quarta-feira, 29 de julho de 2015

Um Boêmio no Céu - Catullo da Paixão Cearense

UM  BOÊMIO  NO  CÉU
Catullo da Paixão Cearense

Citarei a seguir alguns trechos do livro “Um Boêmio no Céu”, de Catullo da Paixão Cearense, (1863-1946), Livraria Império Editora, Rio de Janeiro, 1966, 8ª Edição, organização, notas e poliantéia por Guimarães Martins, com 139 páginas. Esta peça de teatro, em 2 atos, escrita em versos, é de 1945. Possuo uma cópia xerográfica do livro. Fala do encontro do Boêmio com São Pedro, na entrada do Céu. Transcreverei inicialmente apenas as falas do Boêmio.

 “Sem o vigor do amor elas lhe domem,
um homem pode amar a mil mulheres,
mas a mulher só pode amar um homem.
O homem tem um coração tão grande,
que é capaz de conter as águas todas,
que o mar por toda a vastidão expande.
O da mulher, porém, é tão pequeno,
tão mimoso, tão leve e tão escasso,
que pode enchê-lo um pingo de sereno.
No coração do homem tudo medra!
O mais mole é mais duro que uma pedra!
O da mulher, Senhor, é tão sensível,
que não pode sofrer nenhum abalo!
É tão sutil, tão leve e tão mimoso,
que um suspiro da flor pode quebrá-lo.”

“Quantas vezes, tangendo um doce acorde
no meu terno violão, cheio de pena,
eu dei um beliscão pecaminoso
no seio em flor de uma mulher morena.”

“Com permissão das vossas barbas brancas
e da vossa careca macilenta,
milagrenta, litúrgica e beata,
eu vos direi, Senhor, que entre as mil virgens
não há mulher mais linda e suculenta,
que tenha o fogo fresco da pimenta,
e que seja mais chic e democrata,
do que esse caruru vertiginoso,
do que esse vatapá turbulentoso,
esse quitute mágico e dengoso,
que Deus humanizou numa mulata!”

A Ciência, através de um telescópio,
devassando os segredos da amplidão,
nada vale diante da blasfêmia
da boca escancarada de um canhão.
Um frêmito de horror sacode a Terra!
Finalmente, Senhor, pesa dizê-lo:
o mundo de hoje é um arsenal de guerra.”

“Desculpai-me, Senhor, esta franqueza,
que, espero, não tomeis por desrespeito.
Se os homens fossem feitos pelo Diabo,
e eu fosse o próprio Diabo, o Rei das Trevas,
eu teria vergonha de os ter feito.
Porque se Deus, Senhor Onipotente,
foi quem os homens, paternal, criou,
foi com certeza o Crápula do Inferno,
o padrinho infernal, que os batizou.”

“O que se dá no mundo, neste instante,
é o combate das calças e das saias,
em que a mulher e o homem se enfurecem!!
A mulher vencerá, pois pela lógica,
sobem as saias, quando as calças descem!!”

“Estrangular, de vez, a Ciência humana,
a ciência sem Deus, a ciência profana!”

“Destruir toda e qualquer religião,
para que a fera humana compreenda
a grandeza de Deus, sua grandeza,
e só conheça um livro: - a Natureza,
o sublime Evangelho de Poesias,
que Deus nos escreveu com o coração.”

“Vós deveis ser a Judas muito grato,
perdoar de coração esse bandido,
o maior dos maiores condenados,
que ficam para sempre relembrados,
esses homens fecais, feitos de pus,
pois se foi certo que vendeu a Cristo,
também foi certo que, ao beijar-lhe a face,
lhe deu a glória universal da cruz!
Sem esse grande miserável, -  Judas,
existiria Deus, mas não Jesus.”

“E Santo Onofre, o santo milongueiro,
por ser um grande santo, e, ao mesmo tempo,
um belo e incorrigível cachaceiro.
Depois do grande, imenso Santo Onofre,
que dizem que no Céu bêbado entrou,”
(...)

Transcreverei a seguir o diálogo do Boêmio com Santo Onofre.

“Santo Onofre:
(falando baixinho ao boêmio)
Vai para a lua, imediatamente!
Foge daqui e torna-te invisível,
que aqui não se farreia, nem se bebe,
e a vida sem beber, é coisa horrível.
Boêmio:
Eu vou ver se te mando umas garrafas...
Santo Onofre:
Mas cadê portador?! É impossível!
Tenho inveja de ti, tanto te invejo,
que em fugir cá do céu inda persisto.
Boêmio:
Tens saudade da Terra?
Santo Onofre:
                                        Está bem visto,
porque esta cachacinha, que aqui bebo,
é uma zurrapa, a que só eu resisto.
A cachaça que vais beber, na Lua,
é tão pura, tão alva e imaculada,
que até parece lágrimas de Cristo.
Aqui, meu velho, não se come nada!
Quem me dera uma bela feijoada!
Tenho vontade de suicidar-me,
de morrer, de uma vez, com alegria,
quando penso, no Céu, que estou comendo
um pedaço de carne seca assada,
com pirão de farinha d’água fria.
Aqui, não se namora! Só se adora!
É só rezar, rezar a toda a hora,
por um capricho, uma exigência tola.
Boêmio:
(indignado)
Tu exageras, pois o Céu tem anjos!
Santo Onofre:
(baixinho)
Que vale um anjo ao pé de uma crioula?!
(indignado)
Aqui não se ouve o pipocar de um beijo!
O dos anjos, é um beijo aristocrata!
Não explode na boca, como um beijo
num sorriso cheiroso de mulata.
São Damião e São Cosme também sofrem
as penas infernais da Santidade,
em que ambos, dia a dia, se consomem!
Nem um tutu com salsa e com torresmo!...
Nem um simples pirão... nem isso mesmo
podem comer!... Não bebem!... Nada comem!
O pobre do São Jorge não se esquece
das conquistas que fez com o seu ginete,
e leva horas inteiras a chorá-lo!
Coitado! Quando apertam-lhe as saudades,
ele monta num cabo de vassoura,
e corre pelo Céu, como um maluco,
pensando que a vassoura é o seu cavalo!
Quem me dera sair daqui, contigo,
fugir deste silêncio, que tortura!
O Céu, com toda a sua santidade,
é um Campo Santo, é um velho cemitério,
e o meu altar de Santo é tão funéreo,
que até parece a minha sepultura.
Foge daqui, te falo, como amigo!
Nós, os grandes boêmios, só nascemos
para viver cantando na desgraça,
porque todo o Infinito e a Eternidade
não valem o prazer que eu tinha n’alma,
quando bebia um copo de cachaça!”

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