segunda-feira, 13 de julho de 2015

Decamerão - Bocaccio

Décima Novela da Terceira Jornada do “Decamerão” de Giovanni Boccaccio
Alibeque e Rústico: Devolvendo o Diabo ao Inferno
Uma novela engraçadíssima!...

         Entrando, portanto, no assunto, afirmo que, na cidade de Capsa, na Berbéria, existiu, há tempos, um homem muito rico. Este homem tinha, entre outros filhos, uma filhinha bonita e frágil, chamada Alibeque. Não era ela cristã; porém, escutando dos cristãos que moravam na cidade grandes louvores à fé cristã e à tarefa de servir a Deus, decidiu, um dia, indagar a alguém de que modo e com menor impedimento poderia servir a Deus. Respondeu-lhe esse alguém que aqueles que melhor serviam a Deus eram os que deixavam as coisas mundanas e faziam como os que tinham ido para as solidões desérticas da Tebaida. A jovem, que era muito ingênua, e que talvez não tivesse então mais do que catorze anos de idade, sentiu-se induzida, não por um desejo ordenado e sensato, porém por uma curiosidade juvenil; talvez até por um apetite infantil; e, sem comunicar nada a ninguém, começou, logo na manhã seguinte, às ocultas e sozinha, a sua caminhada a fim de chegar ao deserto da Tebaida.
         Após vencer grande cansaço, de sofrer fome e de andar por muitos dias, ela atingiu aquele deserto; ao longe, divisou uma casinha, e para lá se encaminhou; ali, a meninota encontrou um santo homem, logo à porta. Ele ficou maravilhado vendo-a em tal paragem; e indagou-lhe o que andava buscando. Respondeu ela que, inspirada por Deus, procurava a possibilidade de pôr-se ao seu serviço; procurava, ainda, quem pudesse ensinar-lhe a forma de se servir a Deus, do melhor modo possível. O bondoso homem, vendo-a muito jovem e muito linda, temeu que, se a conservasse em sua casinhola, o diabo enganá-lo-ia; por esse motivo,  elogiou a boa disposição da mocinha; deu-lhe algo para comer, na forma de raízes e ervas, frutos silvestres e tâmaras; também lhe deu água; e, em seguida, disse:
         - Minha filha, não muito distante daqui reside um santo homem que é mestre disto que você anda buscando muito mais do que eu; e você vai ter com ele.
         O bondoso homem pô-la outra vez em marcha, na direção certa; e ela, atingindo o ponto de destino, recebeu, do santo homem que lá havia, palavras idênticas; por isso, foi mais para a frente; assim, chegou à cela de um jovem eremita, pessoa muito devota e bondosa, chamado Rústico; fez a rapariga a este eremita a mesma pergunta que fizera já aos homens que encontrara anteriormente.
         Este jovem, contudo, pretendendo dar uma prova de sua grande firmeza, não enviou a moça embora, como os outros; manteve-a, ao contrário, em sua cela. Ao cair a noite, preparou-lhe, a um canto, uma espécie de leito, feito com frondes de palmeiras; e disse-lhe que descansasse nessa cama. Isto feito, as tentações não demoraram muito a travar luta contra as forças de resistência do rapaz. Tal moço, julgando-se iludido há muito tempo, afastou-se da firmeza que imaginara ter; e rendeu-se, vencido, aos primeiros assaltos das tentações. Pôs de parte os pensamentos santos; de outra, as orações e as disciplinas; e pôs-se a recompor, de memória, a mocidade e a beleza da mocinha; além do mais, começou a refletir sobre os processos e modos que deveria por em prática, quanto a ela, para que não o tivesse ela na conta de homem dissoluto, sem impedir, porém, que ele atingisse o fim que queria atingir. Primeiramente, procurou saber, com muitas perguntas, se ela jamais conhecera homem algum; e soube isso; confirmou a certeza de que ela era, mesmo, tão ingênua quanto parecia ser; e então pôs-se a pensar em como poderia induzi-la a satisfazer os seus próprios prazeres, com a certeza de estar, assim, prestando serviço a Deus.
         Primeiramente, com muitos circunlóquios, mostrou-lhe até que ponto o diabo é inimigo de Deus Nosso Senhor. Em seguida, fê-la entender que o serviço que era mais agradável a Deus, e que melhor se poderia realizar, era reenviar o diabo ao inferno, ao qual Deus Nosso Senhor o tinha condenado. Perguntou-lhe a jovenzinha como se podia fazer aquilo. A isto, Rústico explicou:
         - Logo você ficará sabendo; porém é necessário que você faça o que eu fizer.
         Rústico despiu-se das poucas vestes que trazia; ficou completamente nu; a jovenzinha fez o mesmo; o eremita ficou de joelhos, como se estivesse pronto para rezar; à frente, ordenou que também ela se colocasse de joelhos. Ficando os dois nessa posição, Rústico sentiu que  atingira o clímax de seu desejo, vendo-a tão linda; desse modo, veio-lhe a ressurreição da carne. Alibeque contemplou aquela ressurreição; e, maravilhada com o fato, disse:
         - Rústico, que é essa coisa que vejo em você, que tanto se ergue para fora, e que eu não possuo?
         - Oh! minha filha! Isto é o diabo, do qual lhe falei; e veja você, agora; ele está-me trazendo grande aborrecimento; a tal ponto que não consigo quase tolerá-lo.
         A moça, então, exclamou:
         - Oh! Deus seja louvado, pois vejo que estou em condições melhores do que você, visto que não tenho diabo.
         Rústico comentou:
         - Você diz uma verdade; porém você tem outra coisa, que eu não possuo; e você a tem em troca disto.
         Perguntou Alibeque:
         - E o que é?
         A isto explicou Rústico:
         - O que tem você é o inferno; e digo-lhe que creio tê-la enviado Deus para mim, aqui, para a salvação de minha alma. Tão grande  aborrecimento me causa esse diabo, mas, se você tiver compaixão de mim, e consentir que eu torne a mandar este diabo ao inferno, você me dará grande consolo, e prestará grande prazer a serviço de Deus; e isto sucederá, se é certo que você veio para este deserto para fazer aquilo que disse que veio fazer.
         De boa fé retrucou a jovem:
         - Oh! padre meu! Já que tenho o inferno, seja feito assim, quando for de sua vontade.
         Disse então Rústico:
         - Minha filha, seja você abençoada! Vamos, portanto, colocar o diabo no inferno para que, depois, ele me deixe em sossego.
         Assim falando, Rústico levou a jovem para um de seus pequenos leitos, onde lhe ensinou a maneira como devia estar para encerrar o maldito de Deus. A jovenzinha, que jamais pusera nenhum diabo naquele inferno, sofreu, da primeira vez, alguns aborrecimentos; e, assim, disse a Rústico:
         - Por certo, meu padre, esse diabo será coisa muito ruim, deve mesmo ser inimigo de Deus; pois, mesmo colocado no inferno, além de causar mal aos outros, dói quando é reenviado lá para dentro.
         Rústico acalmou-a:
         - Minha filha, isto não será sempre assim.
         E, para evitar que a coisa se repetisse, tornou a por o diabo no inferno por mais seis vezes, antes de se afastarem do pequeno leito; da última vez, toda a soberba se lhe esfumou da cabeça; tanto que o diabo, então, ficou de bom grado em paz. Retornando-lhe, contudo, a soberba várias vezes depois disto, e continuando a jovem obediente à missão de lha dissipar outra vez, aconteceu que aquilo começou a agradar e, então, disse ela a Rústico:
         - Estou vendo muito bem que aqueles valorosos homens de Capsa diziam a verdade, ao esclarecerem que era coisa suave o servir a Deus; certamente, não me lembro de nunca ter feito outra coisa que tanto prazer e tanto deleite me desse, como a tarefa de tornar a por o diabo no inferno. Por esta razão, digo-lhe que é tola toda pessoa que se entregue a outros serviços que não sejam os de servir a Deus.
         Por esse motivo, muitas e muitas vezes ela procurava Rústico, e dizia-lhe:
         - Padre meu! Eu vim para cá com a finalidade de servir a Deus e não para ficar na ociosidade; vamos tornar a por o diabo no inferno.
         Certas vezes, fazendo isto, ela dizia:
         - Rústico! Não sei por que motivo o diabo foge do inferno; porque, se ele ali ficasse com boa vontade, tanta quanta aquela com que o inferno o recebe e o mantém, ele jamais sairia de lá.
         Desse modo, portanto, a jovem com freqüência convidava Rústico; e, servindo a Deus, consolava-o. E de tal modo agiu, que terminou consumindo-lhe as forças e levando-o a sentir frio em horas em que qualquer outro homem suaria. Por isso, ele procurou explicar à jovem que o diabo apenas precisava ser castigado e remetido de volta ao inferno quando, por orgulho, erguesse a cabeça.
         - E nós – terminou ele a explicação – por graça de Deus já o castigamos tanto, que agora ele é que pede a Deus que lhe seja permitido ficar em paz.
         Deste modo, impôs moderação e silêncio à jovenzinha; esta, contudo, observando que Rústico não a chamava mais para o dever de devolver o diabo ao inferno, um dia assim lhe falou:
         - Rústico, se o seu diabo está já castigado, e não mais lhe causa aborrecimentos, o caso é que, a mim, o meu inferno não me deixa sossegada; por isso, bem avisado estará você se fizer com que o seu diabo auxilie a apagar a raiva do meu inferno, tanto quanto eu, com o meu inferno, ajudei a apagar o orgulho de seu diabo.
         Rústico, que se alimentava de água e de raízes de ervas, mal conseguia corresponder às exigências; afirmou-lhe que muitos diabos gostariam de poder sossegar o seu inferno; em todo caso, iria fazer o que pudesse. Assim sendo, algumas vezes a contentava; porém isto sucedia a intervalos tão longos, que era o mesmo que jogar uma semente na boca de um leão. Diante desta circunstância, a jovem teve a impressão de que não servia a Deus o bastante, nem como devera; e começou a resmungar.
         Entretanto, enquanto durava esta questão entre o diabo de Rústico e o inferno de Alibeque, da parte deste por excesso de cupidez, da parte do primeiro por falta de forças, algo se passou: declarou-se um incêndio, em Capsa, que carbonizou, em sua casa mesma, o pai de Alibeque e todos os filhos e familiares seus. Por isso, Alibeque fez-se herdeira de todos os bens que ele deixou. Um jovem, de nome Neerbal, que gastara tudo quanto tinha em atos  de cortesia, ficou sabendo que Alibeque vivia; começou, então, a procurá-la; achou-a antes que o tribunal entrasse na posse dos bens que tinham pertencido ao pai dela, como sucede com os homens que morrem sem herdeiros. Com imensa satisfação de Rústico e muito contra a vontade dela, o rapaz levou-a de volta a Capsa, e tomou-a por esposa, com ela se tornando o herdeiro do seu grande patrimônio.
         Alibeque, contudo, teve de responder às perguntas das mulheres que a rodeavam, sobre o modo como servia a Deus no deserto; nesse ponto, Neerbal ainda não se deitara com ela; e ela respondeu que servia mandando de volta o diabo ao inferno, e que, por isso, Neerbal cometera um enorme pecado ao tirá-la desse serviço. Indagaram as mulheres:
         - E de que modo é que se remete de volta o diabo ao inferno?
         Um pouco com palavras, outro tanto por gestos, a jovem indicou-lhes como. As mulheres, então, prorromperam em gargalhadas; até parece que ainda estão rindo. E disseram:
         - Não fique triste por isso, menina; não se entristeça; essa coisa se faz muito bem também nessas bandas; Neerbal, juntamente com você, servirá perfeitamente a Deus Nosso Senhor.
         Depois, uma mulher começou a repetir, a outra, o que ouvira de Alibeque; finalmente, tudo ficou reduzido a um ditado popular, que indica que o serviço mais deleitoso que podia ser prestado a Deus era o de tornar a colocar o diabo no inferno; este provérbio, passado para o lado de cá do mar, ainda hoje é usado.
         Por esta razão, vocês, jovens mulheres, que estão necessitadas da graça de Deus, procurem aprender a devolver o diabo ao inferno, pois esse serviço é muito do agrado de Deus e do gosto das partes, podendo perfeitamente ser praticado e repetido.

Nenhum comentário:

Postar um comentário