terça-feira, 14 de julho de 2015

Decamerão - Boccaccio

Sétima Novela da Oitava Jornada do “Decamerão” de Giovanni Boccaccio
Rinieri e Helena: Pagando Gelo com Fogo
Uma vingança extraordinária!...

      - Caríssimas mulheres, frequentemente sucede que a arte é escarnecida pela própria arte; assim sendo, é prova de pouco siso alguém estar deleitando-se com o escarnecer os outros. Graças às diversas estoriazinhas contadas até agora, rimos muito das burlas praticadas; contudo, não se falou de nenhuma de que se tivesse feito vingança. Contudo, eu pretendo fazer com que vocês tenham alguma piedade de uma justa retribuição dada a uma nossa cidadã; esta cometeu uma falsidade; porém a falsidade recaiu-lhe sobre a cabeça, e quase lhe trouxe a morte. Não será sem utilidade para vocês o escutar esta novela, pois, em seguida, vocês evitarão pregar peças aos outros; e assim procedendo demonstrarão muito siso.
      Não decorreram ainda muitos anos, desde o tempo em que, em Florença, houve uma jovem, linda de corpo, de espírito orgulhoso e linhagem nobre. Possuía suficiente abundância de bens de fortuna. Tinha o nome de Helena. Com a morte de seu marido, tornou-se viúva e nunca mais desejou contrair novo casamento, pois estava apaixonada por um rapazinho, muito lindo e elegante, que ela escolhera. Livre de todas as demais preocupações, ela, com a ajuda de sua criada, na qual tinha inteira confiança, passava, com frequência, excelentes momentos de encantador deleite, junto com ele.
      Sucedeu que, naquela época, um rapaz chamado Rinieri retornou de Paris a Florença. O rapaz era um nobre de nossa cidade, que fizera um longo período de estudos em Paris; não o realizara, contudo, para depois vender a varejo a sua sabedoria, como é costume de muitos, e sim para conhecer a razão final das coisas, e ainda para lhes conhecer o motivo - coisa que, aliás, calha bem a todo gentil-homem. Ao seu regresso, viu-se ele muito homenageado em Florença, fosse por causa de sua nobreza, fosse por causa de sua sabedoria; por isso, passou a viver na cidade.
      Entretanto, como acontece com frequência, isto é, como é normal que os homens que mais conhecimentos têm de coisas profundas sejam aqueles que com mais facilidade se tornam maltratados pelo amor, Rinieri não escapou à regra. Certo dia, para divertir-se um pouco, este moço foi a uma festa; nela, surgiu-lhe aos olhos a tal Helena, inteiramente vestida de preto, como é hábito as viúvas se vestirem; portanto, ele viu-a cheia de beleza, no seu entender; além disso, achou-a tão dotada de características de agradabilidade, a ponto de, nisso, superar outra mulher qualquer que tivesse, até aquela época, contemplado; a si mesmo, julgou o rapaz que bem poderia considerar-se abençoado o homem ao qual Deus desse a graça de poder tê-la, inteiramente sua, nos braços. Rinieri fitou-a, de maneira discreta, muitas vezes; contudo, sabendo que as grandes coisas não podem ser alcançadas sem esforço, resolveu, com os seus botões, por tudo — esforço e solicitude — na tarefa de cair na simpatia daquela mulher; pretendia, deste modo, conquistar-lhe o amor; e, em consequência, desfrutar com ela as delícias da afeição.
      Jovem e viúva, a mulher não estava com os olhos postos no inferno, quer dizer, não ficava olhando para o chão; cônscia do seu valor, e achando-se ainda mais preciosa do que era, movia os olhos, com habilidade e discrição; ao movê-los, olhava ao seu redor; e descobria, sem nenhum esforço, aqueles que a fitavam, encantados; assim, ela notou a presença de Rinieri; e, rindo-se, pensou:
      - Não teria sido em vão que vim para cá; ao que parece, já apanhei um boboca pelo nariz.
      Pôs-se, então, a olhar para ele, uma vez ou outra, com o canto dos olhos; sempre que podia, ela empenhava-se em demonstrar que se interessava por ele. De outra parte, a mulher pensava que, quanto maior o número de homens que fisgasse e prendesse, com a ilusória promessa de seu prazer, tanto maior seria o prestígio de sua beleza, sobretudo aos olhos daquele ao qual ela, junto com o seu amor, dera toda aquela beleza.
      O ilustrado estudante pôs de parte todos os pensamentos filosóficos; e concentrou sua alma inteira na tal viúva; considerou que a sua própria pessoa devia ser agradável a ela; soube onde se levantava a casa em que ela residia; começou a passar em frente à sua porta, procurando sempre uma razão plausível para suas idas e vindas. A viúva, pela razão já exposta de sua própria vaidade, demonstrava vê-lo com muito agrado. Por isso, o rapaz, logo que teve uma oportunidade, acercou-se da criada da mulher, à qual revelou todo o amor que nutria pela viúva. Solicitou à criada que procedesse de modo que ele acabasse sendo o alvo das graças dela. A criada prometeu que trabalharia em seu favor; narrou tudo à patroa; esta escutou suas revelações, rindo a bom rir; em seguida, disse:
      - Viu você em que lugar este homem veio perder a cabeça que nos trouxe tão ilustrada de Paris? Pois bem! Vamos dar-lhe o que está buscando. Assim que voltar a procurá-la, você lhe dirá que eu lhe tenho amor ainda maior do que ele a mim; que, entretanto, é muito importante que eu mantenha a minha honestidade, a fim de que sempre possa estar entre as demais mulheres com a cabeça erguida; se ele é tão ilustrado como se afirma, muito maior estima me terá nestas circunstâncias.
      Oh, mulherzinha má, mulherzinha má! Ela nem mesmo supunha, minhas queridas mulheres, o que é a gente meter-se com pessoas ilustradas. Foi a criada encontrar-se com o rapaz, e fez o que a patroa ordenou que fizesse. Rinieri, então, passou a fazer-lhe súplicas mais calorosas; pôs-se a escrever cartas e a enviar presentes; todas as coisas enviadas eram recebidas; mas de lá apenas lhe vinham respostas genéricas; assim, manteve-o a viúva muito tempo de quarentena. Finalmente, ela acabou contando tudo ao apaixonado amante que tinha; muitas vezes este apaixonado ficou aborrecido com os atos que ela cometia quanto a Rinieri; algumas vezes, até manifestara ciúmes; e ela, para provar-lhe que ele chegara a suspeitar da lealdade dela, porém que o fizera sem nenhuma razão, decidiu tomar uma atitude: visto que Rinieri a solicitava cada vez mais ardentemente, ela ordenou que sua criada fosse procurá-lo. A criada atendeu. E disse ao rapaz que sua patroa não tivera, ainda, tempo de fazer algo que fosse do agrado dele; que, entretanto, a patroa já se convencera da sinceridade do seu amor; e que, lá pelas festas natalinas, que estavam perto, tinha ela a esperança de poder estar com ele. A criada acrescentou que, se ele quisesse, podia ir ao pátio da casa da viúva, onde ela, logo que pudesse, iria encontrar-se com ele.
      O rapaz, muito mais alegre do que qualquer outro homem deste mundo, foi à casa da mulher, à hora que lhe fora determinada. A criada conduziu-o, ali, a um pátio interno, onde, fechado, sem nenhuma saída, pôs-se à espera da mulher amada.
      Convidara a viúva, para aquela noite, em sua casa, o seu verdadeiro amante; e, tendo ceado com ele, toda cheia de alegria, narrou-lhe tudo quanto planejara fazer, naquela mesma noite, com respeito a Rinieri, que estava no pátio; e ajuntou:          
      - E deste modo você poderá comprovar que espécie de amor alimento por aquele em relação ao qual tanto ciúme você parece sentir.
      Cheio de prazer, o amante ouviu estas palavras, e mostrou-se ansioso por constatar, com fatos, o que a mulher, com palavras, lhe dera a compreender. Por acaso, no dia anterior, forte nevasca caíra; tudo estava coberto de neve; por isso, depois de curta permanência naquele pátio, Rinieri começou a sentir muito mais frio do que desejara; entretanto, com a esperança de poder restaurar-se muito brevemente, continuou esperando com toda a paciência. Depois de certo tempo, a mulher declarou ao amante:
      - Vamos para o meu quarto; e de lá, por uma janela, veremos o que aquele rapaz, pelo qual você se fez tão ciumento, está fazendo; deste modo, saberemos igualmente o que ele responderá à criada, que eu ordenei fosse ter com ele.
      Dirigiram-se ambos, portanto, a uma pequena janela, de onde, sem que o vissem, ouviram a doméstica, que estava em outra janela, conversar com o moço ilustrado, dizendo-lhe:
      - Rinieri, minha patroa, neste instante, é a mais entristecida das mulheres que existem neste mundo; imagine que, esta noite, veio a esta casa um de seus irmãos, que se manteve em longa palestra com ela; em seguida, quis ficar, para jantar em sua companhia; até este instante, não foi embora ainda; creio, contudo, que ele se retirará dentro de pouco tempo; por esta razão é que a minha senhora não pôde ainda ir ter com o senhor; contudo, logo ela descerá ao pátio; pede-lhe que, enquanto isto, não fique aborrecido por esperá-la.
      Rinieri, pensando que se tratava de uma comunicação verdadeira, retrucou:
      - Por favor, diga à sua senhora que não se preocupe de maneira alguma comigo, até que possa, com toda a comodidade, vir ter comigo; porém, que ela venha ter comigo o mais cedo que puder.
      A criada retirou-se da janela para dentro da casa, e foi dormir.
      Disse, então, a mulher ao seu amante:
      - E agora, que me diz? Pensa que, se eu quisesse, àquele infeliz, o bem que você teme que eu queira, iria permitir que ele continuasse lá embaixo, morrendo de frio?
      Dizendo isto, dirigiu-se para o leito com o amante, que já se dava, em boa parte, por satisfeito; ficaram ali durante muito tempo, entre carinhos e prazeres, rindo e zombando do pobre Rinieri. O rapaz, andando de uma banda para a outra, no pátio, exercitava-se para aquecer-se; além de tudo, nem sequer tinha onde sentar, nem onde se abrigar da neve que caía; assim maldizia a demora, tão prolongada, do irmão de sua amada; qualquer barulho que ele escutasse pensava logo que se tratasse de porta a abrir-se a fim de que a mulher viesse a ele; porém, esperava inutilmente. Finalmente, a viúva, por volta de meia-noite, após ter-se divertido bastante com o amante, disse-lhe:
      - Que pensa você, alma de minha alma, com respeito àquele rapaz? Que julga você que é maior: a insensatez dele ou o amor que nutro por você? Será que o frio, que eu faço Rinieri sofrer, contribuirá para que saia de seu peito o que nele entrou, anteontem, com as palavras que lhe disse?
      Retrucou o amante:
      - Coração de meu corpo, creio que sim. Percebo perfeitamente que, tanto quanto você é o meu bem e o meu descanso, assim como o meu encanto e toda a minha esperança, assim sou eu tudo isso para você.
      - Sendo assim - dizia a mulher -, trate de beijar-me várias vezes, a fim de que eu comprove que você diz a verdade.
      Abraçando-a com força, o amante beijou-a por isso não mil, porém 100.000 vezes. Depois de ficarem longamente conversando assim, a mulher disse:
      - Olhe, vamos levantar-nos um pouco, e ver se está apagado o fogo no qual aquele meu novo admirador, segundo me afirmava em suas cartas, ardia por mim.
      Levantaram-se os dois; foram para a janelinha do costume; e, olhando para o pátio, viram o pobre estudante parisiense andar como aos pulinhos sobre a neve, a fim de esquentar o próprio corpo; e saltitava ao som do ranger de seus dentes, causado pelo excesso de frio; era um castanholar de dentes tão intenso e rumoroso, que ambos jamais tinham visto coisa semelhante. Disse, então, a mulher:
      - Que diz disso, minha doce esperança? Não lhe parece que eu sei fazer com que os homens dancem, mesmo sem haver toque de cornetas, nem de cornamusas?
      Rindo, o amante confirmou:
      - Meu grande encantamento, sim. Parece-me.
      Sugeriu a mulher:
      - Quero que desçamos até a porta, lá embaixo; você ficará quieto; eu falarei com ele; vamos ver o que ele tem a dizer; pode ser que, escutando-o, não tenhamos menor divertimento do que olhando para ele.
      Mansamente, abriram a porta do quarto; desceram até a porta lá de baixo; e, ali, sem abrir a tal porta, a mulher, com voz submissa, por um orifício que havia, chamou o desventurado Rinieri. Escutando o chamado, o estudante elogiou muito a Deus; julgou que chegara a hora de penetrar na casa; acercou-se da porta; e exclamou:
      - Estou aqui, senhora. Abra, pelo amor de Deus, que estou morrendo de frio!
      Disse a mulher:
      - Oh, sim! Sei muito bem que você é por demais friorento; sei, também, que faz muito frio, pois há no pátio um pouco de neve! Também não ignoro que existem nevascas muito mais intensas em Paris. Desventuradamente, não posso abrir-lhe a porta, pois este meu maldito irmão, que ontem à noite esteve a jantar comigo, não se foi ainda; porém ele demorará a ir-se embora; logo que ele se for, irei, sem nenhuma demora, abrir-lhe a porta. Neste momento, com muita dificuldade, pude livrar-me um pouco dele, para poder vir consolar o seu espírito, para que a espera não o deixe magoado.
      Rogou, então, o moço:
      - Pobre de mim, senhora! Imploro-lhe que me abra a porta, a fim de que eu possa ficar aí dentro, bem abrigado. Há algum tempo já cai a neve mais espessa do mundo; está nevando ainda; porém, aí dentro ficarei aguardando todo o tempo que for de seu agrado.
      A mulher lamentou:
      - Pobre de mim, meu doce bem! Não posso fazer isto. Esta porta range tanto, quando é aberta, que eu logo seria descoberta pelo meu irmão, se a abrisse. Entretanto, vou dizer a ele que se vá embora, a fim de que eu volte e lhe abra a porta.
      Apressou-a o estudante:
      - Pois vá então bem rápido! Peço-lhe que ordene acender-se um bom fogo, a fim de que, logo que eu entre, possa aquentar-me. O que há é que estou morrendo de frio; nem consigo mais sentir-me a mim mesmo.
      Observou a mulher:
      - Não pode ser verdade o que diz, se é certo o que muitas vezes você me escreveu; você me disse que arde todo de amor por mim; porém estou convencida de que você pretende enganar-me. Entretanto, agora me vou. Aguarde mais um instante, e mantenha o seu bom humor.
      O amante, que escutava toda a conversa, e que sentia com isso imenso prazer, retornou à cama, junto com a viúva: naquela noite, contudo, os dois dormiram muito pouco; passaram o tempo a trocarem carinhos e a zombar do estudante.
      Rinieri, o pobrezinho, quase virou cegonha, de tanto barulho que fazia rangendo os dentes. Em dado momento, percebeu que estavam burlando dele; por várias vezes tentou abrir a porta; além disso, examinou todo o pátio, para ver se havia possibilidade de sair por algum lugar. Não achou saída; passou, por isso, a mover-se como leão enjaulado; maldizia o tempo, a malvadez da mulher, o comprimento da noite e ainda o que havia de ingenuidade em seu próprio espírito. Rebelou-se contra a viúva; aquele amor, prolongado e fervoroso, que tinha dedicado a ela, de repente se transformou em ódio cru e acerbo; procurou arquitetar, em seu espírito, a maneira de vingar-se daquela burla; já agora queria mais vingança do que desejara ter nos braços aquela mulher. Finalmente, ainda que comprida e demorada, a noite acabou aproximando-se do dia; a aurora começou a surgir; por isso, a criada da viúva, instruída pela sua patroa, desceu as escadas, abriu a porta do pátio, e, fingindo a maior das compaixões pelo rapaz, disse:
      - Que a má sorte recaia sobre o que veio aqui ontem à noite! O irmão da senhora deu-nos aborrecimentos durante toda a noite; além do mais, fez com que o senhor ficasse enregelado. Contudo, o senhor sabe o que deve fazer, afinal? Fique com a alma tranquila. O que não pôde ser feito esta noite sê-lo-á em outra ocasião; estou bem certa de que poucas coisas teriam podido acontecer, que desagradassem tanto à senhora, como isto lhe desagradou!
      Despeitado, o estudante procedeu como pessoa ilustrada que sabe que as ameaças não são outra coisa senão as armas do ameaçado; guardou, em seu próprio peito, o que a vontade não disciplinada ansiava por atirar fora; e, com voz tranquila, sem mostrar nenhuma espécie de aborrecimento, disse:
      - É verdade que hoje passei a pior noite de minha vida; porém estou convencido de que a senhora não tem qualquer culpa disso, visto que ela mesma, sentindo piedade por mim, desceu até este pátio, para desculpar-se e, ao mesmo tempo, consolar-me. Afinal, como diz você, o que não pôde acontecer hoje poderá vir a dar-se em outra ocasião; recomende-me à senhora e fique com Deus.
      Quase todo dobrado sobre si mesmo, Rinieri dirigiu-se, como pode, para sua residência; quando chegou ali, cansado e morto de sono, jogou-se à cama, para dormir. Nessa cama acordou ele com as pernas e os braços que quase não davam sinal de vida; por isso, ordenou que viessem os seus médicos; informou-os a respeito do frio a que ficara sujeito; e rogou-lhes que adotassem as providências necessárias ao restabelecimento de sua saúde. Os médicos, auxiliando-o com grandes recursos e aplicações imediatas, tiveram muito trabalho para o curar dos nervos e para os induzir a distenderem-se outra vez; não fosse pelo fato de Rinieri ser ainda jovem, e de vir em seguida o tempo dos calores, muito sofrimento teria ele de suportar; entretanto, voltou ao seu estado natural de pessoa sadia e bem disposta; manteve, contudo, em seu peito, o ódio profundo contra aquela mulher; apesar disso, continuou a fingir que estava imensamente apaixonado pela tal viúva.
      Ora, após certo tempo, sucedeu que o destino preparou de tal maneira as coisas, que o estudante pode começar a satisfazer o seu desejo de vingança. Aconteceu que o rapaz que a viúva amava deixou de dar importância ao amor que ela lhe dedicava; apaixonou-se por outra mulher e, não querendo mais dizer, nem fazer, pouco nem muito, fosse o que fosse para dar prazer à viúva, esta começou a definhar entre lágrimas e sofrimentos.
      A criada, entretanto, sentiu imensa piedade por sua patroa; não pode achar uma maneira de aliviar a dor que a mulher sentia, pela perda de seu amante; porém, vendo o estudante Rinieri passar pelas ruas, como antes, como se não lhe tivesse acontecido nada de desagradável, teve um pensamento muito tolo. Pensou que, através de alguma operação nigromântica, seria possível obrigar o amante de sua senhora a tornar a amá-la como antes; julgou que o estudante, que recebera instrução em Paris, deveria ser mestre nessa operação; e contou este seu modo de pensar à patroa. A viúva, que era intelectualmente pouco dotada, nem mesmo pensou que, se o estudante conhecesse a arte nigromântica, certamente a teria usado em seu benefício; acreditou nas palavras da criada; e de repente pediu-lhe que fosse ter com Rinieri, para perguntar-lhe se queria fazer aquelas artes a favor dela; autorizou a criada a prometer-lhe, como sinal de gratidão por isso, que ela, a viúva, faria o que maior prazer desse a ele, Rinieri. A criada desincumbiu-se dessa missão com muita inteireza e muita prestimosidade.
      Ao ouvir aquilo, o rapaz ficou muito contente; e, a si mesmo, disse:
      "Louvado sejais vós, meu Deus! É chegado o tempo em que, com o vosso auxílio, poderei impor algum padecimento à malvada mulher, pela afronta que me fez ao dar-me aquela noite como prêmio ao imenso amor que eu lhe dedicava". E disse à criada:
      - Diga à mulher que eu amo que não mais se preocupe com o caso; mesmo que o seu amante estivesse na Índia, eu faria com que ele voltasse aos pés dela, para pedir perdão de tudo o que possa ter feito contrariando os desejos dela. O modo como ela haverá de obter isto devo eu dizer a ela, quando e onde ela o determinar; dê-lhe este recado e conforte-a em meu nome.
      Deu a criada a resposta à sua patroa; ficou acertado que a viúva e Rinieri se veriam em Santa Lúcia dal Prato. Foram ali ter a mulher e o estudante, e ficaram palestrando, a sós. Ela nem mesmo se lembrou de que quase provocara a morte dele; contou-lhe, com franqueza, tudo o que lhe sucedera; esclareceu o que queria; e rogou-lhe pela salvação de sua própria alma. A isto, disse o estudante:
      - Senhora, é certo que, entre as demais coisas que aprendi, em Paris, está inclusa a nigromancia; sei tudo o que é possível conhecer a propósito desta arte; contudo, como esta arte é coisa que dá imenso desgosto a Deus, jurei, certa vez, que jamais a usaria, nem para mim, nem para os outros. Entretanto, é certo que o amor que tenho pela senhora se anima de força tão poderosa, que não sei como negar-lhe o que quer que eu realize; por isso, ainda que eu, apenas por isso, deva ir para a casa do diabo, mesmo assim estou propenso a fazer o que lhe agradar. Quero, porém, lembrar-lhe que será necessário fazer uma coisa muito menos cômoda do que a senhora possa imaginar; o ato torna-se ainda mais incômodo quando uma mulher quer chamar a si um homem, a fim de que a ame, ou quando um homem deseja o mesmo fim. Um ato semelhante não se pode realizar senão com a própria pessoa que quer beneficiar-se dele; para isso é necessário, absolutamente, que a pessoa que o pratique esteja com o espírito bem seguro do que quer, porque o ato deve ser praticado à noite, em local ermo, e sem nenhuma companhia. Tudo isto estou eu propenso a realizar, se a senhora também o quer.
      Ao que a mulher, mais apaixonada do que ilustrada, retrucou:
      - Tanto me esporeia o amor que nada há que eu não queira fazer, para recuperar o amor daquele que, sem nenhuma razão, me deixou; contudo, se isto lhe agrada, diga-me no que é que eu tenho de estar certa de mim mesma.
      O estudante, que guardava na mente a lembrança do sofrimento que padecera, e continuava alimentando o seu desejo de vingança, explicou:
      - Senhora, terei de fazer uma imagem de estanho, em nome do homem que a senhora quer de volta; em seguida, enviar-lhe-ei a imagem; será, então, importante que a senhora, assim que a lua empalideça bastante, fique inteiramente nua; depois, que entre num rio de água corrente, logo à hora do primeiro sono; em seguida, que se banhe sete vezes nessa água, junto com a aludida imagem de estanho; mais tarde, que, sempre completamente nua, se dirija para o alto de uma árvore, ou de qualquer casa alta e desabitada; que ali se volte para o norte, sempre tendo a imagem na mão; e que assim diga sete vezes certas palavras que lhe darei escritas. Assim que a senhora tiver terminado de recitar essas palavras, irão ao seu encontro duas jovenzinhas, as mais lindas que já tenha visto; elas cumprimentarão a senhora; vão perguntar-lhe o que a senhora quer que se faça. Nesta altura, a senhora dirá às tais moças, com toda a inteireza e com toda a clareza, os seus desejos; preste atenção para não dizer um nome em lugar de outro; após revelados os desejos, as jovens irão embora; então a senhora poderá descer para o local onde tiver deixado suas roupas; ali voltará a vestir-se; e retornará à sua casa. Assim, é certo que, antes de transcorrida metade da noite seguinte, já o seu amante, em prantos, lhe aparecerá, para lhe pedir perdão e misericórdia; e saiba que, a partir desse momento, jamais ele a trocará por qualquer outra mulher.
      Escutou a mulher todas estas coisas; deu-lhes inteira fé; já estava com a impressão de ter o amante nos braços; ficou um pouco alegre por isso; e disse:
      - Não duvide, Rinieri; farei bem feito quanto você mandar fazer; além do mais, tenho a maior comodidade do mundo para agir assim; tenho uma pequena propriedade, ali pelos lados do Valdarno superior, que está localizada bem junto às margens do rio; estamos, agora, em julho, e o banhar-se a gente é coisa agradável. Lembro-me, além disso, de que, não distante do rio, existe uma pequena torre desabitada; somente vez ou outra, pela escada móvel, rústica, feita de madeira de castanheiro, que lá existe, os pastores sobem até uma plataforma de terra batida, de onde podem avistar onde estão as ovelhas desgarradas; é um local solitário, fora de mão; subirei à plataforma da torre; e ali, do melhor modo possível, espero realizar o que você mandar.
      Rinieri, que conhecia perfeitamente a propriedade da mulher, e também a torre de que ela falara, ficou contente ao conhecer as intensões dela; e disse:
      - Senhora, nunca estive naquelas paragens; assim, não sei nada de sua propriedade, nem da pequena torre; entretanto, se as coisas são como a senhora afirma, não pode haver nada melhor no mundo; por isso, quando for o momento oportuno, enviar-lhe-ei a imagem e a oração; suplico-lhe, porém, que, quando o seu desejo estiver satisfeito, e quando estiver convencida de que eu a servi bem, recorde-se de mim, assim como de cumprir a promessa que me fez.
      Disse a mulher que haveria de lembrar-se e que, sem falta, cumpriria a promessa; despediu-se do estudante, e retornou à sua casa. Muito satisfeito por ver que seu conselho poderia surtir bom efeito, Rinieri fez uma imagem com características mágicas; em seguida, escreveu umas rogativas quaisquer, à guisa de oração; e, quando lhe pareceu que chegara o momento adequado, remeteu tudo à casa da viúva, informando-a de que, na noite seguinte, sem tardança, deveria ser feito o que ficara combinado. Depois, com um criado seu, sigilosamente, Rinieri foi à casa de um amigo, que ficava muito próximo da tal torre, para pôr em prática o seu próprio plano.
      Por sua vez, a mulher se pôs a caminho, em companhia da criada, e foi para a sua propriedade; logo que a noite desceu, ela fingiu ir para a cama; mandou que a criada fosse dormir; e, na hora do primeiro sono, deixou a casa silenciosamente; foi na direção da pequena torre que estava à margem do Arno; quando chegou ali, examinou com o olhar os arredores; não viu, nem ouviu, fosse lá o que fosse; despiu-se, então, ocultando as roupas sob uma pequena moita; foi para o rio, em cujas águas se banhou sete vezes, com a imagem; depois, sempre inteiramente nua e com a imagem na mão, voltou ao caminho da torre.
      De sua parte, Rinieri, logo que a noite chegou, junto com seu criado, foi colocar-se entre os salgueiros e outras árvores, ficando, assim, oculto bem junto da torre. Desse modo assistiu ao que a viúva fez; quando ela passou bem próximo a ele completamente nua, percebeu ele que, com a brancura de sua pele, ela vencia a escuridão da noite; também observou os seios e outras partes do corpo dela; considerando tudo muito lindo, pensou no que aquelas belas formas deveriam transformar-se em breve; e, na verdade, sentiu alguma pena. Por sua vez, o aguilhão da carne o acometeu de tal modo, que ele sentiu desejos de deixar o seu esconderijo, ir agarrá-la e forçá-la a satisfazer-lhe os desejos; esteve, mesmo, quase a ser vencido pelos seus instintos. Entretanto, veio-lhe à memória quem ele era, assim como a afronta que recebera, a razão pela qual lhe fora imposta e a pessoa que lha impusera; assim, tornou a acender-se em seu coração o ódio, destruindo a piedade e o apetite sensual; e ele conservou-se firme em seu propósito, e deixou que ela prosseguisse.
      A mulher subiu ao mais alto da torre; voltou-se para o norte; e pôs-se a recitar as palavras da oração enviada pelo estudante. Passado pouco tempo, o mesmo estudante entrou em silêncio na torre, e, com muito cuidado, retirou aquela escada que levava à plataforma lá de cima, onde estava a mulher; e ficou à espreita, para ver o que a mulher diria e faria. Disse a mulher sete vezes aquela oração, e começou a aguardar a chegada das jovenzinhas; a espera, contudo, foi demasiadamente longa; além disso, a noite estava muito mais fria do que ela apreciaria que estivesse; finalmente, ela viu surgir a aurora; ficou muito tristonha, por notar que não acontecera o que o estudante lhe afirmara que aconteceria; e pensou: "Temo que este rapaz tenha querido dar-me uma noite igual à que eu o obriguei a passar; se, contudo, ele me fez isto, mal terá sabido vingar-se, pois esta noite não foi idêntica, quanto à duração, a um terço daquela que ele atravessou; além do mais, o frio da noite dele foi mais intenso".
      Para que a luz do dia não a surpreendesse naquela plataforma, quis descer da torre; constatou, porém, que a escada não mais estava ali. Então, quase como se o mundo tivesse desaparecido, ou cedido sob seus pés, o seu ânimo forte deixou-a; vencida, caiu no chão de terra batida da plataforma da torre. Ao voltarem-lhe as forças, ela pôs-se a chorar e a lamentar-se; notou que aquilo teria sido obra do estudante; e, desse modo, passou a censurar-se a si própria pelo mal que causara aos outros; do mesmo modo se censurou por ter confiado demais no rapaz estudante, que ela deveria ter, realmente, como inimigo seu; em tais lamentações e reproches ela perdeu muito tempo. Em seguida, procurando observar se havia alguma saída por onde pudesse descer, e notando que não havia, voltou a chorar e entrou em um amargo pensamento, dizendo a si mesma: "Oh! como sou infeliz! Que haverão de dizer os meus irmãos, os meus parentes, os meus vizinhos e, em geral, todos os florentinos, quando se espalhar a notícia de que fui encontrada nua neste local? A minha honestidade, tida sempre em ponto alto, mostrará a sua falsidade. E, mesmo que eu pretenda achar ou apresentar desculpas mentirosas, que, em todo caso, poderia achar, aquele maldito estudante, que muito bem sabe o que planeja realizar, não permitirá que eu minta. Ai! desventurada que sou! De uma só vez, acabarei por perder o meu amante mal amado e a minha honra!" Tanta foi a dor que sentiu, depois disto, em sua alma, que esteve a pique de jogar-se do alto daquela torre ao chão. Contudo, o sol já ia um tanto alto; ela acercou-se de um dos muros da torre, e, por cima dele, olhou para fora, na esperança de ver algum mocinho pastor, com as suas ovelhas, próximo dali, ou que viesse aproximando-se daquele lugar; em caso positivo, talvez pudesse mandar avisar a criada; porém o que sucedeu foi que o estudante, que dormira junto a uma moita, despertou; ele viu-a, e ela também o viu; então, indagou o rapaz:
      - Bom dia, senhora! As mocinhas já chegaram?
      Vendo-o e escutando-o, a mulher voltou a chorar copiosamente; rogou-lhe que entrasse na torre, para que ela pudesse falar-lhe. O rapaz mostrou-se muito atencioso, com respeito a isto. A viúva deitou-se de borco, no chão da plataforma da torre; deixou pender, para baixo, somente a cabeça, no buraco de entrada, de onde se retirara a escada; e, sempre em prantos, disse:
      - Rinieri, por certo, se é verdadeiro que eu lhe dei uma péssima noite, você já se vingou muito bem: e isto porque, ainda que estejamos em julho, eu ficando aqui toda a noite, completamente sem roupas, pensei estar enregelando-me; além do mais, tanto já chorei, fosse pela burla que lhe preguei, fosse pela minha estultície, que me levou a acreditar em suas palavras, que nem mesmo sei como é que tenho ainda olhos na cabeça. Assim sendo, rogo-lhe, não por amor a mim, visto que você não deve mais amar-me, e sim por amor à sua reputação de gentil-homem: seja bastante, como vingança da injúria que lhe fiz, isto que até o presente você me está fazendo. Faça com que eu receba minhas roupas, e conceda que eu desça daqui. Não me tire o que, depois, mesmo querendo-o você não poderá mais devolver-me, isto é, minha honra. Se naquela noite não consenti que você estivesse comigo, agora posso, quando bem lhe convier, ou for de seu agrado, dar-lhe muitas noites, a troco daquela única. Acredito que isto será bastante para você; como sucede com os homens valorosos, fique satisfeito com a circunstância de já ter mostrado, a mim, que sabe e pode vingar-se; não queira medir suas forças contra a minha pessoa, que sou apenas uma fraca mulher; nenhuma glória existe para a águia que vence uma pomba; por isso, pelo amor de Deus e de você mesmo, compadeça-se de mim.
      O rapaz mexia e remexia, em seu espírito, com indignação, a injúria que recebera, e da qual se recordava ainda com muita amargura; e, vendo a mulher em prantos e a suplicar, sentia ao mesmo tempo prazer e desgosto; prazer pela sua vingança, que quisera alcançar, mais do que outra coisa qualquer deste mundo; e desgosto, pela compaixão que o seu senso de humanidade o levava a nutrir pela infeliz. O senso de humanidade, contudo, não pôde vencer a severidade do seu desejo de vingança. E, por isso, ele disse:
      - Senhora Helena, naquela noite, na verdade, eu não soube banhar de lágrimas os meus pedidos; por outro lado, não os pude, também, tornar melosos, como agora você consegue fazer os seus; assim, naquela noite, no pátio de sua residência, onde, em plena nevasca, eu ia morrendo de frio, aquelas minhas súplicas não me deram a bênção de ver-me recolhido, por você, a um local coberto; ao contrário, tivesse você ouvido os meus rogos, não me custaria nada, agora, ouvir suas súplicas. Entretanto, se você se preocupa tanto, agora, com a sua honra — muito mais do que se preocupou no passado —, e se lhe é desagradável estar aí, completamente nua, faça seus rogos àquele homem a cujos braços você se aninhou; naquela mesma noite, você não sentiu remorsos, se você se lembra bem, de estar com ele, completamente nua, ainda sabendo que eu estava no pátio de sua casa, rangendo os dentes e amassando neve; peça, agora, que ele a auxilie; que lhe entregue suas roupas; que a faça descer pela escada; tente inocular, no seu coração, a ternura pela sua honra, a qual você nunca hesitou, nem agora, nem em 1.001 vezes, em pôr em risco. Por que você não o chama, a fim de que ele a auxilie? A quem é que ele pertence, senão a ele mesmo? Você é dele. De que coisas cuida ele, ou ajuda, se não cuida nem ajuda a você? Chame-o! Deixe de ser tola! Procure comprovar se o amor que você tem por ele, e se o seu juízo, ligado ao dele, podem libertá-la de minha estupidez; pois você não indagou, a ele, o que achava ele maior: se a minha estultície, ou se o amor que você alimentava por ele? Além disso, não procure agora ser atenciosa para comigo, ofertando-me o que eu não quero, e que, afinal, não poderia negar-me, se eu o quisesse; guarde para o seu amante suas noites, se é que poderá sair viva daqui; sejam suas, e dele, essas noites; quanto a mim, fiquei sobejamente satisfeito com uma só; basta-me ter sido ridicularizado uma vez. Noto que, mesmo agora, você usa de sua astúcia ao falar-me; procura elogiar a minha benevolência; chama-me de gentil-homem; diz que sou pessoa de valor; e tudo isto você o afirma para que eu, convencido e bondoso, me contenha, deixando de castigá-la pela sua malvadeza. Entretanto, seus elogios, agora, não mais turvarão a vista do intelecto, ao contrário do que já o conseguiram as suas promessas desleais. Conheço-me. Aliás, não aprendi tanto a meu respeito enquanto estive estudando em Paris, como, em apenas uma noite, você obrigou-me a aprender, no pátio de sua casa. Pressupondo-se, porém, que eu seja bondoso, a verdade é que você não é das mulheres para as quais a bondade deva surtir efeito. O fim da penitência, para as feras selvagens, como você - e, também, o fim da vingança -, costuma ser a morte; enquanto, para os homens, deve ser bastante o que você lhes disse. Ainda que eu não seja águia, noto bem que você não é uma pomba, mas antes uma serpente venenosa; por isso, como seu inimigo antiquíssimo, com o maior potencial de ódio e com toda a força de meu ser, quero persegui-la. Afinal, tudo o que lhe faço não pode ser, exatamente, chamado de vingança: isto constitui somente um castigo; a vingança vence a ofensa, e, em tal caso, não cairá sobre sua cabeça. Quisesse eu vingar-me, considerando o jogo em que você atirou a minha alma, não ficaria contente somente em tolher-lhe a existência, nem tolhendo cem vidas iguais à sua; tolhendo-lhe a existência, não faria senão matar uma reles mulherzinha, perversa e condenada. E para que deverei tolher-lhe esse palminho de cara - dessa cara que alguns anos mais serão suficientes para arruinar, enchendo-a de rugas -, já que, neste instante, você é a pessoa mais infeliz que existe? Não pode você fazer morrer um homem valoroso (como você, há pouco, me qualificou), cuja existência será, um dia, mais útil ao mundo do que 100.000 vidas de mulheres iguais a você o poderão ser, durante todo o tempo de duração do mundo. Portanto, com esta angústia que você sente, ensino-lhe o que significa zombar de homens que têm algum sentimento - o que quer dizer zombar de pessoas ilustradas; desse modo, dou-lhe motivo para você jamais cair em tal besteira, se puder sair viva disto. Entretanto, se está com tanta vontade de descer, por que motivo não se joga ao chão? Se se atirar, você poderá, de uma só vez, com auxílio de Deus, e partindo o seu pescoço, deixar o castigo no qual você imagina estar, e fazer-me o homem mais venturoso do mundo. Bem. Não vou dizer-lhe, agora, mais coisas. Soube realizar tudo de tal modo que a convenci a subir a esta torre; saiba você, agora, fazer tudo de tal maneira que possa descer daí, como pode burlar-se de mim.
      Enquanto dizia estas palavras o estudante, a desventurada mulher continuava a chorar, e passava-se o tempo, de maneira que o sol se tornava cada vez mais alto. Entretanto, quando ela percebeu que ele se calara, disse:
      - Escute aqui, homem cruel! Se aquela noite maldita lhe foi tão amarga, e se o meu erro pareceu-lhe tão grande que não chegam a provocar-lhe a menor piedade a minha jovem beleza, nem as lágrimas amargas que verto, nem minhas humildes súplicas, permita, ao menos, que o comova, e que reduza um pouco a sua inflexibilidade, este meu ato: o de eu ter outra vez confiado em você; o de eu revelar-lhe todos os meus segredos; com isto, dei vida à sua vontade de vingança pelo meu pecado; é certo que, não tivesse outra vez confiado em você, você não disporia de nenhum meio para se vingar, coisa que você demonstra bem que desejou com ansiedade. Por amor de Deus! Ponha, por isso, a ira de lado. Dê-me o seu perdão. Se me der seu perdão e me fizer descer daqui, estou disposta a deixar de vez aquele rapaz cruel, passando a ter somente você por amante e senhor, ainda que você lamente a minha beleza e demonstre nutrir bem pouco apreço por ela. Sei que minha beleza, ainda que talvez não seja diferente da beleza de outras mulheres, deveria ser apreciada sempre, se mais não fosse somente pela circunstância de servir o capricho, o divertimento e o prazer de juventude dos homens; ora, você não é velho. Ainda que eu esteja sendo tratada do modo mais cruel, por você, nem assim posso crer que você queira que eu tenha morte tão desonrosa, como a que eu teria se me jogasse daqui de cima, por angústia, diante de seus olhos, olhos estes que, quando você não era tão mentiroso quanto depois se tornou, tantas vezes apreciaram contemplar-me. Escute-me! Tenha um pouco de consideração por mim, por amor de Deus e por compaixão! O sol já se faz quente demais; além disto, o frio muito violento desta noite muito mal me fez; por isto, o calor de agora está-me causando muito incômodo.
      Ao que o estudante, que com imenso deleite permitia que ela falasse, e que a escutava com muito prazer, retrucou:
      - Senhora, sua fé não é entregue agora às minhas mãos, em decorrência de algum amor que você alimente por mim, e sim pela sua intenção de recuperar o que perdeu; assim, você não merece outra coisa senão o mal maior. Você pensa de uma maneira simplesmente amalucada, se imagina que este foi o único modo que achei para contentar o desejo de vingar-me, na ocasião oportuna, daquilo que você me fêz. Eu já imaginara mil outras maneiras; 1.001 armadilhas eu armei aos seus pés, enquanto fingia continuar amando-a, após aquela noite; esteja certa de que não transcorreria muito tempo, sem que você caísse num dos laços que lhe preparei, se isto que está sucedendo agora por acaso não ocorresse. O que não se discute é que você não poderia cair num laço que maior pena e maior vergonha lhe provocasse do que este em que caiu; e observe que eu adotei esta armadilha, não para lhe dar maior comodidade, mas para me satisfazer mais cedo. Mesmo que tivessem falhado todos os meus projetos de vingança, jamais eu deixaria de recorrer à pena; com ela, haveria de escrever tanto, e de tal maneira, a seu respeito, que você, lendo os escritos, começaria a desejar mil vezes nunca ter nascido. A pena tem forças muito maiores do que supõem os que, por experiência própria, não as sentiram. Deus que me mantenha contente com esta vingança que estou alcançando agora contra você: que me mantenha contente até o fim, como me fez satisfeito no principio. Juro, porém, que, se ele não tivesse disposto assim, eu escreveria sobre você coisas tais, que você sentiria vergonha não apenas das demais pessoas, como ainda de você própria; a tal ponto que, não mais podendo fitar-se a si mesma, sem sentir horror, acabaria por arrancar os próprios olhos. Por isso, não reproche ao mar o fato de o riozinho ter-lhe aumentado as águas. Com respeito ao seu amor, ou ao fato de você vir a ser minha, não tenho nenhuma preocupação, como já afirmei; continue sendo, portanto, se o desejar, e se puder, daquele de quem tem sido; a esse sujeito, odiei-o no passado, tanto quanto agora o estimo, em vista do que ele fez contra você. Vocês, mulheres, andam apaixonando-se por aí, e suspirando pelo amor dos jovens, somente porque vocês os vêem com as carnes mais vivas e as barbas mais negras; vocês fitam-nos quando eles andam eretos, e quando, com desempenho, bailam e competem nos torneios; tudo quanto têm os rapazes já o tiveram aqueles que são mais adiantados em idade; e os mais idosos já conhecem aquilo que os mais jovens ainda devem aprender. Além disso, vocês, mulheres, gostam dos moços, por achá-los melhores cavaleiros, e capazes, por isso, de percorrer maior número de milhas, em suas jornadas, do que os homens mais maduros. Decerto, confesso que os rapazes movem com mais força o próprio corpo, depois das lides do amor; porém os homens mais maduros, tendo maior experiência, conhecem melhor os lugares onde estão as pulgas; e não há dúvida de que se deve dar preferência ao pouco e saboroso do que ao muito e sem sabor; o trote intenso cansa e derreia qualquer pessoa, por mais moça que ela seja, enquanto o marchar suave, ainda que faça a gente atingir um pouco mais tarde o fim almejado, faz com que a gente ali chegue, ao menos, descansado. Vocês, mulheres, como são animais sem inteligência, não notam a soma da maldade que, sob aquele pouco de aparência, está oculta. Os rapazes não se satisfazem com uma mulher; querem todas as que vêem, e consideram-se merecedores de todas; o amor dos rapazes não pode ser estável; e disso você pode agora ser a melhor testemunha, por experiência própria. Estão convencidos os jovens de que são merecedores de reverência e de carinhos, da parte das mulheres; e desconhecem outra glória mais elevada do que vangloriarem-se das mulheres que já possuíram; este erro dos rapazes, que falam demais, já levou muitas mulheres a dar preferência aos frades, que não revelam nada. Ainda que você afirme que, dos seus amores, ninguém nunca veio a saber de coisa alguma, senão a sua criada e eu, o certo é que você pouco sabe, e emprega mal a sua crença, se acredita nisso. "O bairro dela, como o seu, quase não tem outro assunto senão os seus amores; contudo, a pessoa a quem os falatórios se referem é sempre a última a conhecê-los. Os rapazes ainda roubam as mulheres, enquanto os mais amadurecidos lhes dão presentes. Portanto, você, que escolheu mal, continue pertencendo àquele ao qual se entregou; no que diz respeito a mim, de quem você zombou, permita que eu fique com os outros, pois achei mulher muito superior a você, e que me conheceu muito melhor do que você o fez. Para que você possa levar, ao outro mundo, uma certeza do desejo de meus olhos, maior ainda do que parece que você recebe de minhas palavras, jogue-se daí de cima; segundo penso, sua alma será logo recebida nos braços do diabo; e poderá então comprovar se meus olhos ficaram perturbados, ou não, ao ver você tombar pesadamente aí de cima. Como, entretanto, você não quererá dar-me essa alegria, afirmo-lhe que, se o sol começar a queimar o corpo, é bom que você se lembre do frio que me fez padecer; se, além disso, você o misturar com esse calor, certamente perceberá que o sol está bem temperado.
      Desconsolada, a mulher, notando que as palavras do estudante se dirigiam sempre para um fim cruel, voltou a chorar, e disse:
      — Aqui está. Já que nada faz com que você se compadeça de mim, tenha então piedade, pelo amor que você tem àquela mulher mais ilustrada e mais ajuizada do que eu, que diz ter encontrado, e pela qual afirma que é querido; pelo amor dessa mulher, dê-me seu perdão; e entregue-me a minha roupa, para que eu possa tornar a vestir-me; em seguida, permita que eu desça daqui.
      O estudante pôs-se a rir, então; e, percebendo que já transcorrera a hora terceira, há muito tempo, retrucou:
      — Aqui está. Agora não mais sei dizer não, visto que você me dirigiu um rogo por tal mulher; diga em que lugar pôs as roupas; irei buscá-las; e em seguida permitirei que você desça daí.
      A mulher deu crédito a estas palavras, e sentiu-se mais animada: assim, indicou ao rapaz o lugar onde escondera as roupas. O estudante, deixando a torre, mandou que o seu criado não se ausentasse dali, e que, pelo contrário, se mantivesse por perto; do mesmo modo mandou que fizesse o possível a fim de que nenhuma pessoa penetrasse na torre, até o instante em que ele retornasse ali. Depois de dar estas recomendações, Rinieri partiu para a casa do seu amigo; ali, com muita folga, almoçou; depois, quando julgou conveniente, foi fazer a sesta. Permanecera a mulher lá no topo da torre; e, ainda que se sentisse um pouco reconfortada, pela ilusória esperança de que as roupas lhe seriam entregues, deixou a sua posição deitada, para sentar-se, ainda que sempre resmoneando queixas; encostou-se à parte do muro onde havia um pouco de sombra; e, cheia a cabeça de amargos pensamentos, pôs-se a esperar. Ora pensando e ora chorando, ora esperando e ora desesperando, quanto à volta do estudante com as suas roupas — e pulando, de quando em quando, de um pensamento a outro —, adormeceu. A dor vencera-a, e, além disto, não dormira um só momento na noite anterior. O sol, que estava muito quente, tendo já atingido as alturas do meio-dia, feria diretamente, e a descoberto, o corpo tenro e delicado da desventurada mulher; além disso, batia-lhe na cabeça, toda descoberta, com força tal, que não apenas parecia cozinhar-lhe as carnes sobre as quais dardejava, como ainda as abria em chagas miúdas e dolorosas; tão grande foi a ardência do sol, que a obrigou a acordar-se, ainda que estivesse profundamente adormecida. Sentiu que estava cozinhando-se ao sol; moveu-se um pouco; movendo-se, pareceu-lhe que toda a pele cozida estava abrindo-se e despegando-se do corpo; era o mesmo que a gente vê suceder com um pergaminho queimado, havendo pessoa que o distenda. Doía-lhe, também, com tanta força a cabeça, que tinha a impressão de estar prestes a partir-se; coisa que, afinal, não era de espantar. O chão da plataforma tinha-se aquecido tanto, que ela não podia pousar nele nem os pés nem outra parte qualquer do corpo; não lhe sendo possível estar parada, andava de um lado para outro, sempre em prantos. Além disso, não soprando nenhum vento, havia bandos de moscas e tavões; moscas e tavões sentavam-se em suas carnes em chagas; e mordiam-nas com tanta voracidade, que cada picada parecia, à desventurada criatura, um golpe de esporão. Por isso, ela não parava de mover as mãos em volta do próprio corpo; e movia-as sempre maldizendo-se a si própria, a sua existência, o seu amante, e também o estudante vindo de Paris.
      Deste modo a mulher foi sendo angustiada, martirizada, pungida, pelo incalculável calor solar, pelas moscas, pelos tavões, e, também, além de tudo, pela fome; entretanto, a tortura maior era-lhe imposta pela sede, junto com 1001 pensamentos amargos. Em certo momento, ela levantou-se; procurou olhar os arredores, para verificar se, por perto, havia pessoa que lhe pudesse dar ajuda; agora, estava disposta a tudo, houvesse o que houvesse, contanto que viesse alguém, a fim de que ela pudesse chamar e pedir ajuda. Entretanto, também isto a sua sorte adversa lhe negara. Os trabalhadores do campo tinham-se retirado todos daquelas terras, por causa do excessivo calor; além do mais, naquele dia, nenhum deles fora trabalhar nas cercanias da torre, mesmo porque a maioria dos homens estava batendo os seus cereais ao lado de suas próprias casas. Por isso, a mulher, lá no alto da torre, não via nem ouvia fosse o que fosse, senão as cigarras; via, também, o rio Arno que, acendendo-lhe o desejo de beber-lhe as águas, em lugar de lhe diminuir a sede, acentuava-a ainda mais. Via, ainda, diversos pontos, a distância, bosques, sombras e casas, e tudo, igualmente, lhe trazia angústias, por lhe provocar desejos.
      Que haveremos de dizer mais da infeliz viúva? O sol, que dardejava do alto, e o abrasamento do chão da plataforma da torre, por baixo, tudo combinado com as picadas de moscas e tavões, de todas as partes, tinham-na colocado em estado irreconhecível. Ela, que, na noite anterior ainda, vencia a escuridão com a brancura de sua pele, estava agora com o corpo inteiramente vermelho como uma romã; toda a pessoa mostrava-se salpicada de sangue; e poderia parecer, a quem a visse naquelas condições, a mulher mais feia do mundo.
      Assim ela ficou, no alto da torre, sem conselho nem esperança; pusera-se mais à espera da morte, do que de outra coisa qualquer; e, enquanto isso se passava, já decorrera a meia da hora nona.
      Após a sua sesta, o estudante levantou-se da cama; recordou-se da viúva; e, para constatar o que se passara com ela, regressou à torre; ali chegando, ordenou que seu criado fosse almoçar, pois estava ainda em jejum. A mulher escutou a voz do rapaz; ainda que abatida e derreada pelo sofrimento, acercou-se da abertura que dava para o chão, e de onde fora tirada a escada; sentou-se ali, chorando, e pôs-se a dizer:
      - Rinieri, bem que você já completou sua vingança, além de toda expectativa; se é verdade que eu deixei você enregelar-se, uma noite inteira, no pátio de minha casa, você já conseguiu que eu, de dia, ficasse inteirinha assada; aliás, estou mesmo queimando-me toda; acresce ainda que estou morrendo de sede e de fome. Assim sendo, peço-lhe, em nome de Deus, que suba até aqui; visto que o coração não me auxilia a dar morte a mim mesma, dê-me você esta morte, que eu quero mais do que qualquer outra coisa no mundo, tão insuportável é a angústia que eu sinto. Se não desejar conceder-me esta graça, ordene ao menos que me tragam um copo de água, para que eu possa umedecer os lábios, aos quais já não bastam minhas lágrimas, tão intensa é a secação, e tão intolerável é a queimação que sinto dentro de meu corpo.
      Pela voz, o estudante aquilatou o grau de fraqueza da mulher que falava; viu, ainda, parte do corpo dela completamente tostado pelo sol; tudo isto, e mais as humildes súplicas que ela fizera, levou-o a sentir um pouco de piedade pela viúva; apesar disso, retrucou:
      - Perversa mulher, você não morrerá pelas minhas mãos; haverá de morrer pelas suas, se sentir vontade de morrer; terá, de minha parte, para mitigar o calor, tanta água quanto foi o fogo que eu recebi, de sua parte, para aliviar o frio que eu sentia, naquela noite. Lamento não poder deixar de ser assim; mais saiba que a enfermidade que adveio do meu frio precisou ser curada com o calor do esterco fedorento, enquanto a doença que advier do seu calor poderá ser curada com a perfumada água de rosas; e, tanto quanto eu estive quase para perder os nervos e a vida, assim também você, escorchada por este calor, passará a ficar tão bela quanto a serpente, quando muda de pele, deixando a antiga.
      - Oh, desgraçada que eu sou! - bradou a mulher. - Deus que conceda tais belezas, adquiridas deste modo, às pessoas que me desejam mal! Você, porém, que é mais cruel do que qualquer fera que eu conheço, como pode ter coragem de me torturar desta maneira? Que mais poderia eu esperar de sua parte, ou da parte de qualquer outro sujeito, se tivesse eu matado toda a sua parentela por meio de tormentos muito cruéis? Na verdade, ignoro que possa haver crueldade maior do que esta, que pudesse ser infligida a um traidor que tivesse entregue ao massacre uma cidade inteira. Aqui estou, onde você me colocou, torrando-me ao sol, e lutando contra as moscas; além do mais, nem mesmo um copo de água você quer dar-me; e observe-se que, aos assassinos, aos condenados pelo tribunal, com frequência lhes é dado até vinho, quando vão a caminho da execução da pena capital, se eles o pedirem. Agora, entretanto, como vejo você aí, impassível na sua atroz crueldade, sem que nenhuma piedade tenha o poder de mover-lhe o coração, diante de minha tortura, vou preparar-me, pacientemente, para receber a morte; assim, terá Deus piedade de minha alma; a ele rogo que considere, com olhos de justiça, esta operação que você realiza.
      Tendo dito estas palavras, a viúva arrastou-se, com imensa dificuldade e enorme sofrimento, para o meio da plataforma; não possuía sequer a mínima esperança de sobreviver a tão abrasador calor; não somente uma vez, e sim mil vezes, ela pensou que ia morrer de sede, além de estar sob o peso de tantos outros sofrimentos; ainda assim, conseguia chorar alto e lamentar-se de seus padecimentos.
      Contudo, tendo vindo já a tarde, e crendo ter feito o bastante, o estudante ordenou que fossem apanhadas as roupas da viúva; resolveu que essas roupas fossem embrulhadas na capa de seu criado; e partiu, com elas, para a casa da desventurada mulher; ali, achou a criada da viúva, sentada à porta da rua, desconsolada, aflita, e sem saber que providência tomar. Rinieri disse-lhe:
      - Bondosa mulher, onde está sua patroa?
      Ao que a criada respondeu:
      - Senhor, não sei. Pensei que iria achá-la esta manhã, em sua cama, pois foi para a cama que me pareceu vê-la dirigir-se; contudo, não a achei, nem no leito, nem em outra parte qualquer; e também ignoro o que foi feito dela; por este motivo é que estou tomada por intensa preocupação; porém o senhor não me saberia dizer alguma coisa a esse respeito?
      A isto, o estudante retorquiu:
      - Eu bem desejara ter você junto com ela, no lugar em que a coloquei; deste modo, eu castigaria você, pela sua culpa, como puni a sua patroa, pela culpa dela! Contudo, é certo que você não escapará de minhas mãos, sem que eu lhe pague por suas obras; deste modo, jamais você haverá de escarnecer de um homem, sem se lembrar de mim.
      Tendo dito isto à criada da viúva, Rinieri disse ao seu doméstico:
      - Dê-lhe essas roupas, e diga-lhe que vá levá-las à sua patroa, se o quiser.
      O criado fez o que lhe foi mandado; a doméstica apanhou as roupas, reconheceu-as; e, escutando o que fora dito, temeu, com sinceridade, que os dois homens tivessem matado a viúva; mal conteve o desejo de gritar; entretanto, pôs-se a chorar imediatamente; depois, vendo que o estudante já se retirara, correu para a torre, carregando aquelas roupas.
      Infelizmente, um trabalhador do campo, da viúva, perdera, naquele dia mesmo, dois porcos; estando à procura deles, logo após a partida do estudante, acercou se da pequena torre; perscrutando por todos os lados, para encontrar o lugar onde os seus animais podiam estar, o trabalhador escutou o lamentoso pranto da desventurada mulher; subiu, por isso, pelas pedras, tanto quanto pode; e, por fim, gritou:
      - Quem é que chora, aí em cima?
      A mulher reconheceu a voz do trabalhador; chamou-o pelo nome, e disse:
      - Por amor de Deus! Vá procurar a minha criada, e diga-lhe que venha para cá, para me atender.
      O camponês, reconhecendo ser a viúva que estava ali, disse:
      - Deus do céu, minha senhora! Quem foi que levou a senhora até aí? Sua criada esteve à sua procura durante todo o dia de hoje; porém, quem haveria de supor que a senhora estivesse aí em cima?
      Segurando a escada, o camponês começou a erguê-la, da maneira como deveria ela estar, e tratou de atar-lhe alguns degraus, que lhe pareciam mais soltos. Nesse meio tempo, chegou a criada da viúva; ela penetrou na torre; e, não podendo mais segurar sua própria voz, bateu palmas e pôs-se a bradar:
      - Meu Deus! Minha patroa, onde está a senhora?
      Escutou-a a viúva; e, com a voz mais portentosa que pode emitir, retrucou:
      - Minha querida irmã! Estou aqui em cima, em prantos; contudo, traga-me minhas roupas, o mais depressa que puder.
      Ouvindo a viúva falar, a criada ficou toda tranquilizada; subiu pela escada, que estava quase pronta já, graças à diligência do camponês; e, auxiliada pelo mesmo trabalhador, atingiu a plataforma da torre. Vendo a sua patroa, percebeu que ela não era mais um corpo humano, mas, ao contrário, parecia antes um galho queimado do que uma pessoa; estava abatida, derreada; permanecia em terra, nua; a criada, então, acabou enterrando as unhas no próprio rosto, e pôs-se em seguida a chorar, como se sua patroa tivesse falecido. Entretanto, a viúva suplicou-lhe que se calasse e a auxiliasse a vestir-se. Notando, pela doméstica, que ninguém conhecia o seu paradeiro, senão as pessoas que lhe tinham trazido a roupa e o camponês que ali se encontrava, a viúva acalmou-se. Rogou-lhes que jamais contassem, pelo amor de Deus, coisa alguma referente àquele fato.
      Após muitos circunlóquios, o camponês levantou a mulher nos seus braços, pois ela não podia andar; e carregou-a para fora do edifício da torre. A pobre da criada, que ficara atrás, desceu com menos cuidado do que devia; um de seus pés escorregou; e ela veio da escada ao chão, e fraturou o osso da coxa; com a dor que sentiu, pôs-se a rugir como se fora uma leoa. O camponês, então, pôs a viúva sobre um monte de ervas; foi ver o que acontecera à doméstica; achando-a com a coxa fraturada, carregou-a igualmente para aquele monte de ervas, colocando-a ao lado da viúva; esta percebeu que isto sucedera em acrescentamento a todos os seus males; notou que exatamente a criada, que era a pessoa por quem esperava ser mais auxiliada, fraturara a coxa; e sentiu-se mais abatida do que jamais. Por isso, recomeçou a chorar; chorou tanto, que o camponês, além de não poder confortá-la, também começou a chorar.
      Neste ponto, já o sol estava baixo; e, a fim de que a noite não os surpreendesse a todos naquele ermo, o camponês atendeu às determinações da viúva; foi até sua casa; solicitou o auxílio de dois irmãos seus, assim como da própria esposa; os quatro voltaram, com uma tábua, às proximidades da torre; sobre a tábua acomodaram a criada, carregando-a, desse modo, para a casa da patroa, naquela propriedade; ali, reconfortaram a criada com um pouco de água fresca e com palavras carinhosas; finalmente, o trabalhador carregou-a em seus braços, até o quarto dela. A mulher do camponês deu, à paciente, pão ensopado em água; depois, desvestiu-a, e tornou a metê-la no leito; em seguida, ficou combinado que a viúva e sua criada fossem levadas, durante a noite, para Florença; e assim foi feito. Ali a viúva, que tinha muitos expedientes imaginosos, inventou uma estória completamente diferente dos fatos realmente ocorridos; quanto ao que se passara, fosse com ela mesma, fosse com a sua criada, ela narrou aos seus irmãos, e também às suas irmãs, assim como a todas as demais pessoas, uma estória de feitos mirabolantes, de maneira a levar todos a crerem que foi por uma maldosa ingerência de demônios que tudo aquilo se passara.
      Acorreram os médicos com muita solicitude; porém esta solicitude não deixou de provocar inquietação e sofrimento à mulher, que precisou deixar muitas vezes a própria pele colada aos lençóis; contudo, os médicos acabaram curando-a de uma febre renitente, e também de outros males; do mesmo modo curaram a criada, que tinha fraturado o osso de uma das coxas.
      Devido a tantas peripécias, a viúva acabou esquecendo-se de seu amante; dali para o futuro, não mais escarneceu os outros, e, com respeito ao amor, procurou fazê-lo com o máximo de cautela.
      Rinieri, sabendo que a criada ficara com uma coxa fraturada, considerou completa a sua vingança: e, sem nenhuma outra preocupação referente a isto, deu-se por satisfeito.
      Como viram, isto foi o que sucedeu à jovem e tola viúva, por causa das burlas e dos escárnios que costumava fazer; ela pensou que poderia brincar com um homem de cultura, tanto quanto o fazia com qualquer outro sujeito; não notava a infeliz que os homens, não me refiro a todos, porém em grande parte, certamente, sabem onde é que o diabo tem o rabo. Assim sendo, mulheres, contenham-se quanto ao ato de fazer brincadeiras; e, de maneira especial, de as fazer com pessoas ilustradas.

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