A
ORGIA DOS DUENDES
Bernardo Guimarães
I
Meia-noite soou na floresta
No relógio de sino de pau;
E a velhinha, rainha da
festa,
Se assentou sobre o grande
jirau.
Lobisome apanhava os gravetos
E a fogueira no chão acendia,
Revirando os compridos espetos,
Para a ceia da grande folia.
Junto dele um vermelho diabo
Que saíra do antro das focas,
Pendurado num pau pelo rabo,
No borralho torrava pipocas.
Taturana, uma bruxa amarela,
Resmungando com ar
carrancudo,
Se ocupava em frigir na
panela
Um menino com tripas e tudo.
Getirana com todo o sossego
A caldeira da sopa adubava
Com o sangue de um velho
morcego,
Que ali mesmo co’as unhas
sangrava.
Mamangava frigia nas banhas
Que tirou do cachaço de um
frade,
Adubado com pernas de
aranhas,
Fresco lombo de um frei dom
abade.
Vento sul sobiou na cumbuca,
Galo-preto na cinza espojou;
Por três vezes zumbiu a
matruca,
No cupim o macuco piou.
E a rainha co’as mãos
ressequidas
O sinal por três vezes foi
dando,
A coorte das almas perdidas
Desta sorte ao batuque
chamando:
"Vinde, ó filhas do oco
do pau,
Lagartixas do rabo vermelho,
Vinde, vinde tocar marimbau,
Que hoje é festa de grande
aparelho.
Raparigas do monte das
cobras,
Que fazeis lá no fundo da
brenha?
Do sepulcro trazei-me as
abobras,
E do inferno os meus feixes
de lenha.
Ide já procurar-me a
bandurra,
Que me deu minha tia
Marselha,
E que aos ventos da noite
sussurra,
Pendurada no arco-da-velha.
Onde estás, que inda aqui não
te vejo,
Esqueleto gamenho e gentil?
Eu quisera acordar-te c’um
beijo
Lá no teu tenebroso covil.
Galo-preto da torre da morte,
Que te aninhas em leito de
brasas,
Vem agora esquecer tua sorte,
Vem-me em torno arrastar tuas
asas.
Sapo-inchado, que moras na
cova
Onde a mão do defunto
enterrei,
Tu não sabes que hoje é lua
nova,
Que é o dia das danças da
lei?
Tu também, ó gentil
Crocodilo,
Não deplores o suco das uvas;
Vem beber excelente restilo
Que eu do pranto extraí das
viúvas.
Lobisome, que fazes, meu bem,
Que não vens ao sagrado
batuque?
Como tratas com tanto desdém,
Quem a c’roa te deu de
grão-duque?"
II
Mil duendes dos antros saíram
Batucando e batendo matracas,
E mil bruxas uivando
surgiram,
Cavalgando em compridas
estacas.
Três diabos vestidos de roxo
Se assentaram aos pés da
rainha,
E um deles, que tinha o pé
coxo,
Começou a tocar campainha.
Campainha, que toca, é
caveira
Com badalo de casco de burro,
Que no meio da selva
agoureira
Vai fazendo medonho sussurro.
Capetinhas trepados nos
galhos
Com o rabo enrolado no pau,
Uns agitam sonoros chocalhos,
Outros põem-se a tocar
marimbau.
Crocodilo roncava no papo
Com ruído de grande fragor;
E na inchada barriga de um
sapo
Esqueleto tocava tambor.
Da carcaça de um seco defunto
E das tripas de um velho
barão,
De uma bruxa engenhosa o
bestunto
Armou logo feroz rabecão.
Assentado nos pés da rainha
Lobisome batia a batuta
Co’a canela de um frade, que
tinha
Inda um pouco de carne
corruta.
Já ressoam timbales e rufos,
Ferve a dança do cateretê;
Taturana, batendo os adufos,
Sapateia cantando — o le rê!
Getirana, bruxinha tarasca,
Arranhando fanhosa bandurra,
Com tremenda embigada
descasca
A barriga do velho Caturra.
O Caturra era um sapo papudo
Com dois chifres vermelhos na
testa,
E era ele, a despeito de
tudo,
O rapaz mais patusco da
festa.
Já no meio da roda zurrando
Aparece a mula-sem-cabeça,
Bate palmas a súcia berrando
— Viva, viva a Sra.
condessa!...
E dançando em redor da
fogueira
Vão girando, girando sem fim;
Cada qual uma estrofe
agoureira
Vão cantando alternados
assim:
III
TATURANA
Dos prazeres de amor as
primícias,
De meu pai entre os braços gozei;
E de amor as extremas
delícias
Deu-me um filho, que dele
gerei.
Mas se minha fraqueza foi
tanta,
De um convento fui freira
professa;
Onde morte morri de uma
santa;
Vejam lá, que tal foi esta
peça.
GETIRANA
Por conselhos de um cônego
abade
Dois maridos na cova soquei;
E depois por amores de um
frade
Ao suplício o abade arrastei.
Os amantes, a quem despojei,
Conduzi das desgraças ao
cúmulo,
E alguns filhos, por artes
que sei,
Me caíram do ventre no
túmulo.
GALO-PRETO
Como frade de um santo
convento
Este gordo toutiço criei;
E de lindas donzelas um cento
No altar da luxúria imolei.
Mas na vida beata de ascético
Mui contrito rezei, jejuei,
Té que um dia de ataque
apoplético
Nos abismos do inferno
estourei.
ESQUELETO
Por fazer aos mortais crua
guerra
Mil fogueiras no mundo ateei;
Quantos vivos queimei sobre a
terra,
Já eu mesmo contá-los não
sei.
Das severas virtudes
monásticas
Dei no entanto piedosos
exemplos;
E por isso cabeças
fantásticas
Inda me erguem altares e
templos.
MULA-SEM-CABEÇA
Por um bispo eu morria de
amores,
Que afinal meus extremos
pagou;
Meu marido, fervendo em
furores
De ciúmes, o bispo matou.
Do consórcio enjoei-me dos
laços,
E ansiosa quis vê-los
quebrados,
Meu marido piquei em pedaços,
E depois o comi aos bocados.
Entre galas, veludo e damasco
Eu vivi, bela e nobre
condessa;
E por fim entre as mãos do
carrasco
Sobre um cepo perdi a cabeça.
CROCODILO
Eu fui papa; e aos meus
inimigos
Para o inferno mandei c’um
aceno;
E também por servir aos
amigos
Té nas hóstias botava veneno.
De princesas cruéis e
devassas
Fui na terra constante
patrono;
Por gozar de seus mimos e
graças
Opiei aos maridos sem sono.
Eu na terra vigário de
Cristo,
Que nas mãos tinha a chave do
céu,
Eis que um dia de um golpe
imprevisto
Nos infernos caí de boléu.
LOBISOME
Eu fui rei, e aos vassalos
fiéis
Por chalaça mandava enforcar;
E sabia por modos cruéis
As esposas e filhas roubar.
Do meu reino e de minhas
cidades
O talento e a virtude
enxotei;
De michelas, carrascos e
frades,
Do meu trono os degraus
rodeei.
Com o sangue e suor de meus
povos
Diverti-me e criei esta
pança,
Para enfim, urros dando e
corcovos,
Vir ao demo servir de
pitança.
RAINHA
Já no ventre materno fui boa;
Minha mãe, ao nascer, eu
matei;
E a meu pai por herdar-lhe a
coroa
Eu seu leito co’as mãos
esganei.
Um irmão mais idoso que eu,
C’uma pedra amarrada ao
pescoço,
Atirado às ocultas morreu
Afogado no fundo de um poço.
Em marido nenhum achei jeito;
Ao primeiro, o qual tinha
ciúmes,
Uma noite co’as colchas do
leito
Abafei para sempre os queixumes.
Ao segundo, da torre do paço
Despenhei por me ser desleal;
Ao terceiro por fim num
abraço
Pelas costas cravei-lhe um
punhal.
Entre a turba de meus
servidores
Recrutei meus amantes de um
dia;
Quem gozava meus régios
favores
Nos abismos do mar se sumia.
No banquete infernal da
luxúria
Quantos vasos aos lábios
chegava,
Satisfeita aos desejos a
fúria,
Sem piedade depois os
quebrava.
Quem pratica proezas tamanhas
Cá não veio por fraca e
mesquinha,
E merece por suas façanhas
Inda mesmo entre vós ser
rainha.
IV
Do batuque infernal, que não finda,
Turbilhona o fatal rodopio;
Mais veloz, mais veloz, mais
ainda
Ferve a dança como um
corrupio.
Mas eis que no mais quente da
festa
Um rebenque estalando se
ouviu
Galopando através da floresta
Magro espectro sinistro
surgiu.
Hediondo esqueleto aos
arrancos
Chocalhava nas abas da sela;
Era a Morte, que vinha de
tranco
Amontada numa égua amarela.
O terrível rebenque zunindo
A nojenta canalha enxotava;
E à esquerda e à direita
zurzindo
Com voz rouca desta arte
bradava:
"Fora, fora! esqueletos
poentos,
Lobisomes, e bruxas mirradas!
Para a cova esses ossos
nojentos!
Para o inferno essas almas
danadas!"
Um estouro rebenta nas
selvas,
Que recendem com cheiro de
enxofre;
E na terra por baixo das
relvas
Toda a súcia sumiu-se de
chofre.
V
E aos primeiros albores do
dia
Nem ao menos se viam
vestígios
Da nefanda, asquerosa folia,
Dessa noite de horrendos
prodígios.
E nos ramos saltavam as aves
Gorjeando canoros queixumes,
E brincavam as auras suaves
Entre as flores colhendo perfumes.
E na sombra daquele arvoredo,
Que inda há pouco viu tantos
horrores,
Passeando sozinha e sem medo
Linda virgem cismava de
amores.
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