Sexta
Novela da Décima Jornada do “Decamerão” de Giovanni Boccaccio
O
Grandioso Ato de Sacrifício Pessoal do Rei Carlos, o Velho
“Cada uma de vocês certamente terá ouvido
já lembrar a existência do Rei Carlos, o Velho, ou antes, Primeiro, notável pela
sua extraordinária realização, e, em seguida, pela gloriosa vitória que
alcançou contra o Rei Manfredi. Por causa de seus feitos é que os gibelinos
foram expulsos de Florença, ali retornando os guelfos. Por isso, um cavaleiro
de nome Senhor Néri degli Uberti, deixando Florença com toda a sua prole e
muita fortuna, recusou qualquer refúgio que não fosse sob os braços do Rei
Carlos. Para ficar em lugar solitário, e aí encerrar a sua existência com
tranquilidade, partiu para Castelo-junto-ao-mar-de-Stábia. Ali, à distância de
cerca de um tiro de balestra das outras habitações do local, entre oliveiras,
nogueiras e castanheiros, que existem em abundância na região, adquiriu uma
propriedade. Nesse lugar, ordenou que se construísse uma linda e rica mansão;
ao seu lado, mandou fazer grande e agradável jardim; no meio do jardim, já que
existia muita água, construiu um lindo e transparente viveiro, que ordenou que
fosse logo cheio de peixes. Néri degli Uberti não tinha outra ocupação senão a
de fazer cada vez mais belo o seu jardim.
Sucedeu que o Rei Carlos, nos períodos de
calor, estava acostumado a descansar um pouco em Castelo-junto-ao-mar. Teve,
ali, notícias da beleza do jardim do Senhor Néri e, por esse motivo, quis
contemplá-la. Também soube o rei a quem pertencia o jardim; e pensou que, sendo
ele de propriedade de um cavaleiro de partido contrário, maior intimidade
gostaria de firmar com ele; ordenou, assim, que se lhe comunicasse que, na
noite seguinte, em companhia de quatro outros companheiros, gostaria de jantar,
em paz, como seu convidado, no seu jardim. Recebeu o Senhor Néri a comunicação
com imenso prazer; ordenou que todas as coisas fossem preparadas com tanta
magnificência quanto possível; e, com toda a sua família, após combinar tudo o
que seria necessário ou conveniente fazer, recebeu o rei em seu magnífico
jardim, do modo mais rico e festivo que pode.
Após visitar todo o jardim e as
dependências do palacete do Senhor Néri, e após elogiar muito tudo o que pode
apreciar, o rei lavou as suas mãos e sentou-se a uma das mesas que estavam
dispostas e colocadas ao longo da margem do viveiro; o próprio rei mandou, ao
Conde Guido de Monforte, que era um de seus companheiros, que tomasse assento a
um de seus lados; o Senhor Néri sentou-se do outro; quanto aos outros três, que
tinham chegado com o soberano, resolveu-se que fossem servidos de acordo com a
determinação já expedida pelo Senhor Néri. As viandas apresentadas foram as
mais finas; ótimos e preciosos eram os vinhos; e o serviço, excepcional e digno
de elogios; tudo transcorreu sem aborrecimentos, nem embaraços; e isto foi
muito elogiado pelo rei.
Jantou o Rei Carlos com imensa
satisfação; o lugar, saudável e solitário, agradou-lhe muito. Em dado instante,
entraram no jardim duas meninas, que tinham, quando muito, quinze anos; eram
loiras como fios de ouro; estavam com os cabelos encaracolados; sobre os
cabelos tinham uma pequena grinalda de pervincas; com respeito ao rosto, as
duas pareciam anjos e não pessoas, de tão delicadas e belas que eram suas
fisionomias. Estavam as meninas vestidas, cada uma, com um vestido muito fino,
de linho, branco como a neve, que lhes assentava diretamente sobre as carnes;
era muito justo o traje, da cintura para cima; da cintura para baixo tornava-se
mais largo, como se fosse um pavilhão, prolongando-se até os pés. A jovem que
se mantinha na frente trazia aos ombros um par de pequenas redes de pesca, que
segurava com a mão esquerda; empunhava, com a direita, um comprido bastão. A
outra, mantendo-se logo atrás da primeira, trazia uma panela no ombro esquerdo,
e, debaixo do braço do mesmo lado, pequeno feixe de lenha; carregava uma
tripeça numa das mãos; na outra, um vaso de barro vidrado, de azeite, mais uma
pequenina tocha acesa. Vendo as jovens, mostrou-se o rei agradavelmente
surpreendido; e, conservando o seu espírito em expectativa, aguardou que lhe
fosse esclarecido o que significava aquilo.
Mostraram-se as jovenzinhas ao soberano,
em atitude honesta e cheia de pudor; fizeram a devida reverência; depois,
encaminharam-se para o ponto por onde se entrava no viveiro; a que estava com a
panela colocou esse utensílio no chão, junto com as demais coisas que trazia;
segurou o bastão, que a outra empunhava; e ambas penetraram no viveiro, cujas
águas lhes chegavam ao peito. Um dos criados do Senhor Néri acendeu, ali por
perto, sem demora, uma fogueira; colocou a panela sobre a tripeça; derramou
azeite na panela; e ficou esperando que as moças lhe atirassem os peixes. Uma
das jovens procurava pelas locas onde sabia que os peixes se escondiam,
enquanto a outra estendia as redes; o espetáculo dava imenso prazer ao rei,
que, com os olhares, seguia tudo com infinita atenção. Em breve, as jovens
apanharam peixes em quantidade apreciável; jogaram-nos ao serviçal, que os ia
colocando, ainda vivos, na panela; em seguida, as jovens, como se tivessem
recebido especial instrução para isso, começaram a apanhar peixes maiores e
mais belos, e a atirá-los à mesa, bem diante do rei, do Conde Guido e do pai
deste. Tais peixes ficavam espadanando pela mesa; e, com isto, o rei
divertia-se imensamente; depois, o rei apanhava os mesmos peixes e atirava-os,
galantemente, de volta às mãos das meninas.
Tais brincadeiras continuaram durante
algum tempo, até que o serviçal terminou a fritada dos peixes que lhe tinham
sido dados. A peixada, então, foi apresentada ao rei, mais como prato de
contemplação do que como manjar particularmente delicioso, conforme o que
decidira o Senhor Néri. Vendo já pronto o peixe, as jovens, tendo pescado o
suficiente, deixaram o viveiro; suas roupas, de linho branco e transparente,
embebidas como ficaram de água, colaram-se-lhes às carnes, de maneira que quase
nada de seu delicado corpo se escondeu; cada uma delas retomou o que trouxera;
ambas tornaram a passar, em atitude pundonorosa, diante do rei; e voltaram para
casa.
O rei e o conde, assim como os outros
comensais, tinham gostado bastante do aparecimento das tais moças; e cada um as
elogiara, a seu modo, fosse pela beleza, fosse pelos atos que praticaram; além
disso, todos as consideraram muito agradáveis de serem vistas, e muito bem
educadas. Contudo, a ninguém elas agradaram mais do que ao próprio soberano.
O rei contemplara e examinara com tanta
minúcia e tanta agudeza cada parte do corpo delas, quando deixaram a água do
viveiro, que, se alguém o tivesse picado, naquele instante, não o teria notado.
Pensando mais demoradamente naquelas jovens, desconhecendo quem eram, nem a
razão pela qual seu pensamento sempre retornava a elas, percebeu que lhe
nascia, no coração, um ardente desejo de lhes agradar. Notou logo, por isso,
que começara a apaixonar-se, e que realmente se apaixonaria, se não procedesse
com cautela. Aliás, ele mesmo já não sabia qual das duas lhe despertara mais
afeição, tanto uma se parecia com a outra, de todos os pontos de vista.
Entretanto, após refletir muito sobre o assunto, o rei virou-se para o Senhor
Néri, e indagou dele quem eram as duas meninas. A isto, respondeu o Senhor
Néri:
- Senhor, estas são minhas filhas, que
nasceram de um mesmo parto; delas, chama-se uma Genebra, a bela; a outra,
Isolda, a loira.
Elogiou-lhe o rei as filhas,
estimulando-o a obter-lhes casamento. O Senhor Néri desculpou-se disto, por não
mais poder dotá-las. Neste ponto, como não havia mais nada a ser servido, senão
as frutas, as duas meninas tornaram a aparecer, envoltas em duas lindíssimas
capas de tafetá; traziam dois grandes pratos, de prata, cheios de frutas
diferentes, conforme o que se produzia naquela estação do ano; colocaram os
pratos diante do rei, sobre a mesa. Isto feito, afastaram-se um pouco; e
puseram-se a cantar uma cançoneta, que assim principiava:
‘Lá onde eu cheguei, Amor,
Não se poderia dizer longamente...’
Cantaram com tamanha suavidade, de modo tão
agradável, que o rei, que as olhava e as ouvia, imaginava que todas as
hierarquias dos anjos ali tivessem descido, para cantar. Finda a canção,
ajoelharam-se as jovens e, com reverência, solicitaram, ao rei, licença para se
irem.
Ainda que lhe desagradasse o despedi-las,
o rei deu-lhes permissão, fazendo-o de boa vontade apenas na aparência.
Terminado o jantar, o rei e seus companheiros tornaram a montar os cavalos;
apresentaram suas despedidas ao Senhor Néri; e todos, ora discorrendo sobre uma
coisa, ora sobre outra, voltaram ao castelo real.
Ali, conservou o rei em segredo o seu
afeto. Por mais interessante que fosse o assunto que se discutisse, ele não
podia esquecer a beleza e a graça de Genebra, a bela; por amor a Genebra, tinha
também amor à irmã dela, que a ela se parecia; e de tal maneira se enredou nas
malhas do amor, que quase não podia mais pensar em coisa alguma.
Procurando sempre novas razões, o rei
procurara nutrir, com o Senhor Néri, uma amizade bem íntima; com freqüência visitava-lhe
o jardim, ainda que a verdadeira causa que o movia fosse a de encontrar-se ali
com Genebra. Em dado momento, não podendo mais suportar aquele estado de
coisas, começou a pensar em tirar do pai não apenas uma das filhas, senão ambas
ao mesmo tempo; não encontrava outro modo de decidir aquela situação; assim,
revelou o seu amor e suas intenções ao Conde Guido; e este, que era homem muito
digno, lhe disse:
- Senhor, fico muito surpreso com o que o
Senhor me diz; e minha surpresa é tanto maior, que talvez nenhuma outra pessoa
teria, quanto mais me parece que pude conhecer, mais do que ninguém, os seus
hábitos, desde a infância até os dias atuais. Jamais me pareceu, nunca, que, em
sua mocidade, na qual o amor mais facilmente poderia fincar as garras, o senhor
tenha sofrido tal paixão; portanto, ao conhecer que sente essa paixão agora,
que já está perto da velhice, parece-me tão inusitado e tão estranho o fato de
o senhor estar amando por amor, que isso quase assume aspecto de milagre.
Tivesse eu de repreendê-lo, por isso, sei muito bem o que diria; é necessário
que considere que o senhor ainda está, em seu novo reino, com a armadura no
corpo e as armas na mão; que reside no meio de uma nação não conhecida, cheia
de falsidades e de traições; que está sempre profundamente ocupado com cuidados
enormes e assuntos de importância; que o senhor nem mesmo pode descansar um
pouco; e que, além e acima de tudo isso, o senhor possa ter achado lugar para
tão fogoso amor! Não é isto uma atitude própria de rei magnânimo; pelo
contrário, é mais condizente com um jovenzinho covarde. Além disso — o que é
muito pior —, o senhor diz que decidiu tolher ambas as filhas do pobre
cavaleiro que, em sua casa, tem homenageado o senhor, muito mais do que pode;
considere-se que, para homenagear ao senhor, ele apresentou-lhe aquelas duas
filhas quase nuas, com isso testemunhando quão grande é a confiança que
deposita no senhor; ele está certo de que o senhor é mesmo um rei, e não lobo
rapace. Será que já deixou a sua memória a série de violências que Manfredi
praticou contra as mulheres, que foi, aliás, o que propiciou a sua entrada
neste reino? Qual a traição que se praticou mais merecedora de eterno castigo
do que esta, consubstanciada no fato de o senhor tolher, ao cavaleiro que lhe
rende todas as homenagens, a sua honra e sua esperança, e ainda o seu consolo?
Que se haveria de dizer do senhor, se o senhor a cometesse? Pode ser que o
senhor imagine que seria desculpa suficiente o declarar: ‘Cometi-a porque ele é
gibelino!’ Quer dizer, então, que esta é a justiça dos reis? É deste modo que
são tratados aqueles que à sombra dos reis se acolhem, sejam eles quais forem?
Relembro-lhe, rei, que é imensa a sua glória, por ter vencido Manfredi; muito
maior glória, contudo, em tal caso, é o senhor vencer a si mesmo. Tem o senhor
o dever de corrigir os outros; assim, procure vencer-se a si próprio; supere e
refreie este apetite; não permita que, com tal nódoa, se arruíne tudo o que o
senhor, com tanta glória conquistou.
Tais palavras feriram amargamente o
espírito do rei; e mais ainda o afligiram quanto mais sabia ele que diziam a
verdade. Por isso, após alguns suspiros sentidos, disse o rei:
- Conde, parece-me que qualquer outro
inimigo, por mais forte que seja, com mais facilidade e mais comodamente é
vencido, por um guerreiro experiente, do que seu próprio desejo. Entretanto,
ainda que a dor seja imensa, e apesar de ser inestimável o esforço necessário,
suas palavras feriram-me tanto, que cheguei a esta conclusão: é preciso, antes
que se passem muitos dias, que eu prove, com atos, que sei tão bem vencer os
outros quanto vencer-me a mim mesmo.
Poucos dias depois de ditas estas
palavras, o rei voltou a Nápoles; quis, com isso, impedir a oportunidade de
agir de maneira vil, fosse sobre o que fosse; quis, também, premiar o
cavaleiro, por todas as homenagens que recebera da parte dele; certamente
era-lhe difícil tornar outro homem possuidor daquilo que ele mais ardorosamente
amava; mesmo assim, preparou o seu próprio espírito, de modo que resolveu
realizar o casamento daquelas duas jovens, não mais como se fossem filhas do
Senhor Néri, e sim como filhas suas.
Com enorme prazer do Senhor Néri, o
soberano dotou magnificamente as duas mocinhas; depois, deu Genebra, a bela, ao
Senhor Maffeo da Palizzi, e Isolda, a loira, ao Senhor Guilherme delia Magna;
eram ambos cavaleiros de alta nobreza e notáveis barões. Tendo-as dado como
esposas, o rei, assaltado por inenarrável dor, partiu para as Apulhas; ali,
fazendo esforços inauditos e incessantes, macerou o seu infinito apetite de
amor; finalmente, depois de partir e quebrar as cadeias do amor, conseguiu
libertar-se daquela paixão pelo resto de sua vida.
Algumas pessoas poderão dizer, talvez,
que foi coisa de pouca monta o fato de um rei ter realizado o casamento de duas
jovenzinhas; e concordarei com elas; porém direi que essa coisa foi imensa, foi
até enormíssima, considerando que, no caso, se tratou de gesto praticado por um
rei apaixonado exatamente pela jovem cujo matrimônio ele propiciou; promovendo
esse casamento da mulher que ele adorava com outro cavaleiro, ele, o soberano,
não tomou, para si, nem fronde, nem flor, nem fruto de seu amor.
Desta maneira, portanto, é que se
comportou o rei magnânimo; ele premiou de maneira superior o cavaleiro que lhe
rendera tantas homenagens; honrou, de modo elogiável, as mocinhas amadas; e
venceu-se a si próprio.”
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