sexta-feira, 17 de julho de 2015

A Circunferência Perfeita - Malba Tahan

A  CIRCUNFERÊNCIA  PERFEITA

         “Naquela manhã, o Professor Herman Butner, de pé, solene, as mãos na cintura, correu, ameaçador, o olhar pela sala. Quarenta e dois meninos, em silêncio, aguardavam a tarefa que seria imposta pelo respeitável mestre.
         - Tomem as lousas – ordenou o professor com a habitual rispidez – e façam o seguinte... e façam...
         Hesitou um instante.
         Qual seria o exercício de classe, com que ele, o temido e enérgico ‘herr professor’, iria dar início aos trabalhos da turma? Na sua opinião, o melhor sistema de educar a mocidade era pelo terror, e o único meio de se obter a disciplina devia inspirar-se na violência e no castigo. Todo ideal do educador devia resumir-se na consecução de uma disciplina cega e ilimitada. Só um povo rijamente disciplinado faria da Alemanha uma potência invencível capaz de escravizar o mundo sob o guante de sua autoridade.
         Decorrido rápido instante, o professor, depois de acariciar lentamente, com a mão direita, a barba ruiva e opulenta que lhe adornava o rosto pálido, retomou severo:
         - ... e façam o seguinte: Escrevam todos os números inteiros de 1 até 60 e calculem, sem errar, a soma de todos esses números, isto é, desde 1 até 60.
         E repetiu:
         - Prestem bem atenção. Quero a soma de todos os números (1, 2, 3, 4, 5, et cetera) até 60! Ouviram? Vamos. Comecem.
         Toda a classe pôs-se a trabalhar. Eram meninos do curso primário da Escola Santa Catarina, em Brunswick. O mais velho pouco excedia dos doze anos e o mais moço não completaria ainda dez.
         O Professor Butner, com olhar repreensivo, observava a turma. Sentia intensa alegria ao atentar na passividade com que os pequeninos o obedeciam. Notou que a classe trabalhava com afinco; surpreendeu-se, porém, ao reparar que um dos alunos, garoto de dez anos, no mínimo, pousara a lousa sobre a carteira e olhava distraído para os mapas da Prússia que forravam a parede.
         - O senhor aí! – gritou Butner enfurecido, apontando para o menino. – O senhor aí! Por que não trabalha? Vamos. Faça a soma que mandei.
         E varou-o com os olhos que fuzilavam.
         Respondeu o menino, muito humilde, com um fio de voz:
         - Já calculei, senhor professor!
         - Como assim! – berrou o mestraço, com uma agitação imprevista e colérica. – Já calculou a soma de todos os números de 1 até 60? Traga aqui o resultado. Quero ver!
         - Aqui está! – disse.
         Butner olhou para a lousa. Nela não havia cálculos, nem contas. Apenas um número que devia exprimir o resultado: 1830!
         Era lá possível que um menino de dez anos, em poucos minutos, calculasse uma soma de sessenta parcelas! O total indicado não passava, certamente, de um número qualquer indicado, ao acaso, pela preguiça de um displicente.
         A atitude daquele menino assumia, aos olhos do exaltado professor, as proporções de um verdadeiro insulto. Com um safanão violento segurou o estudantezinho por um braço, empurrou-o para junto da mesa, e gritou-lhe com indizível rancor:
         - Fique aí, de pé! Já!
         E tomando do pesado e temível chicote, que pendia de um prego junto à porta, acrescentou com decisão de rancor:
         - Com este azorrague vou curar essa ‘maniazinha’ de querer pilheriar com coisas sérias. Está ouvindo? Se este resultado que leio aqui – mil oitocentos e trinta – dado por palpite, estiver errado, o senhor será castigado sem piedade!
         O tratamento de ‘senhor’, dado a uma criança sob a ameaça do açoite, já era uma afronta. E o mestraço tinha tremores na voz.
         O menino, muito pálido, com os braços caídos ao longo do corpo, ficou de pé com a cabeça inclinada sobre o peito, aguardando o prometido castigo.
         A classe, já habituada àqueles atos de selvageria, continuou a trabalhar.
         Decorridos mais alguns minutos, a soma proposta fora calculada por vários alunos. Veio o primeiro e exibiu o resultado ao mestre. Lá estava, em algarismos bem claros, o resultado:
         - 1830.
         Logo, a seguir, apresentou outro a conta acabada:
         - 1830.
         E, na lousa de um terceiro, reconhecido como hábil no cálculo, surgia também, gritante, o mesmo número:
         - 1830!
         Ao ver a concordância daqueles resultados, o Professor Butner ficou um instante aturdido; voltou-se, afinal, para o pequenino calculista, que aguardava as aviltantes chibatadas, e interpelou-o muito sério:
        - É espantoso! O seu resultado está certo! Sim... não há dúvida. É isso mesmo... Está certo! Como obteve, tão depressa, a soma de todos os números de 1 até 60?
         - Eu não somei, professor!
         - Como assim! Então o ‘senhor’ calculou um total sem somar, sem juntar as parcelas? Que fez, então?
         O menino, com voz tão mansa que parecia um murmúrio, explicou:
         - Vou contar como fiz. Imaginei os números, desde 1 até 60, escritos em duas linhas. A primeira linha de 1 até 30, a segunda de 60 até 31:

           1,     2,     3,     4,     5, ...... 30
         60,   59,   58,   57,   56, ...... 31
         61,   61,   61,   61,   61, ...... 61

         - Eram, portanto, 30 parcelas iguais a 61. Logo, o resultado total seria obtido (pensei) multiplicando-se 61 por 30. Fiz, então, o seguinte: multipliquei 61 por 3, obtive 183, e, a seguir, acrescentei um zero. O resultado não poderia ser outro: 1830! Foi por isso que eu fiz o cálculo depressa!
         Ao ouvir aquela explicação tão simples e tão clara, o Professor Butner compreendeu que tinha diante de si, naquele pequeno de dez anos, um verdadeiro gênio da Matemática, e sentiu pesar-lhe sobre a consciência o crime hediondo que havia praticado, humilhando-o injusta e brutalmente, e diante dos colegas.
         Entregou ao menino o pesado rebenque que até então mantivera na mão, sentou-se na primeira carteira e ordenou-lhe com voz trágica:
         - Bata com este chicote em mim! Bata em seu professor! Vamos! Bata! Já disse! É para que seu professor aprenda, de hoje em diante, a respeitar os alunos!
         Com o látego nas mãos o jovem, como que estonteado, parecia hesitar. Virava e revirava o aviltante instrumento entre os dedos. A classe toda, tomada de assombro, aguardava o desfecho daquele caso surpreendente. Teria o menino a temeridade de bater no professor? Seria capaz de vergastar a venerável figura do mestre?
         Decorridos alguns instantes, o menino devolveu o chicote ao Professor Butner e declarou, penalizado:
         - Não posso, senhor professor! Não posso!
         - Como assim? – acudiu o professor, erguendo-se impetuoso. – Não pode bater em seu professor?
         - Não... – balbuciou o garoto, com o olhar suplicante. – Não é isso! Digo que não posso fazer, torcendo este chicote, uma circunferência tão perfeita como o senhor!
         O pequenino geômetra preocupava-se com a beleza e a perfeição das formas; esquecia castigos, humilhações e ameaças. Alma generosa e simples, até naquele momento encontrava motivo para exaltar a figura incomparável do mestre. Jamais pensara em zurzir o chicote contra quem quer que fosse.
         Butner, arrebatado, tomou o menino pela mão e levou-o, no mesmo instante, ao gabinete do diretor.
         Ao vê-lo aparecer trazendo o estudante, o velho diretor abriu num riso o largo rosto emoldurado de fartas suíças:
         - Que é isso, senhor professor? Que falta cometeu esse menino? Por que o traz, assim, e já tão cedo, à minha presença?
         - Meu bom diretor – retorquiu o Professor Butner, emocionado. – Há um engano de vossa parte. Nesse momento não é o professor que traz o aluno ao diretor; mas sim o aluno é quem traz o professor à presença do diretor.
         E depois de relatar, com todas as minúcias, tudo que ocorrera pouco antes na classe, concluiu:
         - Esse menino trouxe-me à vossa presença, Sr. Diretor, para comunicar-vos que ele nada mais tem a aprender comigo. Eu, sim, é que muita coisa terei que aprender com ele.
         - E como se chama esse menino?
         Acudiu logo Butner, muito sério:
         - Atentai, diretor, no nome desse menino. Dentro de alguns anos esse nome será motivo de verdadeiro orgulho para o mundo: Karl Frederick Gauss!”

         (“Antologia da Matemática”, Malba Tahan, Edição Saraiva, São Paulo, 1967, 3ª edição, 2º Volume, páginas 185 a 189.)

         Gauss nasceu em 1777 e faleceu em 1855.

         Em Numerologia, este processo é conhecido como “Valor Secreto” de um dado número. A fórmula para se achar o “Valor Secreto” de qualquer número é esta:

         N  X  N  +  1
                       2

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