer dizer, não ficava olhando para o chão; cônscia do
seu valor, e achando-se ainda mais preciosa do que era, movia os olhos, com
habilidade e discrição; ao movê-los, olhava ao seu redor; e descobria, sem
nenhum esforço, aqueles que a fitavam, encantados; assim, ela notou a presença
de Rinieri; e, rindo-se, pensou:
- Não teria sido em vão que vim para cá;
ao que parece, já apanhei um boboca pelo nariz.
Pôs-se, então, a olhar para ele, uma vez
ou outra, com o canto dos olhos; sempre que podia, ela empenhava-se em
demonstrar que se interessava por ele. De outra parte, a mulher pensava que,
quanto maior o número de homens que fisgasse e prendesse, com a ilusória
promessa de seu prazer, tanto maior seria o prestígio de sua beleza, sobretudo
aos olhos daquele ao qual ela, junto com o seu amor, dera toda aquela beleza.
O ilustrado estudante pôs de parte todos
os pensamentos filosóficos; e concentrou sua alma inteira na tal viúva;
considerou que a sua própria pessoa devia ser agradável a ela; soube onde se
levantava a casa em que ela residia; começou a passar em frente à sua porta,
procurando sempre uma razão plausível para suas idas e vindas. A viúva, pela
razão já exposta de sua própria vaidade, demonstrava vê-lo com muito agrado.
Por isso, o rapaz, logo que teve uma oportunidade, acercou-se da criada da
mulher, à qual revelou todo o amor que nutria pela viúva. Solicitou à criada
que procedesse de modo que ele acabasse sendo o alvo das graças dela. A criada
prometeu que trabalharia em seu favor; narrou tudo à patroa; esta escutou suas
revelações, rindo a bom rir; em seguida, disse:
- Viu você em que lugar este homem veio
perder a cabeça que nos trouxe tão ilustrada de Paris? Pois bem! Vamos dar-lhe
o que está buscando. Assim que voltar a procurá-la, você lhe dirá que eu lhe
tenho amor ainda maior do que ele a mim; que, entretanto, é muito importante
que eu mantenha a minha honestidade, a fim de que sempre possa estar entre as
demais mulheres com a cabeça erguida; se ele é tão ilustrado como se afirma,
muito maior estima me terá nestas circunstâncias.
Oh, mulherzinha má, mulherzinha má! Ela
nem mesmo supunha, minhas queridas mulheres, o que é a gente meter-se com
pessoas ilustradas. Foi a criada encontrar-se com o rapaz, e fez o que a patroa
ordenou que fizesse. Rinieri, então, passou a fazer-lhe súplicas mais
calorosas; pôs-se a escrever cartas e a enviar presentes; todas as coisas
enviadas eram recebidas; mas de lá apenas lhe vinham respostas genéricas;
assim, manteve-o a viúva muito tempo de quarentena. Finalmente, ela acabou
contando tudo ao apaixonado amante que tinha; muitas vezes este apaixonado
ficou aborrecido com os atos que ela cometia quanto a Rinieri; algumas vezes,
até manifestara ciúmes; e ela, para provar-lhe que ele chegara a suspeitar da
lealdade dela, porém que o fizera sem nenhuma razão, decidiu tomar uma atitude:
visto que Rinieri a solicitava cada vez mais ardentemente, ela ordenou que sua
criada fosse procurá-lo. A criada atendeu. E disse ao rapaz que sua patroa não
tivera, ainda, tempo de fazer algo que fosse do agrado dele; que, entretanto, a
patroa já se convencera da sinceridade do seu amor; e que, lá pelas festas
natalinas, que estavam perto, tinha ela a esperança de poder estar com ele. A criada
acrescentou que, se ele quisesse, podia ir ao pátio da casa da viúva, onde ela,
logo que pudesse, iria encontrar-se com ele.
O rapaz, muito mais alegre do que
qualquer outro homem deste mundo, foi à casa da mulher, à hora que lhe fora
determinada. A criada conduziu-o, ali, a um pátio interno, onde, fechado, sem
nenhuma saída, pôs-se à espera da mulher amada.
Convidara a viúva, para aquela noite, em
sua casa, o seu verdadeiro amante; e, tendo ceado com ele, toda cheia de
alegria, narrou-lhe tudo quanto planejara fazer, naquela mesma noite, com
respeito a Rinieri, que estava no pátio; e ajuntou:
- E deste modo você poderá comprovar que
espécie de amor alimento por aquele em relação ao qual tanto ciúme você parece
sentir.
Cheio de prazer, o amante ouviu estas
palavras, e mostrou-se ansioso por constatar, com fatos, o que a mulher, com
palavras, lhe dera a compreender. Por acaso, no dia anterior, forte nevasca
caíra; tudo estava coberto de neve; por isso, depois de curta permanência
naquele pátio, Rinieri começou a sentir muito mais frio do que desejara;
entretanto, com a esperança de poder restaurar-se muito brevemente, continuou
esperando com toda a paciência. Depois de certo tempo, a mulher declarou ao
amante:
- Vamos para o meu quarto; e de lá, por
uma janela, veremos o que aquele rapaz, pelo qual você se fez tão ciumento,
está fazendo; deste modo, saberemos igualmente o que ele responderá à criada,
que eu ordenei fosse ter com ele.
Dirigiram-se ambos, portanto, a uma
pequena janela, de onde, sem que o vissem, ouviram a doméstica, que estava em
outra janela, conversar com o moço ilustrado, dizendo-lhe:
- Rinieri, minha patroa, neste instante,
é a mais entristecida das mulheres que existem neste mundo; imagine que, esta
noite, veio a esta casa um de seus irmãos, que se manteve em longa palestra com
ela; em seguida, quis ficar, para jantar em sua companhia; até este instante,
não foi embora ainda; creio, contudo, que ele se retirará dentro de pouco
tempo; por esta razão é que a minha senhora não pôde ainda ir ter com o senhor;
contudo, logo ela descerá ao pátio; pede-lhe que, enquanto isto, não fique
aborrecido por esperá-la.
Rinieri, pensando que se tratava de uma
comunicação verdadeira, retrucou:
- Por favor, diga à sua senhora que não
se preocupe de maneira alguma comigo, até que possa, com toda a comodidade, vir
ter comigo; porém, que ela venha ter comigo o mais cedo que puder.
A criada retirou-se da janela para dentro
da casa, e foi dormir.
Disse, então, a mulher ao seu amante:
- E agora, que me diz? Pensa que, se eu
quisesse, àquele infeliz, o bem que você teme que eu queira, iria permitir que ele continuasse lá embaixo, morrendo de frio?
Dizendo isto, dirigiu-se para o leito com
o amante, que já se dava, em boa parte, por satisfeito; ficaram ali durante
muito tempo, entre carinhos e prazeres, rindo e zombando do pobre Rinieri. O
rapaz, andando de uma banda para a outra, no pátio, exercitava-se para
aquecer-se; além de tudo, nem sequer tinha onde sentar, nem onde se abrigar da
neve que caía; assim maldizia a demora, tão prolongada, do irmão de sua amada;
qualquer barulho que ele escutasse pensava logo que se tratasse de porta a
abrir-se a fim de que a mulher viesse a ele; porém, esperava inutilmente. Finalmente,
a viúva, por volta de meia-noite, após ter-se divertido bastante com o amante,
disse-lhe:
- Que pensa você, alma de minha alma, com
respeito àquele rapaz? Que julga você que é maior: a insensatez dele ou o amor
que nutro por você? Será que o frio, que eu faço Rinieri sofrer, contribuirá
para que saia de seu peito o que nele entrou, anteontem, com as palavras que
lhe disse?
Retrucou o amante:
- Coração de meu corpo, creio que sim.
Percebo perfeitamente que, tanto quanto você é o meu bem e o meu descanso,
assim como o meu encanto e toda a minha esperança, assim sou eu tudo isso para
você.
- Sendo assim - dizia a mulher -, trate
de beijar-me várias vezes, a fim de que eu comprove que você diz a verdade.
Abraçando-a com força, o amante beijou-a
por isso não mil, porém 100.000 vezes. Depois de ficarem longamente conversando
assim, a mulher disse:
- Olhe, vamos levantar-nos um pouco, e
ver se está apagado o fogo no qual aquele meu novo admirador, segundo me
afirmava em suas cartas, ardia por mim.
Levantaram-se os dois; foram para a
janelinha do costume; e, olhando para o pátio, viram o pobre estudante
parisiense andar como aos pulinhos sobre a neve, a fim de esquentar o próprio
corpo; e saltitava ao som do ranger de seus dentes, causado pelo excesso de
frio; era um castanholar de dentes tão intenso e rumoroso, que ambos jamais
tinham visto coisa semelhante. Disse, então, a mulher:
- Que diz disso, minha doce esperança?
Não lhe parece que eu sei fazer com que os homens dancem, mesmo sem haver toque
de cornetas, nem de cornamusas?
Rindo, o amante confirmou:
- Meu grande encantamento, sim.
Parece-me.
Sugeriu a mulher:
- Quero que desçamos até a porta, lá
embaixo; você ficará quieto; eu falarei com ele; vamos ver o que ele tem a
dizer; pode ser que, escutando-o, não tenhamos menor divertimento do que
olhando para ele.
Mansamente, abriram a porta do quarto;
desceram até a porta lá de baixo; e, ali, sem abrir a tal porta, a mulher, com
voz submissa, por um orifício que havia, chamou o desventurado Rinieri.
Escutando o chamado, o estudante elogiou muito a Deus; julgou que chegara a
hora de penetrar na casa; acercou-se da porta; e exclamou:
- Estou aqui, senhora. Abra, pelo amor de
Deus, que estou morrendo de frio!
Disse a mulher:
- Oh, sim! Sei muito bem que você é por
demais friorento; sei, também, que faz muito frio, pois há no pátio um pouco de
neve! Também não ignoro que existem nevascas muito mais intensas em Paris.
Desventuradamente, não posso abrir-lhe a porta, pois este meu maldito irmão,
que ontem à noite esteve a jantar comigo, não se foi ainda; porém ele demorará
a ir-se embora; logo que ele se for, irei, sem nenhuma demora, abrir-lhe a
porta. Neste momento, com muita dificuldade, pude livrar-me um pouco dele, para
poder vir consolar o seu espírito, para que a espera não o deixe magoado.
Rogou, então, o moço:
- Pobre de mim, senhora! Imploro-lhe que
me abra a porta, a fim de que eu possa ficar aí dentro, bem abrigado. Há algum
tempo já cai a neve mais espessa do mundo; está nevando ainda; porém, aí dentro
ficarei aguardando todo o tempo que for de seu agrado.
A mulher lamentou:
- Pobre de mim, meu doce bem! Não posso
fazer isto. Esta porta range tanto, quando é aberta, que eu logo seria
descoberta pelo meu irmão, se a abrisse. Entretanto, vou dizer a ele que se vá
embora, a fim de que eu volte e lhe abra a porta.
Apressou-a o estudante:
- Pois vá então bem rápido! Peço-lhe que
ordene acender-se um bom fogo, a fim de que, logo que eu entre, possa
aquentar-me. O que há é que estou morrendo de frio; nem consigo mais sentir-me
a mim mesmo.
Observou a mulher:
- Não pode ser verdade o que diz, se é
certo o que muitas vezes você me escreveu; você me disse que arde todo de amor
por mim; porém estou convencida de que você pretende enganar-me. Entretanto,
agora me vou. Aguarde mais um instante, e mantenha o seu bom humor.
O amante, que escutava toda a conversa, e
que sentia com isso imenso prazer, retornou à cama, junto com a viúva: naquela
noite, contudo, os dois dormiram muito pouco; passaram o tempo a trocarem
carinhos e a zombar do estudante.
Rinieri, o pobrezinho, quase virou
cegonha, de tanto barulho que fazia rangendo os dentes. Em dado momento,
percebeu que estavam burlando dele; por várias vezes tentou abrir a porta; além
disso, examinou todo o pátio, para ver se havia possibilidade de sair por algum
lugar. Não achou saída; passou, por isso, a mover-se como leão enjaulado;
maldizia o tempo, a malvadez da mulher, o comprimento da noite e ainda o que
havia de ingenuidade em seu próprio espírito. Rebelou-se contra a viúva; aquele
amor, prolongado e fervoroso, que tinha dedicado a ela, de repente se
transformou em ódio cru e acerbo; procurou arquitetar, em seu espírito, a
maneira de vingar-se daquela burla; já agora queria mais vingança do que
desejara ter nos braços aquela mulher. Finalmente, ainda que comprida e
demorada, a noite acabou aproximando-se do dia; a aurora começou a surgir; por
isso, a criada da viúva, instruída pela sua patroa, desceu as escadas, abriu a
porta do pátio, e, fingindo a maior das compaixões pelo rapaz, disse:
- Que a má sorte recaia sobre o que veio
aqui ontem à noite! O irmão da senhora deu-nos aborrecimentos durante toda a noite;
além do mais, fez com que o senhor ficasse enregelado. Contudo, o senhor sabe o
que deve fazer, afinal? Fique com a alma tranquila. O que não pôde ser feito
esta noite sê-lo-á em outra ocasião; estou bem certa de que poucas coisas
teriam podido acontecer, que desagradassem tanto à senhora, como isto lhe
desagradou!
Despeitado, o estudante procedeu como
pessoa ilustrada que sabe que as ameaças não são outra coisa senão as armas do
ameaçado; guardou, em seu próprio peito, o que a vontade não disciplinada
ansiava por atirar fora; e, com voz tranquila, sem mostrar nenhuma espécie de
aborrecimento, disse:
- É verdade que hoje passei a pior noite
de minha vida; porém estou convencido de que a senhora não tem qualquer culpa
disso, visto que ela mesma, sentindo piedade por mim, desceu até este pátio,
para desculpar-se e, ao mesmo tempo, consolar-me. Afinal, como diz você, o que
não pôde acontecer hoje poderá vir a dar-se em outra ocasião; recomende-me à
senhora e fique com Deus.
Quase todo dobrado sobre si mesmo,
Rinieri dirigiu-se, como pode, para sua residência; quando chegou ali, cansado
e morto de sono, jogou-se à cama, para dormir. Nessa cama acordou ele com as
pernas e os braços que quase não davam sinal de vida; por isso, ordenou que
viessem os seus médicos; informou-os a respeito do frio a que ficara sujeito; e
rogou-lhes que adotassem as providências necessárias ao restabelecimento de sua
saúde. Os médicos, auxiliando-o com grandes recursos e aplicações imediatas,
tiveram muito trabalho para o curar dos nervos e para os induzir a
distenderem-se outra vez; não fosse pelo fato de Rinieri ser ainda jovem, e de
vir em seguida o tempo dos calores, muito sofrimento teria ele de suportar;
entretanto, voltou ao seu estado natural de pessoa sadia e bem disposta;
manteve, contudo, em seu peito, o ódio profundo contra aquela mulher; apesar
disso, continuou a fingir que estava imensamente apaixonado pela tal viúva.
Ora, após certo tempo, sucedeu que o
destino preparou de tal maneira as coisas, que o estudante pode começar a
satisfazer o seu desejo de vingança. Aconteceu que o rapaz que a viúva amava
deixou de dar importância ao amor que ela lhe dedicava; apaixonou-se por outra
mulher e, não querendo mais dizer, nem fazer, pouco nem muito, fosse o que
fosse para dar prazer à viúva, esta começou a definhar entre lágrimas e
sofrimentos.
A criada, entretanto, sentiu imensa
piedade por sua patroa; não pode achar uma maneira de aliviar a dor que a
mulher sentia, pela perda de seu amante; porém, vendo o estudante Rinieri
passar pelas ruas, como antes, como se não lhe tivesse acontecido nada de
desagradável, teve um pensamento muito tolo. Pensou que, através de alguma
operação nigromântica, seria possível obrigar o amante de sua senhora a tornar
a amá-la como antes; julgou que o estudante, que recebera instrução em Paris,
deveria ser mestre nessa operação; e contou este seu modo de pensar à patroa. A
viúva, que era intelectualmente pouco dotada, nem mesmo pensou que, se o estudante
conhecesse a arte nigromântica, certamente a teria usado em seu benefício;
acreditou nas palavras da criada; e de repente pediu-lhe que fosse ter com
Rinieri, para perguntar-lhe se queria fazer aquelas artes a favor dela;
autorizou a criada a prometer-lhe, como sinal de gratidão por isso, que ela, a
viúva, faria o que maior prazer desse a ele, Rinieri. A criada desincumbiu-se
dessa missão com muita inteireza e muita prestimosidade.
Ao ouvir aquilo, o rapaz ficou muito
contente; e, a si mesmo, disse:
"Louvado sejais vós, meu Deus! É
chegado o tempo em que, com o vosso auxílio, poderei impor algum padecimento à
malvada mulher, pela afronta que me fez ao dar-me aquela noite como prêmio ao
imenso amor que eu lhe dedicava". E disse à criada:
- Diga à mulher que eu amo que não mais
se preocupe com o caso; mesmo que o seu amante estivesse na Índia, eu faria com
que ele voltasse aos pés dela, para pedir perdão de tudo o que possa ter feito
contrariando os desejos dela. O modo como ela haverá de obter isto devo eu
dizer a ela, quando e onde ela o determinar; dê-lhe este recado e conforte-a em
meu nome.
Deu a criada a resposta à sua patroa;
ficou acertado que a viúva e Rinieri se veriam em Santa Lúcia dal Prato. Foram
ali ter a mulher e o estudante, e ficaram palestrando, a sós. Ela nem mesmo se
lembrou de que quase provocara a morte dele; contou-lhe, com franqueza, tudo o
que lhe sucedera; esclareceu o que queria; e rogou-lhe pela salvação de sua
própria alma. A isto, disse o estudante:
- Senhora, é certo que, entre as demais
coisas que aprendi, em Paris, está inclusa a nigromancia; sei tudo o que é
possível conhecer a propósito desta arte; contudo, como esta arte é coisa que
dá imenso desgosto a Deus, jurei, certa vez, que jamais a usaria, nem para mim,
nem para os outros. Entretanto, é certo que o amor que tenho pela senhora se
anima de força tão poderosa, que não sei como negar-lhe o que quer que eu
realize; por isso, ainda que eu, apenas por isso, deva ir para a casa do diabo,
mesmo assim estou propenso a fazer o que lhe agradar. Quero, porém, lembrar-lhe
que será necessário fazer uma coisa muito menos cômoda do que a senhora possa
imaginar; o ato torna-se ainda mais incômodo quando uma mulher quer chamar a si
um homem, a fim de que a ame, ou quando um homem deseja o mesmo fim. Um ato semelhante
não se pode realizar senão com a própria pessoa que quer beneficiar-se dele;
para isso é necessário, absolutamente, que a pessoa que o pratique esteja com o
espírito bem seguro do que quer, porque o ato deve ser praticado à noite, em
local ermo, e sem nenhuma companhia. Tudo isto estou eu propenso a realizar, se
a senhora também o quer.
Ao que a mulher, mais apaixonada do que
ilustrada, retrucou:
- Tanto me esporeia o amor que nada há
que eu não queira fazer, para recuperar o amor daquele que, sem nenhuma razão,
me deixou; contudo, se isto lhe agrada, diga-me no que é que eu tenho de estar
certa de mim mesma.
O estudante, que guardava na mente a
lembrança do sofrimento que padecera, e continuava alimentando o seu desejo de
vingança, explicou:
- Senhora, terei de fazer uma imagem de
estanho, em nome do homem que a senhora quer de volta; em seguida,
enviar-lhe-ei a imagem; será, então, importante que a senhora, assim que a lua
empalideça bastante, fique inteiramente nua; depois, que entre num rio de água
corrente, logo à hora do primeiro sono; em seguida, que se banhe sete vezes
nessa água, junto com a aludida imagem de estanho; mais tarde, que, sempre
completamente nua, se dirija para o alto de uma árvore, ou de qualquer casa
alta e desabitada; que ali se volte para o norte, sempre tendo a imagem na mão;
e que assim diga sete vezes certas palavras que lhe darei escritas. Assim que a
senhora tiver terminado de recitar essas palavras, irão ao seu encontro duas
jovenzinhas, as mais lindas que já tenha visto; elas cumprimentarão a senhora;
vão perguntar-lhe o que a senhora quer que se faça. Nesta altura, a senhora
dirá às tais moças, com toda a inteireza e com toda a clareza, os seus desejos;
preste atenção para não dizer um nome em lugar de outro; após revelados os
desejos, as jovens irão embora; então a senhora poderá descer para o local onde
tiver deixado suas roupas; ali voltará a vestir-se; e retornará à sua casa.
Assim, é certo que, antes de transcorrida metade da noite seguinte, já o seu
amante, em prantos, lhe aparecerá, para lhe pedir perdão e misericórdia; e
saiba que, a partir desse momento, jamais ele a trocará por qualquer outra
mulher.
Escutou a mulher todas estas coisas;
deu-lhes inteira fé; já estava com a impressão de ter o amante nos braços;
ficou um pouco alegre por isso; e disse:
- Não duvide, Rinieri; farei bem feito
quanto você mandar fazer; além do mais, tenho a maior comodidade do mundo para
agir assim; tenho uma pequena propriedade, ali pelos lados do Valdarno superior,
que está localizada bem junto às margens do rio; estamos, agora, em julho, e o
banhar-se a gente é coisa agradável. Lembro-me, além disso, de que, não
distante do rio, existe uma pequena torre desabitada; somente vez ou outra,
pela escada móvel, rústica, feita de madeira de castanheiro, que lá existe, os
pastores sobem até uma plataforma de terra batida, de onde podem avistar onde
estão as ovelhas desgarradas; é um local solitário, fora de mão; subirei à
plataforma da torre; e ali, do melhor modo possível, espero realizar o que você
mandar.
Rinieri, que conhecia perfeitamente a
propriedade da mulher, e também a torre de que ela falara, ficou contente ao
conhecer as intensões dela; e disse:
- Senhora, nunca estive naquelas
paragens; assim, não sei nada de sua propriedade, nem da pequena torre;
entretanto, se as coisas são como a senhora afirma, não pode haver nada melhor
no mundo; por isso, quando for o momento oportuno, enviar-lhe-ei a imagem e a
oração; suplico-lhe, porém, que, quando o seu desejo estiver satisfeito, e
quando estiver convencida de que eu a servi bem, recorde-se de mim, assim como
de cumprir a promessa que me fez.
Disse a mulher que haveria de lembrar-se
e que, sem falta, cumpriria a promessa; despediu-se do estudante, e retornou à
sua casa. Muito satisfeito por ver que seu conselho poderia surtir bom efeito,
Rinieri fez uma imagem com características mágicas; em seguida, escreveu umas
rogativas quaisquer, à guisa de oração; e, quando lhe pareceu que chegara o
momento adequado, remeteu tudo à casa da viúva, informando-a de que, na noite
seguinte, sem tardança, deveria ser feito o que ficara combinado. Depois, com
um criado seu, sigilosamente, Rinieri foi à casa de um amigo, que ficava muito
próximo da tal torre, para pôr em prática o seu próprio plano.
Por sua vez, a mulher se pôs a caminho,
em companhia da criada, e foi para a sua propriedade; logo que a noite desceu,
ela fingiu ir para a cama; mandou que a criada fosse dormir; e, na hora do
primeiro sono, deixou a casa silenciosamente; foi na direção da pequena torre
que estava à margem do Arno; quando chegou ali, examinou com o olhar os
arredores; não viu, nem ouviu, fosse lá o que fosse; despiu-se, então,
ocultando as roupas sob uma pequena moita; foi para o rio, em cujas águas se
banhou sete vezes, com a imagem; depois, sempre inteiramente nua e com a imagem
na mão, voltou ao caminho da torre.
De sua parte, Rinieri, logo que a noite
chegou, junto com seu criado, foi colocar-se entre os salgueiros e outras
árvores, ficando, assim, oculto bem junto da torre. Desse modo assistiu ao que a
viúva fez; quando ela passou bem próximo a ele completamente nua, percebeu ele
que, com a brancura de sua pele, ela vencia a escuridão da noite; também
observou os seios e outras partes do corpo dela; considerando tudo muito lindo,
pensou no que aquelas belas formas deveriam transformar-se em breve; e, na
verdade, sentiu alguma pena. Por sua vez, o aguilhão da carne o acometeu de tal
modo, que ele sentiu desejos de deixar o seu esconderijo, ir agarrá-la e
forçá-la a satisfazer-lhe os desejos; esteve, mesmo, quase a ser vencido pelos
seus instintos. Entretanto, veio-lhe à memória quem ele era, assim como a
afronta que recebera, a razão pela qual lhe fora imposta e a pessoa que lha
impusera; assim, tornou a acender-se em seu coração o ódio, destruindo a
piedade e o apetite sensual; e ele conservou-se firme em seu propósito, e
deixou que ela prosseguisse.
A mulher subiu ao mais alto da torre;
voltou-se para o norte; e pôs-se a recitar as palavras da oração enviada pelo
estudante. Passado pouco tempo, o mesmo estudante entrou em silêncio na torre,
e, com muito cuidado, retirou aquela escada que levava à plataforma lá de cima,
onde estava a mulher; e ficou à espreita, para ver o que a mulher diria e faria.
Disse a mulher sete vezes aquela oração, e começou a aguardar a chegada das
jovenzinhas; a espera, contudo, foi demasiadamente longa; além disso, a noite
estava muito mais fria do que ela apreciaria que estivesse; finalmente, ela viu
surgir a aurora; ficou muito tristonha, por notar que não acontecera o que o
estudante lhe afirmara que aconteceria; e pensou: "Temo que este rapaz
tenha querido dar-me uma noite igual à que eu o obriguei a passar; se, contudo,
ele me fez isto, mal terá sabido vingar-se, pois esta noite não foi idêntica,
quanto à duração, a um terço daquela que ele atravessou; além do mais, o frio
da noite dele foi mais intenso".
Para que a luz do dia não a surpreendesse
naquela plataforma, quis descer da torre; constatou, porém, que a escada não
mais estava ali. Então, quase como se o mundo tivesse desaparecido, ou cedido
sob seus pés, o seu ânimo forte deixou-a; vencida, caiu no chão de terra batida
da plataforma da torre. Ao voltarem-lhe as forças, ela pôs-se a chorar e a
lamentar-se; notou que aquilo teria sido obra do estudante; e, desse modo,
passou a censurar-se a si própria pelo mal que causara aos outros; do mesmo
modo se censurou por ter confiado demais no rapaz estudante, que ela deveria
ter, realmente, como inimigo seu; em tais lamentações e reproches ela perdeu
muito tempo. Em seguida, procurando observar se havia alguma saída por onde
pudesse descer, e notando que não havia, voltou a chorar e entrou em um amargo
pensamento, dizendo a si mesma: "Oh! como sou infeliz! Que haverão de
dizer os meus irmãos, os meus parentes, os meus vizinhos e, em geral, todos os
florentinos, quando se espalhar a notícia de que fui encontrada nua neste
local? A minha honestidade, tida sempre em ponto alto, mostrará a sua
falsidade. E, mesmo que eu pretenda achar ou apresentar desculpas mentirosas,
que, em todo caso, poderia achar, aquele maldito estudante, que muito bem sabe
o que planeja realizar, não permitirá que eu minta. Ai! desventurada que sou!
De uma só vez, acabarei por perder o meu amante mal amado e a minha
honra!" Tanta foi a dor que sentiu, depois disto, em sua alma, que esteve
a pique de jogar-se do alto daquela torre ao chão. Contudo, o sol já ia um
tanto alto; ela acercou-se de um dos muros da torre, e, por cima dele, olhou
para fora, na esperança de ver algum mocinho pastor, com as suas ovelhas,
próximo dali, ou que viesse aproximando-se daquele lugar; em caso positivo,
talvez pudesse mandar avisar a criada; porém o que sucedeu foi que o estudante,
que dormira junto a uma moita, despertou; ele viu-a, e ela também o viu; então,
indagou o rapaz:
- Bom dia, senhora! As mocinhas já
chegaram?
Vendo-o e escutando-o, a mulher voltou a
chorar copiosamente; rogou-lhe que entrasse na torre, para que ela pudesse
falar-lhe. O rapaz mostrou-se muito atencioso, com respeito a isto. A viúva
deitou-se de borco, no chão da plataforma da torre; deixou pender, para baixo,
somente a cabeça, no buraco de entrada, de onde se retirara a escada; e, sempre
em prantos, disse:
- Rinieri, por certo, se é verdadeiro que
eu lhe dei uma péssima noite, você já se vingou muito bem: e isto porque, ainda
que estejamos em julho, eu ficando aqui toda a noite, completamente sem roupas,
pensei estar enregelando-me; além do mais, tanto já chorei, fosse pela burla
que lhe preguei, fosse pela minha estultície, que me levou a acreditar em suas
palavras, que nem mesmo sei como é que tenho ainda olhos na cabeça. Assim
sendo, rogo-lhe, não por amor a mim, visto que você não deve mais amar-me, e
sim por amor à sua reputação de gentil-homem: seja bastante, como vingança da
injúria que lhe fiz, isto que até o presente você me está fazendo. Faça com que
eu receba minhas roupas, e conceda que eu desça daqui. Não me tire o que,
depois, mesmo querendo-o você não poderá mais devolver-me, isto é, minha honra.
Se naquela noite não consenti que você estivesse comigo, agora posso, quando
bem lhe convier, ou for de seu agrado, dar-lhe muitas noites, a troco daquela
única. Acredito que isto será bastante para você; como sucede com os homens
valorosos, fique satisfeito com a circunstância de já ter mostrado, a mim, que
sabe e pode vingar-se; não queira medir suas forças contra a minha pessoa, que
sou apenas uma fraca mulher; nenhuma glória existe para a águia que vence uma
pomba; por isso, pelo amor de Deus e de você mesmo, compadeça-se de mim.
O rapaz mexia e remexia, em seu espírito,
com indignação, a injúria que recebera, e da qual se recordava ainda com muita
amargura; e, vendo a mulher em prantos e a suplicar, sentia ao mesmo tempo prazer
e desgosto; prazer pela sua vingança, que quisera alcançar, mais do que outra
coisa qualquer deste mundo; e desgosto, pela compaixão que o seu senso de
humanidade o levava a nutrir pela infeliz. O senso de humanidade, contudo, não
pôde vencer a severidade do seu desejo de vingança. E, por isso, ele disse:
- Senhora Helena, naquela noite, na
verdade, eu não soube banhar de lágrimas os meus pedidos; por outro lado, não
os pude, também, tornar melosos, como agora você consegue fazer os seus; assim,
naquela noite, no pátio de sua residência, onde, em plena nevasca, eu ia
morrendo de frio, aquelas minhas súplicas não me deram a bênção de ver-me
recolhido, por você, a um local coberto; ao contrário, tivesse você ouvido os
meus rogos, não me custaria nada, agora, ouvir suas súplicas. Entretanto, se
você se preocupa tanto, agora, com a sua honra — muito mais do que se preocupou
no passado —, e se lhe é desagradável estar aí, completamente nua, faça seus
rogos àquele homem a cujos braços você se aninhou; naquela mesma noite, você
não sentiu remorsos, se você se lembra bem, de estar com ele, completamente
nua, ainda sabendo que eu estava no pátio de sua casa, rangendo os dentes e
amassando neve; peça, agora, que ele a auxilie; que lhe entregue suas roupas;
que a faça descer pela escada; tente inocular, no seu coração, a ternura pela
sua honra, a qual você nunca hesitou, nem agora, nem em 1.001 vezes, em pôr em
risco. Por que você não o chama, a fim de que ele a auxilie? A quem é que ele
pertence, senão a ele mesmo? Você é dele. De que coisas cuida ele, ou ajuda, se
não cuida nem ajuda a você? Chame-o! Deixe de ser tola! Procure comprovar se o
amor que você tem por ele, e se o seu juízo, ligado ao dele, podem libertá-la
de minha estupidez; pois você não indagou, a ele, o que achava ele maior: se a
minha estultície, ou se o amor que você alimentava por ele? Além disso, não
procure agora ser atenciosa para comigo, ofertando-me o que eu não quero, e
que, afinal, não poderia negar-me, se eu o quisesse; guarde para o seu amante
suas noites, se é que poderá sair viva daqui; sejam suas, e dele, essas noites;
quanto a mim, fiquei sobejamente satisfeito com uma só; basta-me ter sido
ridicularizado uma vez. Noto que, mesmo agora, você usa de sua astúcia ao
falar-me; procura elogiar a minha benevolência; chama-me de gentil-homem; diz
que sou pessoa de valor; e tudo isto você o afirma para que eu, convencido e
bondoso, me contenha, deixando de castigá-la pela sua malvadeza. Entretanto,
seus elogios, agora, não mais turvarão a vista do intelecto, ao contrário do
que já o conseguiram as suas promessas desleais. Conheço-me. Aliás, não aprendi
tanto a meu respeito enquanto estive estudando em Paris, como, em apenas uma
noite, você obrigou-me a aprender, no pátio de sua casa. Pressupondo-se, porém,
que eu seja bondoso, a verdade é que você não é das mulheres para as quais a
bondade deva surtir efeito. O fim da penitência, para as feras selvagens, como
você - e, também, o fim da vingança -, costuma ser a morte; enquanto, para os
homens, deve ser bastante o que você lhes disse. Ainda que eu não seja águia,
noto bem que você não é uma pomba, mas antes uma serpente venenosa; por isso,
como seu inimigo antiquíssimo, com o maior potencial de ódio e com toda a força
de meu ser, quero persegui-la. Afinal, tudo o que lhe faço não pode ser,
exatamente, chamado de vingança: isto constitui somente um castigo; a vingança
vence a ofensa, e, em tal caso, não cairá sobre sua cabeça. Quisesse eu
vingar-me, considerando o jogo em que você atirou a minha alma, não ficaria
contente somente em tolher-lhe a existência, nem tolhendo cem vidas iguais à
sua; tolhendo-lhe a existência, não faria senão matar uma reles mulherzinha,
perversa e condenada. E para que deverei tolher-lhe esse palminho de cara -
dessa cara que alguns anos mais serão suficientes para arruinar, enchendo-a de
rugas -, já que, neste instante, você é a pessoa mais infeliz que existe? Não
pode você fazer morrer um homem valoroso (como você, há pouco, me qualificou),
cuja existência será, um dia, mais útil ao mundo do que 100.000 vidas de
mulheres iguais a você o poderão ser, durante todo o tempo de duração do mundo.
Portanto, com esta angústia que você sente, ensino-lhe o que significa zombar
de homens que têm algum sentimento - o que quer dizer zombar de pessoas
ilustradas; desse modo, dou-lhe motivo para você jamais cair em tal besteira,
se puder sair viva disto. Entretanto, se está com tanta vontade de descer, por
que motivo não se joga ao chão? Se se atirar, você poderá, de uma só vez, com
auxílio de Deus, e partindo o seu pescoço, deixar o castigo no qual você
imagina estar, e fazer-me o homem mais venturoso do mundo. Bem. Não vou
dizer-lhe, agora, mais coisas. Soube realizar tudo de tal modo que a convenci a
subir a esta torre; saiba você, agora, fazer tudo de tal maneira que possa
descer daí, como pode burlar-se de mim.
Enquanto dizia estas palavras o
estudante, a desventurada mulher continuava a chorar, e passava-se o tempo, de
maneira que o sol se tornava cada vez mais alto. Entretanto, quando ela
percebeu que ele se calara, disse:
- Escute aqui, homem cruel! Se aquela
noite maldita lhe foi tão amarga, e se o meu erro pareceu-lhe tão grande que
não chegam a provocar-lhe a menor piedade a minha jovem beleza, nem as lágrimas
amargas que verto, nem minhas humildes súplicas, permita, ao menos, que o
comova, e que reduza um pouco a sua inflexibilidade, este meu ato: o de eu ter
outra vez confiado em você; o de eu revelar-lhe todos os meus segredos; com
isto, dei vida à sua vontade de vingança pelo meu pecado; é certo que, não
tivesse outra vez confiado em você, você não disporia de nenhum meio para se
vingar, coisa que você demonstra bem que desejou com ansiedade. Por amor de
Deus! Ponha, por isso, a ira de lado. Dê-me o seu perdão. Se me der seu perdão
e me fizer descer daqui, estou disposta a deixar de vez aquele rapaz cruel,
passando a ter somente você por amante e senhor, ainda que você lamente a minha
beleza e demonstre nutrir bem pouco apreço por ela. Sei que minha beleza, ainda
que talvez não seja diferente da beleza de outras mulheres, deveria ser
apreciada sempre, se mais não fosse somente pela circunstância de servir o
capricho, o divertimento e o prazer de juventude dos homens; ora, você não é
velho. Ainda que eu esteja sendo tratada do modo mais cruel, por você, nem
assim posso crer que você queira que eu tenha morte tão desonrosa, como a que
eu teria se me jogasse daqui de cima, por angústia, diante de seus olhos, olhos
estes que, quando você não era tão mentiroso quanto depois se tornou, tantas
vezes apreciaram contemplar-me. Escute-me! Tenha um pouco de consideração por
mim, por amor de Deus e por compaixão! O sol já se faz quente demais; além
disto, o frio muito violento desta noite muito mal me fez; por isto, o calor de
agora está-me causando muito incômodo.
Ao que o estudante, que com imenso
deleite permitia que ela falasse, e que a escutava com muito prazer, retrucou:
- Senhora, sua fé não é entregue agora às
minhas mãos, em decorrência de algum amor que você alimente por mim, e sim pela
sua intenção de recuperar o que perdeu; assim, você não merece outra coisa
senão o mal maior. Você pensa de uma maneira simplesmente amalucada, se imagina
que este foi o único modo que achei para contentar o desejo de vingar-me, na
ocasião oportuna, daquilo que você me fêz. Eu já imaginara mil outras maneiras;
1.001 armadilhas eu armei aos seus pés, enquanto fingia continuar amando-a,
após aquela noite; esteja certa de que não transcorreria muito tempo, sem que você
caísse num dos laços que lhe preparei, se isto que está sucedendo agora por
acaso não ocorresse. O que não se discute é que você não poderia cair num laço
que maior pena e maior vergonha lhe provocasse do que este em que caiu; e
observe que eu adotei esta armadilha, não para lhe dar maior comodidade, mas
para me satisfazer mais cedo. Mesmo que tivessem falhado todos os meus projetos
de vingança, jamais eu deixaria de recorrer à pena; com ela, haveria de
escrever tanto, e de tal maneira, a seu respeito, que você, lendo os escritos,
começaria a desejar mil vezes nunca ter nascido. A pena tem forças muito
maiores do que supõem os que, por experiência própria, não as sentiram. Deus
que me mantenha contente com esta vingança que estou alcançando agora contra você:
que me mantenha contente até o fim, como me fez satisfeito no principio. Juro,
porém, que, se ele não tivesse disposto assim, eu escreveria sobre você coisas
tais, que você sentiria vergonha não apenas das demais pessoas, como ainda de
você própria; a tal ponto que, não mais podendo fitar-se a si mesma, sem sentir
horror, acabaria por arrancar os próprios olhos. Por isso, não reproche ao mar
o fato de o riozinho ter-lhe aumentado as águas. Com respeito ao seu amor, ou
ao fato de você vir a ser minha, não tenho nenhuma preocupação, como já
afirmei; continue sendo, portanto, se o desejar, e se puder, daquele de quem
tem sido; a esse sujeito, odiei-o no passado, tanto quanto agora o estimo, em
vista do que ele fez contra você. Vocês, mulheres, andam apaixonando-se por aí,
e suspirando pelo amor dos jovens, somente porque vocês os vêem com as carnes
mais vivas e as barbas mais negras; vocês fitam-nos quando eles andam eretos, e
quando, com desempenho, bailam e competem nos torneios; tudo quanto têm os
rapazes já o tiveram aqueles que são mais adiantados em idade; e os mais idosos
já conhecem aquilo que os mais jovens ainda devem aprender. Além disso, vocês,
mulheres, gostam dos moços, por achá-los melhores cavaleiros, e capazes, por
isso, de percorrer maior número de milhas, em suas jornadas, do que os homens
mais maduros. Decerto, confesso que os rapazes movem com mais força o próprio
corpo, depois das lides do amor; porém os homens mais maduros, tendo maior
experiência, conhecem melhor os lugares onde estão as pulgas; e não há dúvida
de que se deve dar preferência ao pouco e saboroso do que ao muito e sem sabor;
o trote intenso cansa e derreia qualquer pessoa, por mais moça que ela seja,
enquanto o marchar suave, ainda que faça a gente atingir um pouco mais tarde o
fim almejado, faz com que a gente ali chegue, ao menos, descansado. Vocês,
mulheres, como são animais sem inteligência, não notam a soma da maldade que,
sob aquele pouco de aparência, está oculta. Os rapazes não se satisfazem com
uma mulher; querem todas as que vêem, e consideram-se merecedores de todas; o
amor dos rapazes não pode ser estável; e disso você pode agora ser a melhor
testemunha, por experiência própria. Estão convencidos os jovens de que são
merecedores de reverência e de carinhos, da parte das mulheres; e desconhecem
outra glória mais elevada do que vangloriarem-se das mulheres que já possuíram;
este erro dos rapazes, que falam demais, já levou muitas mulheres a dar
preferência aos frades, que não revelam nada. Ainda que você afirme que, dos
seus amores, ninguém nunca veio a saber de coisa alguma, senão a sua criada e
eu, o certo é que você pouco sabe, e emprega mal a sua crença, se acredita
nisso. "O bairro dela, como o seu, quase não tem outro assunto senão os
seus amores; contudo, a pessoa a quem os falatórios se referem é sempre a
última a conhecê-los. Os rapazes ainda roubam as mulheres, enquanto os mais
amadurecidos lhes dão presentes. Portanto, você, que escolheu mal, continue
pertencendo àquele ao qual se entregou; no que diz respeito a mim, de quem você
zombou, permita que eu fique com os outros, pois achei mulher muito superior a
você, e que me conheceu muito melhor do que você o fez. Para que você possa
levar, ao outro mundo, uma certeza do desejo de meus olhos, maior ainda do que
parece que você recebe de minhas palavras, jogue-se daí de cima; segundo penso,
sua alma será logo recebida nos braços do diabo; e poderá então comprovar se
meus olhos ficaram perturbados, ou não, ao ver você tombar pesadamente aí de cima.
Como, entretanto, você não quererá dar-me essa alegria, afirmo-lhe que, se o
sol começar a queimar o corpo, é bom que você se lembre do frio que me fez
padecer; se, além disso, você o misturar com esse calor, certamente perceberá
que o sol está bem temperado.
Desconsolada, a mulher, notando que as
palavras do estudante se dirigiam sempre para um fim cruel, voltou a chorar, e
disse:
— Aqui está. Já que nada faz com que você
se compadeça de mim, tenha então piedade, pelo amor que você tem àquela mulher
mais ilustrada e mais ajuizada do que eu, que diz ter encontrado, e pela qual
afirma que é querido; pelo amor dessa mulher, dê-me seu perdão; e entregue-me a
minha roupa, para que eu possa tornar a vestir-me; em seguida, permita que eu
desça daqui.
O
estudante pôs-se a rir, então; e, percebendo que já transcorrera a hora
terceira, há muito tempo, retrucou:
— Aqui está. Agora não mais sei dizer
não, visto que você me dirigiu um rogo por tal mulher; diga em que lugar pôs as
roupas; irei buscá-las; e em seguida permitirei que você desça daí.
A mulher deu crédito a estas palavras, e
sentiu-se mais animada: assim, indicou ao rapaz o lugar onde escondera as
roupas. O estudante, deixando a torre, mandou que o seu criado não se
ausentasse dali, e que, pelo contrário, se mantivesse por perto; do mesmo modo
mandou que fizesse o possível a fim de que nenhuma pessoa penetrasse na torre,
até o instante em que ele retornasse ali. Depois de dar estas recomendações,
Rinieri partiu para a casa do seu amigo; ali, com muita folga, almoçou; depois,
quando julgou conveniente, foi fazer a sesta. Permanecera a mulher lá no topo
da torre; e, ainda que se sentisse um pouco reconfortada, pela ilusória
esperança de que as roupas lhe seriam entregues, deixou a sua posição deitada,
para sentar-se, ainda que sempre resmoneando queixas; encostou-se à parte do
muro onde havia um pouco de sombra; e, cheia a cabeça de amargos pensamentos,
pôs-se a esperar. Ora pensando e ora chorando, ora esperando e ora
desesperando, quanto à volta do estudante com as suas roupas — e pulando, de
quando em quando, de um pensamento a outro —, adormeceu. A dor vencera-a, e,
além disto, não dormira um só momento na noite anterior. O sol, que estava
muito quente, tendo já atingido as alturas do meio-dia, feria diretamente, e a
descoberto, o corpo tenro e delicado da desventurada mulher; além disso,
batia-lhe na cabeça, toda descoberta, com força tal, que não apenas parecia
cozinhar-lhe as carnes sobre as quais dardejava, como ainda as abria em chagas
miúdas e dolorosas; tão grande foi a ardência do sol, que a obrigou a
acordar-se, ainda que estivesse profundamente adormecida. Sentiu que estava
cozinhando-se ao sol; moveu-se um pouco; movendo-se, pareceu-lhe que toda a
pele cozida estava abrindo-se e despegando-se do corpo; era o mesmo que a gente
vê suceder com um pergaminho queimado, havendo pessoa que o distenda. Doía-lhe,
também, com tanta força a cabeça, que tinha a impressão de estar prestes a
partir-se; coisa que, afinal, não era de espantar. O chão da plataforma
tinha-se aquecido tanto, que ela não podia pousar nele nem os pés nem outra
parte qualquer do corpo; não lhe sendo possível estar parada, andava de um lado
para outro, sempre em prantos. Além disso, não soprando nenhum vento, havia
bandos de moscas e tavões; moscas e tavões sentavam-se em suas carnes em
chagas; e mordiam-nas com tanta voracidade, que cada picada parecia, à
desventurada criatura, um golpe de esporão. Por isso, ela não parava de mover
as mãos em volta do próprio corpo; e movia-as sempre maldizendo-se a si
própria, a sua existência, o seu amante, e também o estudante vindo de Paris.
Deste modo a mulher foi sendo angustiada,
martirizada, pungida, pelo incalculável calor solar, pelas moscas, pelos
tavões, e, também, além de tudo, pela fome; entretanto, a tortura maior era-lhe
imposta pela sede, junto com 1001 pensamentos amargos. Em certo momento, ela
levantou-se; procurou olhar os arredores, para verificar se, por perto, havia
pessoa que lhe pudesse dar ajuda; agora, estava disposta a tudo, houvesse o que
houvesse, contanto que viesse alguém, a fim de que ela pudesse chamar e pedir
ajuda. Entretanto, também isto a sua sorte adversa lhe negara. Os trabalhadores
do campo tinham-se retirado todos daquelas terras, por causa do excessivo
calor; além do mais, naquele dia, nenhum deles fora trabalhar nas cercanias da
torre, mesmo porque a maioria dos homens estava batendo os seus cereais ao lado
de suas próprias casas. Por isso, a mulher, lá no alto da torre, não via nem
ouvia fosse o que fosse, senão as cigarras; via, também, o rio Arno que,
acendendo-lhe o desejo de beber-lhe as águas, em lugar de lhe diminuir a sede,
acentuava-a ainda mais. Via, ainda, diversos pontos, a distância, bosques,
sombras e casas, e tudo, igualmente, lhe trazia angústias, por lhe provocar
desejos.
Que haveremos de dizer mais da infeliz
viúva? O sol, que dardejava do alto, e o abrasamento do chão da plataforma da torre,
por baixo, tudo combinado com as picadas de moscas e tavões, de todas as
partes, tinham-na colocado em estado irreconhecível. Ela, que, na noite
anterior ainda, vencia a escuridão com a brancura de sua pele, estava agora com
o corpo inteiramente vermelho como uma romã; toda a pessoa mostrava-se
salpicada de sangue; e poderia parecer, a quem a visse naquelas condições, a
mulher mais feia do mundo.
Assim ela ficou, no alto da torre, sem
conselho nem esperança; pusera-se mais à espera da morte, do que de outra coisa
qualquer; e, enquanto isso se passava, já decorrera a meia da hora nona.
Após a sua sesta, o estudante levantou-se
da cama; recordou-se da viúva; e, para constatar o que se passara com ela, regressou
à torre; ali chegando, ordenou que seu criado fosse almoçar, pois estava ainda
em jejum. A mulher escutou a voz do rapaz; ainda que abatida e derreada pelo
sofrimento, acercou-se da abertura que dava para o chão, e de onde fora tirada
a escada; sentou-se ali, chorando, e pôs-se a dizer:
- Rinieri, bem que você já completou sua
vingança, além de toda expectativa; se é verdade que eu deixei você enregelar-se,
uma noite inteira, no pátio de minha casa, você já conseguiu que eu, de dia,
ficasse inteirinha assada; aliás, estou mesmo queimando-me toda; acresce ainda
que estou morrendo de sede e de fome. Assim sendo, peço-lhe, em nome de Deus,
que suba até aqui; visto que o coração não me auxilia a dar morte a mim mesma,
dê-me você esta morte, que eu quero mais do que qualquer outra coisa no mundo,
tão insuportável é a angústia que eu sinto. Se não desejar conceder-me esta
graça, ordene ao menos que me tragam um copo de água, para que eu possa
umedecer os lábios, aos quais já não bastam minhas lágrimas, tão intensa é a
secação, e tão intolerável é a queimação que sinto dentro de meu corpo.
Pela voz, o estudante aquilatou o grau de
fraqueza da mulher que falava; viu, ainda, parte do corpo dela completamente tostado
pelo sol; tudo isto, e mais as humildes súplicas que ela fizera, levou-o a sentir
um pouco de piedade pela viúva; apesar disso, retrucou:
- Perversa mulher, você não morrerá pelas
minhas mãos; haverá de morrer pelas suas, se sentir vontade de morrer; terá, de
minha parte, para mitigar o calor, tanta água quanto foi o fogo que eu recebi,
de sua parte, para aliviar o frio que eu sentia, naquela noite. Lamento não
poder deixar de ser assim; mais saiba que a enfermidade que adveio do meu frio precisou
ser curada com o calor do esterco fedorento, enquanto a doença que advier do
seu calor poderá ser curada com a perfumada água de rosas; e, tanto quanto eu
estive quase para perder os nervos e a vida, assim também você, escorchada por
este calor, passará a ficar tão bela quanto a serpente, quando muda de pele,
deixando a antiga.
- Oh, desgraçada que eu sou! - bradou a
mulher. - Deus que conceda tais belezas, adquiridas deste modo, às pessoas que
me desejam mal! Você, porém, que é mais cruel do que qualquer fera que eu
conheço, como pode ter coragem de me torturar desta maneira? Que mais poderia
eu esperar de sua parte, ou da parte de qualquer outro sujeito, se tivesse eu matado
toda a sua parentela por meio de tormentos muito cruéis? Na verdade, ignoro que
possa haver crueldade maior do que esta, que pudesse ser infligida a um traidor
que tivesse entregue ao massacre uma cidade inteira. Aqui estou, onde você me
colocou, torrando-me ao sol, e lutando contra as moscas; além do mais, nem
mesmo um copo de água você quer dar-me; e observe-se que, aos assassinos, aos condenados
pelo tribunal, com frequência lhes é dado até vinho, quando vão a caminho da
execução da pena capital, se eles o pedirem. Agora, entretanto, como vejo você
aí, impassível na sua atroz crueldade, sem que nenhuma piedade tenha o poder de
mover-lhe o coração, diante de minha tortura, vou preparar-me, pacientemente,
para receber a morte; assim, terá Deus piedade de minha alma; a ele rogo que
considere, com olhos de justiça, esta operação que você realiza.
Tendo dito estas palavras, a viúva
arrastou-se, com imensa dificuldade e enorme sofrimento, para o meio da
plataforma; não possuía sequer a mínima esperança de sobreviver a tão abrasador
calor; não somente uma vez, e sim mil vezes, ela pensou que ia morrer de sede,
além de estar sob o peso de tantos outros sofrimentos; ainda assim, conseguia
chorar alto e lamentar-se de seus padecimentos.
Contudo, tendo vindo já a tarde, e crendo
ter feito o bastante, o estudante ordenou que fossem apanhadas as roupas da
viúva; resolveu que essas roupas fossem embrulhadas na capa de seu criado; e
partiu, com elas, para a casa da desventurada mulher; ali, achou a criada da
viúva, sentada à porta da rua, desconsolada, aflita, e sem saber que providência
tomar. Rinieri disse-lhe:
- Bondosa mulher, onde está sua patroa?
Ao que a criada respondeu:
- Senhor, não sei. Pensei que iria
achá-la esta manhã, em sua cama, pois foi para a cama que me pareceu vê-la
dirigir-se; contudo, não a achei, nem no leito, nem em outra parte qualquer; e
também ignoro o que foi feito dela; por este motivo é que estou tomada por
intensa preocupação; porém o senhor não me saberia dizer alguma coisa a esse
respeito?
A isto, o estudante retorquiu:
- Eu bem desejara ter você junto com ela,
no lugar em que a coloquei; deste modo, eu castigaria você, pela sua culpa, como
puni a sua patroa, pela culpa dela! Contudo, é certo que você não escapará de
minhas mãos, sem que eu lhe pague por suas obras; deste modo, jamais você
haverá de escarnecer de um homem, sem se lembrar de mim.
Tendo dito isto à criada da viúva,
Rinieri disse ao seu doméstico:
- Dê-lhe essas roupas, e diga-lhe que vá
levá-las à sua patroa, se o quiser.
O criado fez o que lhe foi mandado; a
doméstica apanhou as roupas, reconheceu-as; e, escutando o que fora dito,
temeu, com sinceridade, que os dois homens tivessem matado a viúva; mal conteve
o desejo de gritar; entretanto, pôs-se a chorar imediatamente; depois, vendo
que o estudante já se retirara, correu para a torre, carregando aquelas roupas.
Infelizmente, um trabalhador do campo, da
viúva, perdera, naquele dia mesmo, dois porcos; estando à procura deles, logo
após a partida do estudante, acercou se da pequena torre; perscrutando por
todos os lados, para encontrar o lugar onde os seus animais podiam estar, o
trabalhador escutou o lamentoso pranto da desventurada mulher; subiu, por isso,
pelas pedras, tanto quanto pode; e, por fim, gritou:
- Quem é que chora, aí em cima?
A mulher reconheceu a voz do trabalhador;
chamou-o pelo nome, e disse:
- Por amor de Deus! Vá procurar a minha
criada, e diga-lhe que venha para cá, para me atender.
O camponês, reconhecendo ser a viúva que
estava ali, disse:
- Deus do céu, minha senhora! Quem foi
que levou a senhora até aí? Sua criada esteve à sua procura durante todo o dia
de hoje; porém, quem haveria de supor que a senhora estivesse aí em cima?
Segurando a escada, o camponês começou a
erguê-la, da maneira como deveria ela estar, e tratou de atar-lhe alguns degraus,
que lhe pareciam mais soltos. Nesse meio tempo, chegou a criada da viúva; ela
penetrou na torre; e, não podendo mais segurar sua própria voz, bateu palmas e
pôs-se a bradar:
- Meu Deus! Minha patroa, onde está a
senhora?
Escutou-a a viúva; e, com a voz mais
portentosa que pode emitir, retrucou:
- Minha querida irmã! Estou aqui em cima,
em prantos; contudo, traga-me minhas roupas, o mais depressa que puder.
Ouvindo a viúva falar, a criada ficou
toda tranquilizada; subiu pela escada, que estava quase pronta já, graças à diligência
do camponês; e, auxiliada pelo mesmo trabalhador, atingiu a plataforma da
torre. Vendo a sua patroa, percebeu que ela não era mais um corpo humano, mas,
ao contrário, parecia antes um galho queimado do que uma pessoa; estava
abatida, derreada; permanecia em terra, nua; a criada, então, acabou enterrando
as unhas no próprio rosto, e pôs-se em seguida a chorar, como se sua patroa tivesse
falecido. Entretanto, a viúva suplicou-lhe que se calasse e a auxiliasse a
vestir-se. Notando, pela doméstica, que ninguém conhecia o seu paradeiro, senão
as pessoas que lhe tinham trazido a roupa e o camponês que ali se encontrava, a
viúva acalmou-se. Rogou-lhes que jamais contassem, pelo amor de Deus, coisa
alguma referente àquele fato.
Após muitos circunlóquios, o camponês
levantou a mulher nos seus braços, pois ela não podia andar; e carregou-a para fora
do edifício da torre. A pobre da criada, que ficara atrás, desceu com menos
cuidado do que devia; um de seus pés escorregou; e ela veio da escada ao chão,
e fraturou o osso da coxa; com a dor que sentiu, pôs-se a rugir como se fora
uma leoa. O camponês, então, pôs a viúva sobre um monte de ervas; foi ver o que
acontecera à doméstica; achando-a com a coxa fraturada, carregou-a igualmente
para aquele monte de ervas, colocando-a ao lado da viúva; esta percebeu que isto
sucedera em acrescentamento a todos os seus males; notou que exatamente a
criada, que era a pessoa por quem esperava ser mais auxiliada, fraturara a
coxa; e sentiu-se mais abatida do que jamais. Por isso, recomeçou a chorar;
chorou tanto, que o camponês, além de não poder confortá-la, também começou a
chorar.
Neste ponto, já o sol estava baixo; e, a
fim de que a noite não os surpreendesse a todos naquele ermo, o camponês atendeu
às determinações da viúva; foi até sua casa; solicitou o auxílio de dois irmãos
seus, assim como da própria esposa; os quatro voltaram, com uma tábua, às
proximidades da torre; sobre a tábua acomodaram a criada, carregando-a, desse
modo, para a casa da patroa, naquela propriedade; ali, reconfortaram a criada
com um pouco de água fresca e com palavras carinhosas; finalmente, o
trabalhador carregou-a em seus braços, até o quarto dela. A mulher do camponês
deu, à paciente, pão ensopado em água; depois, desvestiu-a, e tornou a metê-la
no leito; em seguida, ficou combinado que a viúva e sua criada fossem levadas,
durante a noite, para Florença; e assim foi feito. Ali a viúva, que tinha
muitos expedientes imaginosos, inventou uma estória completamente diferente dos
fatos realmente ocorridos; quanto ao que se passara, fosse com ela mesma, fosse
com a sua criada, ela narrou aos seus irmãos, e também às suas irmãs, assim
como a todas as demais pessoas, uma estória de feitos mirabolantes, de maneira
a levar todos a crerem que foi por uma maldosa ingerência de demônios que tudo aquilo
se passara.
Acorreram os médicos com muita solicitude;
porém esta solicitude não deixou de provocar inquietação e sofrimento à mulher,
que precisou deixar muitas vezes a própria pele colada aos lençóis; contudo, os
médicos acabaram curando-a de uma febre renitente, e também de outros males; do
mesmo modo curaram a criada, que tinha fraturado o osso de uma das coxas.
Devido a tantas peripécias, a viúva acabou
esquecendo-se de seu amante; dali para o futuro, não mais escarneceu os outros,
e, com respeito ao amor, procurou fazê-lo com o máximo de cautela.
Rinieri, sabendo que a criada ficara com
uma coxa fraturada, considerou completa a sua vingança: e, sem nenhuma outra preocupação
referente a isto, deu-se por satisfeito.
Como viram, isto foi o que sucedeu à
jovem e tola viúva, por causa das burlas e dos escárnios que costumava fazer;
ela pensou que poderia brincar com um homem de cultura, tanto quanto o fazia
com qualquer outro sujeito; não notava a infeliz que os homens, não me refiro a
todos, porém em grande parte, certamente, sabem onde é que o diabo tem o rabo.
Assim sendo, mulheres, contenham-se quanto ao ato de fazer brincadeiras; e, de
maneira especial, de as fazer com pessoas ilustradas.
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