quarta-feira, 15 de julho de 2015

Decamerão - Boccaccio

Sexta Novela da Décima Jornada do “Decamerão” de Giovanni Boccaccio
O Grandioso Ato de Sacrifício Pessoal do Rei Carlos, o Velho

      “Cada uma de vocês certamente terá ouvido já lembrar a existência do Rei Carlos, o Velho, ou antes, Primeiro, notável pela sua extraordinária realização, e, em seguida, pela gloriosa vitória que alcançou contra o Rei Manfredi. Por causa de seus feitos é que os gibelinos foram expulsos de Florença, ali retornando os guelfos. Por isso, um cavaleiro de nome Senhor Néri degli Uberti, deixando Florença com toda a sua prole e muita fortuna, recusou qualquer refúgio que não fosse sob os braços do Rei Carlos. Para ficar em lugar solitário, e aí encerrar a sua existência com tranquilidade, partiu para Castelo-junto-ao-mar-de-Stábia. Ali, à distância de cerca de um tiro de balestra das outras habitações do local, entre oliveiras, nogueiras e castanheiros, que existem em abundância na região, adquiriu uma propriedade. Nesse lugar, ordenou que se construísse uma linda e rica mansão; ao seu lado, mandou fazer grande e agradável jardim; no meio do jardim, já que existia muita água, construiu um lindo e transparente viveiro, que ordenou que fosse logo cheio de peixes. Néri degli Uberti não tinha outra ocupação senão a de fazer cada vez mais belo o seu jardim.
      Sucedeu que o Rei Carlos, nos períodos de calor, estava acostumado a descansar um pouco em Castelo-junto-ao-mar. Teve, ali, notícias da beleza do jardim do Senhor Néri e, por esse motivo, quis contemplá-la. Também soube o rei a quem pertencia o jardim; e pensou que, sendo ele de propriedade de um cavaleiro de partido contrário, maior intimidade gostaria de firmar com ele; ordenou, assim, que se lhe comunicasse que, na noite seguinte, em companhia de quatro outros companheiros, gostaria de jantar, em paz, como seu convidado, no seu jardim. Recebeu o Senhor Néri a comunicação com imenso prazer; ordenou que todas as coisas fossem preparadas com tanta magnificência quanto possível; e, com toda a sua família, após combinar tudo o que seria necessário ou conveniente fazer, recebeu o rei em seu magnífico jardim, do modo mais rico e festivo que pode.
      Após visitar todo o jardim e as dependências do palacete do Senhor Néri, e após elogiar muito tudo o que pode apreciar, o rei lavou as suas mãos e sentou-se a uma das mesas que estavam dispostas e colocadas ao longo da margem do viveiro; o próprio rei mandou, ao Conde Guido de Monforte, que era um de seus companheiros, que tomasse assento a um de seus lados; o Senhor Néri sentou-se do outro; quanto aos outros três, que tinham chegado com o soberano, resolveu-se que fossem servidos de acordo com a determinação já expedida pelo Senhor Néri. As viandas apresentadas foram as mais finas; ótimos e preciosos eram os vinhos; e o serviço, excepcional e digno de elogios; tudo transcorreu sem aborrecimentos, nem embaraços; e isto foi muito elogiado pelo rei.
      Jantou o Rei Carlos com imensa satisfação; o lugar, saudável e solitário, agradou-lhe muito. Em dado instante, entraram no jardim duas meninas, que tinham, quando muito, quinze anos; eram loiras como fios de ouro; estavam com os cabelos encaracolados; sobre os cabelos tinham uma pequena grinalda de pervincas; com respeito ao rosto, as duas pareciam anjos e não pessoas, de tão delicadas e belas que eram suas fisionomias. Estavam as meninas vestidas, cada uma, com um vestido muito fino, de linho, branco como a neve, que lhes assentava diretamente sobre as carnes; era muito justo o traje, da cintura para cima; da cintura para baixo tornava-se mais largo, como se fosse um pavilhão, prolongando-se até os pés. A jovem que se mantinha na frente trazia aos ombros um par de pequenas redes de pesca, que segurava com a mão esquerda; empunhava, com a direita, um comprido bastão. A outra, mantendo-se logo atrás da primeira, trazia uma panela no ombro esquerdo, e, debaixo do braço do mesmo lado, pequeno feixe de lenha; carregava uma tripeça numa das mãos; na outra, um vaso de barro vidrado, de azeite, mais uma pequenina tocha acesa. Vendo as jovens, mostrou-se o rei agradavelmente surpreendido; e, conservando o seu espírito em expectativa, aguardou que lhe fosse esclarecido o que significava aquilo.
      Mostraram-se as jovenzinhas ao soberano, em atitude honesta e cheia de pudor; fizeram a devida reverência; depois, encaminharam-se para o ponto por onde se entrava no viveiro; a que estava com a panela colocou esse utensílio no chão, junto com as demais coisas que trazia; segurou o bastão, que a outra empunhava; e ambas penetraram no viveiro, cujas águas lhes chegavam ao peito. Um dos criados do Senhor Néri acendeu, ali por perto, sem demora, uma fogueira; colocou a panela sobre a tripeça; derramou azeite na panela; e ficou esperando que as moças lhe atirassem os peixes. Uma das jovens procurava pelas locas onde sabia que os peixes se escondiam, enquanto a outra estendia as redes; o espetáculo dava imenso prazer ao rei, que, com os olhares, seguia tudo com infinita atenção. Em breve, as jovens apanharam peixes em quantidade apreciável; jogaram-nos ao serviçal, que os ia colocando, ainda vivos, na panela; em seguida, as jovens, como se tivessem recebido especial instrução para isso, começaram a apanhar peixes maiores e mais belos, e a atirá-los à mesa, bem diante do rei, do Conde Guido e do pai deste. Tais peixes ficavam espadanando pela mesa; e, com isto, o rei divertia-se imensamente; depois, o rei apanhava os mesmos peixes e atirava-os, galantemente, de volta às mãos das meninas.
      Tais brincadeiras continuaram durante algum tempo, até que o serviçal terminou a fritada dos peixes que lhe tinham sido dados. A peixada, então, foi apresentada ao rei, mais como prato de contemplação do que como manjar particularmente delicioso, conforme o que decidira o Senhor Néri. Vendo já pronto o peixe, as jovens, tendo pescado o suficiente, deixaram o viveiro; suas roupas, de linho branco e transparente, embebidas como ficaram de água, colaram-se-lhes às carnes, de maneira que quase nada de seu delicado corpo se escondeu; cada uma delas retomou o que trouxera; ambas tornaram a passar, em atitude pundonorosa, diante do rei; e voltaram para casa.
      O rei e o conde, assim como os outros comensais, tinham gostado bastante do aparecimento das tais moças; e cada um as elogiara, a seu modo, fosse pela beleza, fosse pelos atos que praticaram; além disso, todos as consideraram muito agradáveis de serem vistas, e muito bem educadas. Contudo, a ninguém elas agradaram mais do que ao próprio soberano.
      O rei contemplara e examinara com tanta minúcia e tanta agudeza cada parte do corpo delas, quando deixaram a água do viveiro, que, se alguém o tivesse picado, naquele instante, não o teria notado. Pensando mais demoradamente naquelas jovens, desconhecendo quem eram, nem a razão pela qual seu pensamento sempre retornava a elas, percebeu que lhe nascia, no coração, um ardente desejo de lhes agradar. Notou logo, por isso, que começara a apaixonar-se, e que realmente se apaixonaria, se não procedesse com cautela. Aliás, ele mesmo já não sabia qual das duas lhe despertara mais afeição, tanto uma se parecia com a outra, de todos os pontos de vista. Entretanto, após refletir muito sobre o assunto, o rei virou-se para o Senhor Néri, e indagou dele quem eram as duas meninas. A isto, respondeu o Senhor Néri:
      - Senhor, estas são minhas filhas, que nasceram de um mesmo parto; delas, chama-se uma Genebra, a bela; a outra, Isolda, a loira.
      Elogiou-lhe o rei as filhas, estimulando-o a obter-lhes casamento. O Senhor Néri desculpou-se disto, por não mais poder dotá-las. Neste ponto, como não havia mais nada a ser servido, senão as frutas, as duas meninas tornaram a aparecer, envoltas em duas lindíssimas capas de tafetá; traziam dois grandes pratos, de prata, cheios de frutas diferentes, conforme o que se produzia naquela estação do ano; colocaram os pratos diante do rei, sobre a mesa. Isto feito, afastaram-se um pouco; e puseram-se a cantar uma cançoneta, que assim principiava:
      ‘Lá onde eu cheguei, Amor,
      Não se poderia dizer longamente...’
      Cantaram com tamanha suavidade, de modo tão agradável, que o rei, que as olhava e as ouvia, imaginava que todas as hierarquias dos anjos ali tivessem descido, para cantar. Finda a canção, ajoelharam-se as jovens e, com reverência, solicitaram, ao rei, licença para se irem.
      Ainda que lhe desagradasse o despedi-las, o rei deu-lhes permissão, fazendo-o de boa vontade apenas na aparência. Terminado o jantar, o rei e seus companheiros tornaram a montar os cavalos; apresentaram suas despedidas ao Senhor Néri; e todos, ora discorrendo sobre uma coisa, ora sobre outra, voltaram ao castelo real.
      Ali, conservou o rei em segredo o seu afeto. Por mais interessante que fosse o assunto que se discutisse, ele não podia esquecer a beleza e a graça de Genebra, a bela; por amor a Genebra, tinha também amor à irmã dela, que a ela se parecia; e de tal maneira se enredou nas malhas do amor, que quase não podia mais pensar em coisa alguma.
      Procurando sempre novas razões, o rei procurara nutrir, com o Senhor Néri, uma amizade bem íntima; com freqüência visitava-lhe o jardim, ainda que a verdadeira causa que o movia fosse a de encontrar-se ali com Genebra. Em dado momento, não podendo mais suportar aquele estado de coisas, começou a pensar em tirar do pai não apenas uma das filhas, senão ambas ao mesmo tempo; não encontrava outro modo de decidir aquela situação; assim, revelou o seu amor e suas intenções ao Conde Guido; e este, que era homem muito digno, lhe disse:
      - Senhor, fico muito surpreso com o que o Senhor me diz; e minha surpresa é tanto maior, que talvez nenhuma outra pessoa teria, quanto mais me parece que pude conhecer, mais do que ninguém, os seus hábitos, desde a infância até os dias atuais. Jamais me pareceu, nunca, que, em sua mocidade, na qual o amor mais facilmente poderia fincar as garras, o senhor tenha sofrido tal paixão; portanto, ao conhecer que sente essa paixão agora, que já está perto da velhice, parece-me tão inusitado e tão estranho o fato de o senhor estar amando por amor, que isso quase assume aspecto de milagre. Tivesse eu de repreendê-lo, por isso, sei muito bem o que diria; é necessário que considere que o senhor ainda está, em seu novo reino, com a armadura no corpo e as armas na mão; que reside no meio de uma nação não conhecida, cheia de falsidades e de traições; que está sempre profundamente ocupado com cuidados enormes e assuntos de importância; que o senhor nem mesmo pode descansar um pouco; e que, além e acima de tudo isso, o senhor possa ter achado lugar para tão fogoso amor! Não é isto uma atitude própria de rei magnânimo; pelo contrário, é mais condizente com um jovenzinho covarde. Além disso — o que é muito pior —, o senhor diz que decidiu tolher ambas as filhas do pobre cavaleiro que, em sua casa, tem homenageado o senhor, muito mais do que pode; considere-se que, para homenagear ao senhor, ele apresentou-lhe aquelas duas filhas quase nuas, com isso testemunhando quão grande é a confiança que deposita no senhor; ele está certo de que o senhor é mesmo um rei, e não lobo rapace. Será que já deixou a sua memória a série de violências que Manfredi praticou contra as mulheres, que foi, aliás, o que propiciou a sua entrada neste reino? Qual a traição que se praticou mais merecedora de eterno castigo do que esta, consubstanciada no fato de o senhor tolher, ao cavaleiro que lhe rende todas as homenagens, a sua honra e sua esperança, e ainda o seu consolo? Que se haveria de dizer do senhor, se o senhor a cometesse? Pode ser que o senhor imagine que seria desculpa suficiente o declarar: ‘Cometi-a porque ele é gibelino!’ Quer dizer, então, que esta é a justiça dos reis? É deste modo que são tratados aqueles que à sombra dos reis se acolhem, sejam eles quais forem? Relembro-lhe, rei, que é imensa a sua glória, por ter vencido Manfredi; muito maior glória, contudo, em tal caso, é o senhor vencer a si mesmo. Tem o senhor o dever de corrigir os outros; assim, procure vencer-se a si próprio; supere e refreie este apetite; não permita que, com tal nódoa, se arruíne tudo o que o senhor, com tanta glória conquistou.
      Tais palavras feriram amargamente o espírito do rei; e mais ainda o afligiram quanto mais sabia ele que diziam a verdade. Por isso, após alguns suspiros sentidos, disse o rei:
      - Conde, parece-me que qualquer outro inimigo, por mais forte que seja, com mais facilidade e mais comodamente é vencido, por um guerreiro experiente, do que seu próprio desejo. Entretanto, ainda que a dor seja imensa, e apesar de ser inestimável o esforço necessário, suas palavras feriram-me tanto, que cheguei a esta conclusão: é preciso, antes que se passem muitos dias, que eu prove, com atos, que sei tão bem vencer os outros quanto vencer-me a mim mesmo.
      Poucos dias depois de ditas estas palavras, o rei voltou a Nápoles; quis, com isso, impedir a oportunidade de agir de maneira vil, fosse sobre o que fosse; quis, também, premiar o cavaleiro, por todas as homenagens que recebera da parte dele; certamente era-lhe difícil tornar outro homem possuidor daquilo que ele mais ardorosamente amava; mesmo assim, preparou o seu próprio espírito, de modo que resolveu realizar o casamento daquelas duas jovens, não mais como se fossem filhas do Senhor Néri, e sim como filhas suas.
      Com enorme prazer do Senhor Néri, o soberano dotou magnificamente as duas mocinhas; depois, deu Genebra, a bela, ao Senhor Maffeo da Palizzi, e Isolda, a loira, ao Senhor Guilherme delia Magna; eram ambos cavaleiros de alta nobreza e notáveis barões. Tendo-as dado como esposas, o rei, assaltado por inenarrável dor, partiu para as Apulhas; ali, fazendo esforços inauditos e incessantes, macerou o seu infinito apetite de amor; finalmente, depois de partir e quebrar as cadeias do amor, conseguiu libertar-se daquela paixão pelo resto de sua vida.
      Algumas pessoas poderão dizer, talvez, que foi coisa de pouca monta o fato de um rei ter realizado o casamento de duas jovenzinhas; e concordarei com elas; porém direi que essa coisa foi imensa, foi até enormíssima, considerando que, no caso, se tratou de gesto praticado por um rei apaixonado exatamente pela jovem cujo matrimônio ele propiciou; promovendo esse casamento da mulher que ele adorava com outro cavaleiro, ele, o soberano, não tomou, para si, nem fronde, nem flor, nem fruto de seu amor.
      Desta maneira, portanto, é que se comportou o rei magnânimo; ele premiou de maneira superior o cavaleiro que lhe rendera tantas homenagens; honrou, de modo elogiável, as mocinhas amadas; e venceu-se a si próprio.”

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