quinta-feira, 16 de julho de 2015

Decamerão - Boccaccio

Oitava Novela da Décima Jornada do “Decamerão” de Giovanni Boccaccio
Tito e Gisíppo: a Amizade Superando o Amor e a Morte

      “Na época, portanto, em que Otaviano César não se chamava ainda Augusto, porém já exercia suas funções no triunvirato, e governava os destinos do império de Roma, existiu, na mesma cidade de Roma, um gentil-homem que tinha o nome de Públio Qüínzio Fulvo. Tal gentil-homem tinha um filho chamado Tito Qüínzio Fulvo, de extraordinária inteligência, e que por isso fora estudar filosofia em Atenas; na medida da possibilidade, o pai recomendou o filho a um nobre de nome Cremete, seu amigo de muitíssimo tempo. Por isso, Tito hospedou-se nas próprias casas de Cremete, junto com um filho deste, que tinha o nome de Gisíppo. Tito e Gisippo foram também colocados, por Cremete, a estudar a doutrina, sob os cuidados de um filósofo de nome Aristipo. Prolongando-se a convivência íntima dos dois rapazes, os seus hábitos identificaram-se, e um grande sentimento de fraternidade nasceu entre eles. Consolidou-se tanto a amizade, que os jovens jamais se separaram, senão, por fim, por intervenção da morte. Nenhum dos dois se sentia bem, nem se julgava em paz, senão quando tinha o outro junto a si.
      Ambos iniciaram juntos os estudos. Eram os dois dotados igualmente de elevadíssima inteligência; um e outro subiam às gloriosas alturas da filosofia, com igual passo e procedimento espantoso. Nessa existência perseveraram durante três anos, com imenso prazer de Cremete, que não sabia mais a qual dos dois ele considerava mais seu filho.
      Passados aqueles três anos, como sucede com tudo, sucedeu que Cremete, sendo já velho, deixou este mundo; ambos sofreram, com isso, uma dor profunda, exatamente como se tivessem perdido um pai comum a ambos; nem os amigos, nem os parentes de Cremete conseguiam entender a qual dos dois deveriam confortar, por causa do doloroso transe.
      Meses depois, constatou-se que os amigos e parentes de Gisippo encontraram-se com ele; e, juntamente com Tito, aconselharam-no a casar-se; acharam, para ele, uma moça de esplêndida beleza, e que provinha de nobilíssima família; era cidadã de Atenas; tinha o nome de Sofrônia; e tinha, talvez, a idade de uns quinze anos. Aproximando-se o prazo das futuras núpcias, pediu um dia Gisippo a Tito que fosse, com ele, ver a noiva, pois ele ainda não a conhecia. Ambos chegaram à casa da jovem; ao recebê-los, ela sentou-se entre os jovens; então Tito, quase como se fosse examinador da beleza da noiva de seu amigo, pôs-se a fitá-la com a mais reconcentrada atenção; todas as partes do corpo dela foram muito de seu agrado; e, enquanto ele elogiava, no seu íntimo, porém com o maior entusiasmo, as tais partes, ficou apaixonado por Sofrônia; ainda assim, nenhuma sombra de tal sentimento surgiu em sua fisionomia; entretanto, sua paixão já era maior do que a que qualquer namorado possa ter por sua amada. Depois de estarem algum tempo naquela casa, ambos os amigos se retiraram, regressando para a própria residência.
      Tito, ali, foi para o seu quarto, onde, sozinho, começou a pensar na jovem de quem gostara tanto; e tanto mais ardia de paixão por ela, quanto mais se detinha no desenrolar-se daqueles pensamentos. Em determinado momento, percebeu isto; suspirou muitas vezes, com sinceridade, e pôs-se a dizer:
      - Ai de você! Que existência miserável é a sua, Tito! Onde e em que você põe o espírito, o amor e a esperança? Pois então você ignora, seja pelas honras e pelos benefícios que recebeu da parte de Cremete e de sua família, seja pela amizade integral que existe entre você e Gisippo, de quem a jovem é noiva, que você deve ter, a respeito dela, somente a reverência que se tem por uma irmã? Quem é, portanto, essa que você ama? Para onde se deixa você arrastar pela ilusão do amor? Para onde permite você que o leve a ilusória esperança? Abra os olhos da inteligência, e reconheça-se a si próprio, ó desventurado! Dê lugar à razão: refreie o apetite concupiscente; modere os desejos menos sadios; erga e dirija os seus pensamentos para outra coisa; contenha, agora, no princípio, a sua libido; vença-se a si próprio, enquanto é tempo! O que você pretende não está correto; não é honesto; isso que você está propenso a fazer é coisa de que você deveria fugir, mesmo que estivesse certo de obtê-la - certeza, aliás, que você não possui; e deveria fugir disso, se levasse em conta o que a verdadeira amizade exige, e o que é o seu dever. Que é que você vai fazer, então, Tito? O mais correto é pôr de parte o amor inconveniente, se é que quer fazer o que é correto que se faça!
      Depois, tornando a lembrar-se de Sofrônia, pôs-se a meditar em sentido inverso ao anterior; tudo o que antes falara foi desdito; e assim começou ele a raciocinar:
      - São muito mais poderosas as leis do amor do que algumas outras. Elas suplantam não apenas as leis da amizade, como ainda as leis divinas! Quantas vezes já sucedeu o pai vir a amar a filha, o irmão amar a irmã, a madrasta o afilhado? Coisas muito mais monstruosas do que a circunstância de um amigo amar a mulher de outro já se fizeram mil vezes seguidas. Além disso, sou jovem, e a mocidade está completamente submetida às leis do amor. Por isso, o que é agradável ao amor, deve agradar a mim também. Os atos honestos devem ser cometidos por pessoas mais maduras; quanto a mim, não posso pretender senão ser o que o amor quer. A beleza desta jovem merece que todos a amem; e, se eu amo, sendo moço, quem é que poderá criticar-me? Não a amo porque ela seja de Gisippo; ao contrário; amo-a porque a amaria fosse de quem quer que fosse! Quem comete pecado aqui, é o Destino, que deu esta mulher a Gisipno, que é meu amigo, em lugar de a conceder a outro sujeito. Se ela deve ser amada, como de fato deve, e com méritos, pela sua beleza, Gisippo deve sentir-se muito mais contente por saber que sou eu quem a ama, e não outro!
      De tal raciocínio, motejando de si próprio, Tito retornou outra vez ao anterior raciocínio; e deste modo agiu sucessivamente, indo deste pensamento para aquele, e retornando daquele para este, não somente no decorrer daquele dia e daquela noite, como ainda no curso de outros dias e de outras noites; enquanto isto, perdeu o apetite e o sono, terminando por ser obrigado a recolher-se ao leito, pela sua fraqueza.
      Tendo-o visto preocupado no correr de muitos dias, e vendo-o agora doente, Gisippo sentiu-se muito pesaroso; pondo em ação toda sua habilidade e toda sua solicitude, e sem jamais deixar a cabeceira do amigo, esforçou-se no sentido de o consolar; com freqüência e com insistência, indagou-lhe pela razão de suas preocupações e de sua doença. Entretanto, como Tito lhe apresentava, como resposta, mentiras e invencionices, e como Gisippo notava que se tratava de mentiras e invencionices, acabou Gisippo por fazer pressão sobre o amigo, para o obrigar a falar; efetivamente, Tito, por entre lágrimas e suspiros, retrucou deste modo:
      - Gisippo, se fosse do agrado dos deuses, a morte me traria muito mais satisfação do que o prosseguir vivendo, se se pensar que o Destino fez com que você me levasse a um local onde seria necessário que eu desse provas de minha virtude, e onde, com imensa vergonha para mim, me deixei vencer por essas provas. Não há dúvida, porém, de que espero para breve a recompensa que no caso me cabe, quero dizer, a morte; muito mais agradável para mim é o morrer, do que o viver com a lembrança da vileza; tal vileza é o que vou revelar-lhe agora, apesar de não poder revelá-la sem me ruborizar; conto-o, já que não posso, nem devo, esconder nada, principalmente a você.
      Contando tudo desde o princípio, Tito mostrou a Gisippo qual era a razão de suas preocupações; deu-lhe a conhecer os pensamentos que alimentara; a batalha de raciocínios que desenvolvera; e que ordem de raciocínios saíra vitoriosa da luta; finalmente, expôs-lhe o desejo que tinha de morrer, por causa do amor que alimentava por Sofrônia. Declarou que estava plenamente consciente de quão desacertado era esse amor; por isto tinha a si próprio imposto a penitência da morte. Aliás, esperava chegar logo ao fim. Gisippo escutou tudo isto; viu o pranto derramado pelo amigo; meditou durante muito tempo sobre o caso, pois se sentiu preso pela beleza da noiva, ainda que com um pouco mais de moderação do que o amigo; e ali mesmo resolveu que a vida do amigo lhe era mais querida do que o amor de Sofrônia. Sendo assim, levado a chorar também, por causa do pranto de Tito, respondeu-lhe entre as lágrimas:
      - Tito, não estivesse você necessitado de consolo, como está, eu me queixaria de você a você mesmo, visto que foi você o homem que violou nossa amizade, já que manteve oculta, por tão grande espaço de tempo, sua desesperada paixão. Não lhe pareceu honesto o seu amor, porém o certo é que nem as coisas desonestas, nem as honestas, devem ser escondidas ao amigo; pois quem é amigo desfruta o prazer dos eventos honestos que se dão com o amigo; e, com respeito aos eventos desonestos, esforça-se por afastá-los do espírito e da existência do amigo. Contudo, agora vou ater-me ao presente; e quero tratar daquilo que me parece tornar-se mais necessário neste momento. Se você, realmente, ama ardentemente Sofrônia, minha noiva, isto não me causa espanto; ficaria maravilhado, se isto não ocorresse, primeiro porque conheço a beleza dela, e, em seguida, porque sei da nobreza do espírito que você tem, espírito este que está propenso a ser dominado pelo amor, em proporção tanto maior quanto mais elevado é o objeto da afeição. Quando mais justamente ama você Sofrônia, tanto mais injustamente se queixa do Destino, ainda que você não se manifeste nesse sentido, pelo fato de o Destino tê-la reservado para mim. Parece-lhe que o ato de a amar seria honesto, se ela fosse amada por outro homem qualquer, menos por mim. Entretanto, se você é ilustrado, como sempre o foi, a quem poderia o Destino tê-la reservado, senão a mim, para que você lhe rendesse graças? Qualquer outro sujeito que a recebesse haveria de preferir ficar com ela, e não com você, por mais honesto que fosse o amor que você estivesse sentindo. Você não deve esperar igual comportamento de minha parte, se é que você me tem na conta de seu amigo, como de fato o sou. E o motivo é este: não me recordo de nada que, após termos iniciado nossa amizade, não tenha sido tanto meu quanto seu. Se os fatos evoluíssem de tal maneira que, depois, não houvesse mais nenhum remédio, eu agiria, desta feita, como agi das outras vezes; contudo, os fatos estão, por enquanto, em tal situação, que eu posso fazer com que a jovem seja apenas sua; e procederei deste modo. Não vejo por que motivo deveria a minha amizade ser preciosa, para você, se, por um ato que pode ser honestamente realizado, eu não soubesse tornar a jovem exclusivamente sua, no caso de que isso dependa somente da minha vontade. É certo que Sofrônia é a minha noiva; que eu a amava muito; e que estava aguardando com muita ansiedade as núpcias, para as comemorar com formidáveis festas; porém, já que você, que é mais esclarecido do que eu, quer, com muito mais ardor, uma moça tão bela e querida como é ela, fique sossegado; ela virá ao meu quarto, não como minha mulher, e sim como a sua. Conseqüentemente, deixe de preocupar-se; afaste de si a tristeza; recupere a boa saúde perdida; retome o conforto e a alegria; e aguarde, deste momento em diante, com satisfação, a recompensa dos merecimentos do seu amor, que é muito mais digno do que o meu o era.
      Ouvindo Gisippo falar deste modo, Tito sentiu que a fagueira esperança de receber o que lhe dava prazer se contrabalançava com a razão fria, que lhe trazia pejo; mostrava-lhe a razão que, quanto maior era a liberalidade de Gisippo, tanto mais difícil e constrangedor se tornava o uso dela. Diante disto, sem deixar de chorar, com muito esforço, disse Tito:
      - Gisippo, a sua amizade, verdadeira e generosa, com muita clareza me indica o que eu devo, de minha parte, fazer. Não queiram os deuses que eu receba, para ter em minha companhia, a mulher que eles deram a você, considerando-o mais digno dela! Estivessem eles convencidos de que ela melhor estaria comigo, deve-se convir em que nem você, nem outra pessoa qualquer, deveria presumir que ela seria dada a você. Faça uso, portanto, da escolha de que você foi alvo, siga o discreto conselho; fique com o presente que recebeu; e deixe que eu fique com este pranto que os deuses reservaram para mim, julgando-me indigno de tanto bem; eu me consumirei com ele. Ou então superarei este pranto, e isto lhe será agradável saber; ou o pranto há de vencer-me, e então estarei liberto de todo sofrer.
      A tais argumentos, notou Gisippo:
      - Tito, se nossa amizade me dá permissão a ponto de conceder que eu obrigue você a curvar-se a uma circunstância que me é prazerosa, e a ponto de levar você a atender às minhas imposições, então lhe afirmo que é fazendo o que lhe vou propor que eu pretendo usá-la; caso você não atenda de boa vontade aos meus rogos, eu, usando aquela força que é lícito usar para o bem do amigo, farei com que Sofrônia seja sua. Sei bem o que podem as forças do amor; e igualmente sei que elas já levaram, não apenas uma vez, porém muitas mil vezes, a uma não merecida morte desgraçada pessoas que amaram e não tiveram correspondência ao seu amor. Além disso, vejo você tão próximo da morte, que creio que não poderia voltar atrás, nem dominar as suas lágrimas; ao contrário - prosseguindo nesse estado, acabaria sendo derrotado. Sem qualquer dúvida, se você viesse a morrer, eu iria logo juntar-me a você. Então, mesmo que por outra coisa eu não lhe tivesse estima, a sua existência me seria sempre cara, pois ela também é a razão da minha existência. Sofrônia, portanto, será sua, já que fácil não lhe seria achar brevemente outra mulher que tanto lhe agradasse; com respeito ao meu amor, ele, dirigindo-se a outra criatura, dará satisfação tanto a mim quanto a você. É possível que, num caso semelhante, eu talvez não me mostrasse tão liberal, caso fossem tão raras as mulheres dignas de se tornarem esposas, como raros são os homens dignos de se tornarem amigos. Considerando que eu posso achar, tão depressa quanto possível, outra mulher, porém não outro amigo, prefiro, antes de qualquer coisa, trocá-la por outra jovem, a perder você. Não digo que prefiro perdê-la, já que, cedendo-a a você, não a terei perdido; pelo contrário, trocarei um bem por outro ainda melhor. Por esta razão, se minhas súplicas alguma influência exercem em seu espírito, rogo-lhe que abandone tão grande aflição, e, ao mesmo tempo, console-se a você e a mim. Prepare-se, portanto, com boa e justa esperança, para receber aquela alegria que o seu amor tanto quer que lhe seja dada pela pessoa amada.
      Tito estava envergonhado de aceitar, de consentir que Sofrônia se tornasse sua esposa; assim, resistia a admitir a sugestão de Gisippo; de um lado, contudo, instigava-o o amor; de outro, animavam-no as palavras confortadoras do amigo; e disse, então:
      - Aí está, Gisippo! Nem sei mais o que devo fazer: se seguir o seu conselho, ou atender ao meu impulso, pois, seguindo sua opinião, farei o que você roga que eu faça, por ser o que mais me agrada. Considerando, pois, que tamanha é sua generosidade, a ponto de suplantar minha fraca vergonha, procederei como você sugere. Contudo, esteja muito certo disto: de que não o faço como homem que não saiba estar recebendo, de você, não apenas a mulher amada, porém igualmente, com ela, a salvação da própria vida. Queiram os deuses, se possível, que eu demonstre ainda, com honras, homenagens e estima, até que ponto me é profundamente grato isto que você se esforça em fazer por mim; você mostra mais amor por mim do que eu próprio.
      Após estas palavras, falou Gisippo:
      - Tito, em tal assunto, se é que queremos que o que combinamos se realize, penso que devemos agir pelo modo que agora lhe exponho. Como você sabe, após demoradas manobras de meus parentes e dos parentes de Sofrônia, esta moça se tornou minha noiva. Assim sendo, se eu, neste instante, lhe dissesse que não a desejo para esposa, nasceria disso imenso escândalo; colocaria em polvorosa os meus parentes, e também os dela. Nada disto me incomodaria, se por tal preço conseguíssemos a certeza de que ela se tornaria sua mulher. Contudo, receio que, se eu a deixar, neste momento, os parentes dela não se aprestem a dá-la de pronto a outro homem; e é também possível, em tal hipótese, que o outro homem não venha a ser você; assim sendo, você perderá aquilo que eu deixei de ter. Por essas razões, parece-me — se você concordar com minha sugestão — que é preferível eu continuar com aquilo a que já dei início; vou levá-la para minha casa, como se ela fosse minha, dando inteiro curso às núpcias; em seguida você, às ocultas, como sabemos fazer, irá deitar-se com ela, como se ela já fosse sua mulher. Mais tarde, à seu tempo e em seu lugar, contaremos, a ela e aos dela, o que tiver ocorrido. Se todos estiverem de acordo, muito bem; se eles se mostrarem descontentes, o que estiver feito não poderá ser desfeito; não se poderá retornar atrás; e todos, assim, estarão obrigados a dar-se por contentes.
      Este conselho agradou a Tito. Por isso, Gisippo recebeu Sofrônia em sua casa, como mulher sua, quando Tito já estava curado e bem disposto; fizeram-se grandes festas; quando, entretanto, caiu a noite, as mulheres deixaram a nova esposa na cama do seu marido, e logo se retiraram. Ficava o quarto de Tito ao lado do de Gisippo; entre os dois havia comunicação, de maneira que se podia passar de um para o outro. Gisippo estava em seu quarto; todas as luzes estavam já apagadas; ele, então, no mais absoluto silêncio, dirigiu-se ao quarto de Tito, e disse-lhe que fosse deitar-se na cama em que Sofrônia se deitara. Vendo isto, Tito sentiu-se superado pela vergonha; quis arrepender-se; e chegou mesmo a recusar-se fazer o que lhe cabia, na execução do plano do amigo; contudo, Gisippo procedia com a mais absoluta sinceridade; suas palavras exprimiam exatamente o seu estado de alma; por isto, insistiu; e, após demorada insistência, pode levar Tito a agir como se combinara.
      Logo que Tito chegou à cama de Sofrônia, tomou a jovem em seus braços; estava tão emocionado, que quase soluçava; contudo, ainda assim, com voz trêmula por causa das confusas emoções do momento, perguntou-lhe se queria ser sua mulher. Sofrônia supunha tratar-se de Gisippo, evidentemente; e retrucou que sim; então, ele meteu-lhe num dos dedos da mão um riquíssimo anel, e declarou:
      - E eu desejo ser seu marido!
      Depois, consumado o matrimônio, ele desfrutou, dela, demorado e amoroso prazer, sem que ela, nem outra pessoa qualquer, desconfiasse não ser Gisippo o homem que estava com ela.
      Assim, estando em tal estado o casamento de Sofrônia e de Tito, Públio, seu pai, faleceu. Por isso, escreveu-se a Tito, pedindo que ele, sem tardança, fosse a Roma, para ali ocupar-se de seus negócios; diante de tal fato, Tito resolveu ir a Roma, levando com ele Sofrônia e Gisippo. Contudo, isto não era possível de se fazer, com desenvoltura, sem se revelar como as coisas tinham ocorrido. Deste modo, em certo dia, Tito e Gisippo chamaram Sofrônia para dentro de um dos quartos, e ali lhe contaram o que se passava; e, após muitos circunlóquios, Tito pôde explicar o que ocorrera entre ele e o seu amigo.
      Sofrônia encarou, com leve desdém, os dois homens; e, logo em seguida, pôs-se a chorar abundantemente; queixou-se, com profunda amargura, da burla que Gisippo fizera contra ela. Contudo, antes que se fizesse qualquer comentário, na casa de Gisippo, Sofrônia partiu para a casa de seu pai, onde narrou, ao pai e à mãe, a burla que ela e eles tinham sofrido da parte de Gisippo; declarou, em seguida, que, pelas circunstâncias, ela era esposa de Tito e não de Gisippo, como todos pensavam. A revelação foi um choque para o pai de Sofrônia; estabeleceu-se profunda querela, que durou bastante tempo, entre os parentes da jovem e os parentes de Gisippo; e a perturbação dos ânimos e as controvérsias se aprofundaram bastante.
      Gisippo começou a odiar tanto os seus como os parentes de Sofrônia; e afirmavam todos que ele não somente se tornara digno de censura, como ainda de severo castigo. Contudo, ele dizia que fizera um ato honesto; ajuntava que os parentes de Sofrônia deveriam até dar-lhe graças, pois, que, com o tal ato, ele, Gisippo, fizera com que Sofrônia se casasse em condições muito mais vantajosas.
      De outra parte, Tito notava tudo o que ocorria, e ressentia-se; era com imenso desgosto que assistia ao evoluir das censuras ao seu companheiro. Tito sabia, contudo, que era hábito dos gregos o adiantarem-se o mais possível, à valentona, com palavras e ameaças, até que aparecesse alguém que lhes desse a devida resposta; quando aparecia esse alguém, eles tornavam-se não apenas humildes, como mesmo vis; e, em dado momento, resolveu que aquela troca de ofensas, de recriminações e de injúrias não deveria mais continuar sem que alguém respondesse por elas. Tito tinha espírito romano e inteligência ateniense. Com modos muito corteses, reuniu, certa vez, os parentes de Gisippo e de Sofrônia, num templo. Em seguida, entrou, no tal templo, seguido apenas por Gisippo; e assim falou àqueles que estavam ali, expectantes:
      - Graças a muitos pensadores, crê-se que aquilo que é feito pelos mortais advenha de disposição e providência dos deuses; assim, alguns querem que seja decorrência de uma necessidade tudo o que se pratica, ou que em algum tempo se vier a praticar; contudo, existem aqueles que reconhecem esta necessidade, esta imperiosidade, apenas quanto ao que já se fez. Todas estas opiniões, quando a gente as quer interpretar com certa amplitude de vistas, mostram claramente que o fato de alguém repreender o que está feito, e que não se pode mudar, não é senão uma tentativa daquele que censura para se mostrar mais sábio do que os deuses. Ora, devemos crer que os deuses, com razão eterna e sem o menor erro, dispõem e governam, seja a nós, seja aos nossos assuntos. Assim sendo, facilmente pode-se ver quanto é destituída de razão e estúpida a presunção que deseja subverter os atos que os deuses determinaram; com facilidade podem-se ver, igualmente, quantas e quais algemas e grilhetas merecem os mortais que se deixam levar por semelhante ousadia. Conforme a minha maneira de pensar, vocês todos estão incluídos no número dos tais mortais, se é certo que afirmaram e continuam afirmando o que eu soube que afirmaram e que prosseguem dizendo, a propósito do fato de Sofrônia ter-se tornado minha esposa, embora vocês a tenham dado, a princípio, a Gisippo. Vocês não consideram a contingência de ter sido antes disposto ab aeterno, que Sofrônia deveria pertencer a mim, e não a Gisippo; que isto fora determinado pelos deuses, vocês vêem agora, pelas conseqüências. Entretanto, muitas pessoas acham duro e grave o ato de entender, quando se fala da secreta providência e da oculta intenção dos deuses; essas pessoas pressupõem que os deuses não se interessam pelos nossos assuntos. Diante disto, tenho a satisfação de descer ao entendimento mais chão dos homens. Agindo deste modo, vejo-me constrangido a fazer duas coisas completamente diferentes de meus costumes: a primeira é louvar-me a mim mesmo, até certo ponto; a outra, é a de me queixar um tanto do procedimento dos outros, humilhando-os. Entretanto, como não desejo afastar-me da verdade, nem fazendo uma coisa nem outra, e já que o assunto que aqui nos traz reunidos o requer, farei aquilo que é meu dever realizar. Vocês queixam-se mais por estímulo da ira do que pelo conselho da razão; com falatórios e mesmo com atoardas incessantes, vituperam, mordem e prejudicam Gisippo, porque ele me deu, como esposa, conforme a determinação e a vontade dele mesmo, a jovem que vocês, pela sua decisão e sua vontade, tinham-lhe entregue. Por esta nobre ação, acho Gisippo altamente digno dos maiores elogios. As razões do meu parecer são estas: primeiro, a de que ele procedeu como todo amigo deve proceder; segundo, a de que ele procedeu muito mais esclarecidamente do que vocês se tinham comportado. O que as sagradas leis da amizade requerem que um amigo faça, em proveito de outro, é coisa que não pretendo expor neste momento; contento-me com o singelo fato de lhes ter lembrado que os laços da amizade prendem e ligam muito mais do que os laços do sangue, ou do parentesco. Considere-se que temos os amigos que queremos, enquanto nossos parentes são aqueles que o Destino nos dá. Pelo fato de Gisippo amar mais a minha vida, do que a benevolência mostrada por vocês, é que ele procedeu assim; sendo eu seu amigo, como de fato me considero, não deve ninguém ficar maravilhado pelo que ele fez. Vamos, contudo, à segunda razão; nesta, com maior insistência, devo demonstrar-lhes que Gisippo foi muito mais sábio do que vocês; não me parece que vocês tenham nenhum sentimento, nem ideia, do que venha a ser a providência dos deuses; vocês conhecem, muito menos ainda, os afetos da amizade. Esclareço que a argúcia que vocês têm, o conselho que podem dar, e a resolução que adotaram, fizeram com que Sofrônia fosse entregue a Gisippo, que é jovem e filósofo; a argúcia, o conselho e a resolução de Gisippo a deram a mim, que sou jovem e filósofo. O conselho de vocês deu Sofrônia a ateniense; o de Gisippo, a romano; o conselho de vocês, a um jovem valoroso; o de Gisippo, a um jovem ainda mais valoroso; o de vocês, a um rapaz rico; o de Gisippo, a um moço muitíssimo rico. O conselho de vocês deu Sofrônia a um rapaz que não somente não lhe tinha amor, como ainda mal e mal a conhecia; o de Gisippo, a um moço que a amava acima de tudo neste mundo, e que a queria mais do que à própria existência. Para que vocês se convençam de que o que eu digo é verdadeiro e muito mais merecedor de elogios do que o que vocês tinham feito, considerem, primeiramente, uma coisa, e em seguida outra. Que eu sou jovem e filósofo, como o é Gisippo, tanto o meu rosto como os meus estudos podem demonstrá-lo; e sobre isto não será necessário que nos estendamos mais. A mesma idade é sua e minha; nos estudos, agimos sempre juntos, e juntos fizemos progressos. É certo que ele é ateniense, enquanto eu sou romano. Contudo, se se quiser disputar a glória das cidades, eu direi que venho de cidade livre, e ele é originário de cidade tributária; afirmarei que sou de cidade dona de todo o mundo, e ele de cidade que obedece à minha; afirmarei que sou de cidade floridíssima com respeito a armas, a império e a estudos, enquanto ele apenas pode recomendar os estudos que são feitos na sua. Além do mais, ainda que vocês aqui me vejam, em trajes de estudioso muito humilde, não procedo da escória do populacho romano. Minhas casas e os lugares públicos de Roma estão cheios de imagens antigas de meus antepassados; os anais de Roma estão repletos de muitas vitórias alcançadas pelos Qüínzi, no Capitólio de Roma. Note-se que a glória de nosso nome não ficou murcha pela velhice; pelo contrário, ela floresce ainda hoje, mais do que nunca. Por comedimento, calo-me a respeito de minhas riquezas, pois acho, em meu espírito, que a pobreza honesta é o antigo e valioso patrimônio dos nobres cidadãos de Roma; geralmente, a riqueza é condenada pela opinião do povo, que, contudo, lhe admira e elogia os tesouros; de tal riqueza, não como ambicioso, porém como rapaz querido pelo Destino, possuo grande cópia. Sei muito bem que seria — como deveria ser e é — coisa ambicionada o ter Gisippo por parente, aqui em Atenas; porém eu não lhes devo ser menos caro, por qualquer razão, em Roma, se vocês considerarem que terão em mim, ali, um ótimo hospedeiro, e mesmo um patrocinador útil, solícito e poderoso, tanto no que diz respeito aos negócios públicos, como no que tange aos assuntos particulares. Portanto, pondo-se de parte o capricho da vontade, e levando-se em conta somente as razões precípuas, quem é que haverá de apreciar e recomendar mais os conselhos de vocês, do que os de meu amigo Gisippo? Certamente, ninguém. Sofrônia está, pois, bem casada com Tito Qüínzio Fulvo, antigo, nobre e rico cidadão romano, e amigo de Gisippo. Quem disso se lamenta não faz o que deve, nem sabe exatamente o que faz. Devem existir pessoas, quiçá, que digam que Sofrônia não se queixa pela circunstância de ser mulher de Tito, queixando-se, contudo, pelo modo como se fez sua esposa; foi uma maneira oculta, furtiva, sem que de nada seus amigos, nem parentes, tivessem conhecimento. Isto não é milagre, nem coisa que se tenha feito pela primeira vez. Ponho de parte, de boa vontade, as jovens que se casaram contra a própria vontade dos pais; também deixo de parte as que fugiram com os seus amantes, e foram, primeiro, amigas e não esposas; do mesmo modo deixo, igualmente, as que revelaram suas uniões com a gravidez e o parto, antes de a patentearem pelas palavras; em tais casos, a imutabilidade das contingências fez com que se tornasse necessária a aprovação daquilo que antes haviam cometido. Ora, nada disto se passou com Sofrônia; ao contrário, em plena ordem, de maneira discreta, com toda a honestidade, ela foi dada a Tito por Gisippo. Poderá haver quem afirme que o homem que com ela se casou é um a quem não cabia esse direito. As queixas de tal ordem são estúpidas e feminis, e decorrem de considerações inconsistentes. Desta feita, não faz o Destino uso de caminhos e instrumentos novos, para levar as coisas aos fins predeterminados. Por que devo preocupar-me se é o sapateiro, mais do que o filósofo, que determina, conforme sua vontade, de modo oculto ou de modo evidente, algo que a mim diz respeito, desde que a finalidade seja boa? Certamente, devo guardar-me, para comprovar se o sapateiro não é discreto, para notar se ele não pode fazer mais do que faz, e para lhe dar os agradecimentos pelo que fizer. Se Gisippo deu a Sofrônia um bom casamento é tolice dispensável o sair à rua lamentando-se dele e da maneira pela qual agiu. Se vocês não têm confiança em seu bom senso, cuidem para que ele não mais se case; e apresentem-lhe os agradecimentos pelo que realizou desta feita. Apesar disso, saibam que não busquei, nem com artimanhas, nem com burlas, impor qualquer nódoa à honestidade e à limpeza do sangue de vocês, na pessoa de Sofrônia. Ainda que eu a tenha desposado às ocultas, não apareci como raptor, para lhe arrebatar a virgindade; também não quis possuí-la de modo menos honesto, como se eu fora seu inimigo, e como se recusasse o seu parentesco; pelo contrário; decididamente inflamado pela sua magnífica beleza, assim como por suas virtudes, tive fundado temor de que, se tivesse tentado consegui-la pela ordem através da qual vocês teriam querido que eu a conseguisse, não a teria conseguido; provavelmente, vocês ma teriam negado, pois, sendo ela muito querida por vocês, haveriam de temer que eu a levasse comigo para Roma, e assim os privasse de sua presença. Por isso, usei arte oculta que agora lhes pode ser mostrada; e convenci Gisippo a consentir em fazer, em meu nome, o que ele não estava propenso a realizar; em seguida, ainda que eu a amasse com todo o meu ardor, procurei ter relações com ela, não como amante, mas como marido; jamais me apressei a acercar-me dela, como ela mesma testemunhará, dizendo a verdade; leve-se em conta que eu usei as palavras protocolares, ao desposá-la, igualmente, com o anel tradicional; antes disso, perguntei-lhe se ela desejava que eu fosse seu marido; a tal pergunta, retrucou que sim. Se vocês têm a impressão de que ela foi enganada, eu não mereço recriminações e sim ela, que não me perguntou quem eu era. Tal é, assim, o grande mal, o grande pecado, o grande crime que Gisippo praticou, o meu amigo e desvelado cuidador de minha existência: o de Sofrônia ter sido induzida a tornar-se, ocultamente, mulher de Tito Qüínzio; por esse motivo é que vocês o assaltam, o ameaçam, o assediam. Que fariam vocês, contudo, além disso, se ele, em lugar de dar Sofrônia a mim, a desse a um camponês, a um desqualificado, a um criado? Que cadeias de ferro, que prisão, que cruzes seriam bastantes para o punir? Contudo, vamos por isso de parte. É chegado o tempo que eu não esperava ainda, isto é, o tempo da morte de meu pai e da necessidade da minha volta a Roma; e, como quero levar comigo Sofrônia, não hesitei em contar-lhes o que talvez por muito tempo deixaria escondido. Assim sendo, se forem prudentes, vocês mostrar-se-ão contentes; e isto porque, se fosse minha intenção enganar ou ultrajar, para mim seria fácil deixar-lhes Sofrônia, enganada e escarnecida. Não queiram os deuses, contudo, tal fato! E que nunca, em tempo algum, seja possível hospedar tão grande vilania dentro de um espírito romano! Portanto, ela, isto é, Sofrônia, é minha, pela vontade dos deuses, pelo vigor das leis humanas, pelo bom senso elogiável de meu amigo Gisippo, e ainda pela sua amorosa astúcia. Vocês parecem demonstrar que se julgam, talvez, mais sábios ainda e mais esclarecidos do que os deuses e os outros homens; e o fazem de dois modos bestiais, que me são inteiramente desagradáveis. O primeiro desses modos é o de ficar com Sofrônia, no que, por mais que me esforce em entender seu ponto de vista, vocês não têm razão nenhuma; o outro é o de tratar Gisippo como inimigo, em lugar de agradecer-lhe como justamente vocês devem fazer. Não é minha intenção, agora, dizer-lhes até que ponto vocês poderiam proceder tolamente; o que quero é dar-lhes o conselho de que depositem em terra os ódios, a fim de que esqueçam todos os rancores, e para que Sofrônia, que se recolheu à casa dos pais, me seja devolvida; assim, partirei contente; tornar-me-ei parente de vocês; e vou viver como se parente de vocês fosse. Estejam certos, contudo, do seguinte: agrade-lhes ou desagrade-lhes o que já se fez, é fora de dúvida que, se vocês quiserem proceder de maneira diversa daquela que eu sugeri, eu lhes arrebatarei Gisippo e, infalivelmente, logo que eu chegue a Roma reaverei aquela que, por justiça, é minha esposa, apesar de vocês não quererem assim considerá-la. E farei então que vocês conheçam por experiência quanto pode o furor dos espíritos romanos, quando alguém se atreve a ser inimigo deles.
      Tendo Tito falado desta maneira, levantou-se, e pôs-se de pé; seu rosto mostrava forte perturbação em seu espírito; tomou Gisippo pela mão, e mostrou que pouco se importava com todos os que enchiam o templo e que, diante daquilo, balançavam a cabeça, ameaçadoramente; andou no meio deles, e saiu. Os que ficaram lá dentro ficaram em parte acalmados pelas razões expostas por Tito, com respeito ao parentesco que se formaria, assim como com respeito à amizade que ficaria consolidada; e em parte ficaram amedrontados pelas derradeiras palavras do romano; então, por unanimidade, decidiram que era preferível ter Tito como parente, já que Gisippo não quisera sê-lo, do que ter Gisippo por parente e ganhar a inimizade de Tito. Assim, deixaram todos, o templo, e foram à procura de Tito; disseram-lhe que estavam contentes por tê-lo como parente, e Gisippo como um amigo. Então, fez-se uma festa de todos, como se fossem parentes e amigos; no final da festa retiraram-se, e depois tornaram a mandar Sofrônia a Tito.
      Como mulher inteligente, Sofrônia transformou a necessidade em virtude; o amor que tivera por Gisippo ela logo transferiu-o para Tito; e com ele partiu para Roma, onde foi recebida com muitas honras.
      Gisippo ficou em Atenas, sendo alvo de pouca estima da maioria; passado algum tempo, e por causa de algumas questões civis, foi expulso de Atenas, junto com todos os seus; saiu pobre e amargurado, sob o peso de uma condenação ao exílio perpétuo. No exílio, Gisippo não só se tornou ainda mais pobre, como também foi obrigado à prática da mendicância; desse modo, logo que pode, encaminhou-se para Roma, o que lhe pareceu ser o mal menor; e, estando ali, desejou constatar, primeiramente, se Tito se lembrava dele. Soube que Tito estava vivo, desfrutando da simpatia de todos os romanos; soube onde estavam as casas dele; e colocou-se diante delas, até quando Tito apareceu. Pela miséria em que estava, Gisippo não se atreveu a dirigir-se a Tito; entretanto, esforçou-se por ser visto por ele, para que o amigo, vendo-o e reconhecendo-o, o mandasse chamar; contudo, Tito fitou Gisippo e passou, continuando o seu caminho; teve Gisippo a impressão de que Tito o vira e o esbofeteara; lembrou-se, então, do que fizera em seu benefício; e afastou-se, cheio de revolta, assaltado pelo desespero.
      Era noite já; Gisippo estava em jejum e não possuía dinheiro; ignorava para onde ir; apenas queria, realmente, morrer; andando ao acaso, chegou a um local deserto e silvestre, nas cercanias da cidade; por ali, existia uma gruta; ele ajeitou-se no interior dela, para passar a noite. Deitado sobre a terra nua, mal coberto pelos próprios farrapos, e vencido pelo seu planto, ali dormiu.
      Logo que surgiu a manhã seguinte, penetraram na gruta dois sujeitos, que tinham estado juntos, naquela noite, roubando; sucedeu que os dois discutiram; e um deles, o mais forte, matou o outro, fugindo dali.
      Gisippo viu e ouviu quanto ocorrera; e, naquele instante, teve a impressão de que achara a maneira de morrer, o modo de caminhar para a morte, a que tanto aspirava, sem, contudo, matar-se com suas próprias mãos; por isso, não deixou a gruta; e tanto ficou no interior dela, que os sargentos da corte — que já tinham recebido informação do acontecimento — surgiram no local; os sargentos seguraram Gisippo e levaram-no, brutalmente, para a prisão. Examinado e interrogado, Gisippo confessou que matara o homem que fora encontrado morto dentro da gruta, ajuntando que não pudera, de modo algum, deixar o lugar. Por isso, o pretor, chamado Marcos Varrão, mandou que Gisippo morresse na cruz, que era o que se costumava mandar, naquele tempo.
      Apenas por acaso, Tito surgiu, naquele momento, no pretório. Encarando o rosto do infeliz condenado, e sabendo da razão pela qual lhe era judicialmente imposta a morte, logo reconheceu que se tratava de Gisippo; ficou estupefato, e tentou descobrir a maneira pela qual o amigo chegara àquela trágica situação; nem mesmo imaginava o modo como Gisippo viera de Atenas para Roma. Querendo, entretanto, e com o maior empenho, auxiliar o amigo, e não encontrando nenhum recurso para salvar-lhe a vida, senão o de acusar-se a si mesmo, não vacilou. Apresentou-se logo, e gritou
      - Marcos Varrão, o infeliz homem que o senhor acaba de condenar, protesta, por meu intermédio, e declara-se inocente. Quanto a mim, fico satisfeito apenas com uma culpa, com a qual ofendi os deuses; tal culpa é a de ter assassinado o homem que seus sargentos acharam morto, esta manhã, na gruta; e não quero, agora, ofender os deuses novamente, com a morte deste homem, que é inocente.
      Varrão ficou surpreso e aturdido; lamentou-se pelo fato de que todo o pretório ouvira a declaração de Tito; e, não lhe sendo possível, sem ferir sua honra, voltar atrás, reconsiderar, e deixar de fazer o que as leis ordenavam, mandou que Gisippo voltasse à sala do tribunal; e, diante de Tito, disse-lhe:
      - Como se explica que você tenha sido tão maluco a ponto de, sem qualquer tortura, ter confessado um crime que não praticou, e com isso arriscar a própria existência? Afirmou você que era o assassino que, esta noite, matou o homem que os sargentos acharam morto; agora, este senhor vem e me declara que não foi você, e sim ele o autor do crime. Gisippo olhou para o homem que ali estava; e viu que era Tito; notou com clareza que Tito fazia aquela afirmação somente para o salvar; e que Tito apenas queria salvá-lo como gratidão pelo serviço que antes lhe prestara; assim, chorando de emoção, manifestou-se da seguinte maneira:
      - Varrão, é verdade que eu o matei; e o interesse de Tito, pela minha salvação, é, já agora, extremamente tardio.
      Por sua vez, Tito argumentava:
      - Pretor, como o senhor vê, este homem não é de nossa cidade; foi achado, sem armas, junto ao assassinado; pode-se muito bem ver a miséria em que está, e que lhe dá motivos para morrer. Por esta razão, ponha-o em liberdade, a ele, e castigue-me, a mim, que o mereço.
      Causou espécie a Varrão a insistência dos dois homens; logo, começou a imaginar que nenhum dos dois era o culpado; por esta razão, pôs-se a pensar, com os seus botões, no modo de lhes conceder a absolvição, quando, de repente, surgiu um rapaz, de nome Públio Ambusto; era moço de esperança completamente perdida; fizera-se muito conhecido entre os romanos, como um ladrão; fora ele, realmente, o autor do assassinato na gruta. Sabendo, com certeza, que nenhum era o culpado, daqueles dois que se acusavam diante do pretor, sentiu tanta ternura em seu coração, pela inocência deles, que, levado por invencível emoção, pôs-se diante do pretor e declarou:
      - Pretor, os meus atos é que me levam a resolver a entranhada questão destes dois homens; não sei que deus me leva a isto, obrigando-me a confessar o meu pecado. Quero que o senhor saiba que nenhum destes dois tem culpa daquilo de que cada qual se acusa. Eu, na verdade, sou o sujeito que, esta manhã, assassinou aquele indivíduo; este pobrezinho, que aqui está, eu o vi, dentro da gruta; no momento do crime, ele dormia; o crime aconteceu quando eu fazia a divisão do produto dos roubos que tínhamos realizado; dividia-o com aquele que, momentos depois, matei. Com respeito a Tito, não é necessário que eu o desculpe; sua reputação é límpida por toda parte; ele não é de condição tal que desça à prática de tal crime. Por isso, o senhor pode pô-los em liberdade; faça com que eu padeça a pena que as leis ordenam.
      A esta altura, Otaviano sabia já todo o episódio. Por isso, ordenou que os três homens que se acusavam fossem levados à sua presença, para constatar a razão que cada um tinha para proceder daquele modo, querendo, forçosamente, ser o condenado. Cada um, então, narrou as suas razões. Otaviano libertou os dois primeiros, por serem mesmo inocentes; e também pôs em liberdade o terceiro, por amor aos mesmos inocentes.
      Tito conduziu Gisippo com ele; primeiramente, recriminou-o sinceramente, por ter desconfiado de sua estima; depois, entrou em grandes manifestações, como prova de alegria pelo reencontro do amigo; por fim, levou-o para a sua casa, onde Sofrônia, com muitas lágrimas de piedade, o recebeu como se fosse um seu irmão.
      Gisippo descansou um pouco; recebeu roupas condignas para vestir; e retornou aos antigos costumes, próprios de suas virtudes, de sua condição social e de sua cultura. Depois, Tito fez a comunhão de todos os seus tesouros e de todas as suas propriedades com Gisippo; como se não fosse isto suficiente, deu ao amigo, como esposa, uma irmã jovem, que tinha, e que era chamada Fúlvia. Finalmente, disse:
      - Gisippo, está em suas mãos, desde agora, o continuar residindo aqui, perto de mim, ou voltar para a Acaia, com todos os bens que eu lhe doei.
      Gisippo teve de enfrentar este dilema: de um lado, obrigava-se a manter-se fora de sua terra, devido ao exílio de que fora objeto; de outro, era levado a ficar em Roma devido à grande amizade que tradicionalmente e justamente sentia por Tito; e, assim, aquiesceu em tornar-se cidadão romano. Por isso, ele e sua Fúlvia e Tito com sua Sofrônia foram viver numa casa só, bastante espaçosa; e ali viveram, contentes e venturosos, fazendo-se ainda mais amigos, se é que isso ainda era possível, a cada dia que se passava.
      Santíssimo, portanto, é o sentimento da amizade; não apenas se faz digno de singular reverência, como ainda deve ser elogiado com perpétuo louvor; a amizade é a mãe muito discreta da magnificência e da honradez; é irmã da gratidão e da caridade; é inimiga do ódio e da avareza; está sempre disposta, sem aguardar pelas súplicas, a levar um homem a agir de modo virtuoso em relação a outro, do mesmo modo que desejaria que o outro agisse a seu respeito. Os santíssimos efeitos da amizade raramente são vistos, atualmente, em duas criaturas humanas; porém isto é culpa e vergonha da mísera cobiça dos homens, a qual, apenas considerando o proveito próprio, expulsou a amizade para além dos limites da terra, em eterno exílio.
      Que amor, que riqueza, que parentesco haveria de fazer sentir o fervor, as lágrimas e os suspiros de Tito, com tão grande repercussão, como os sentiu o coração de Gisippo, animado pela amizade? Que outro sentimento, senão o da amizade, levaria um homem a permitir que sua noiva, bela, galante e muito querida, fosse mulher de outro, como sucedeu a Gisippo em relação a Tito? Além da amizade, que leis, que ameaças, que temor seriam bastantes para arrancar, dos braços de Gisippo, fosse em lugares solitários, fosse em lugares muito escuros, fosse na própria cama, aquela belíssima jovem, obstando que ele gozasse o prazer de seus braços? Que circunstâncias sociais, que méritos, que vantagens poderiam levar Gisippo a não se importar com a perda de seus parentes, nem com a perda dos parentes de Sofrônia; a não se importar com os falatórios desonestos da populaça; a não se importar com as chacotas e os escárnios — apenas para contentar o amigo —, senão a amizade? De outra parte, quem ou o que, além da amizade, poderia induzir Tito a apresentar-se, para receber uma pena de morte, podendo, sem qualquer rangimento, fingir, com todo o decoro, não ver o que ocorria com Gisippo? Quem o levaria a dar tal passo, para tirar Gisippo da cruz — da cruz que Gisippo procurara de propósito —, senão a amizade? Quem ou o que levaria Tito a fazer-se tão extremamente generoso, a ponto de dividir em partes iguais, com Gisippo, o seu imenso patrimônio, depois que o destino arrebatou de Gisippo as riquezas que lhe dera — senão a amizade? Quem ou o que haveria de fazer com que Tito, sem nenhuma hesitação, se fizesse ardente adepto da ideia de dar a sua irmã, como esposa, a Gisippo, que estava em paupérrimas condições — senão a amizade?
      Por isso, que os homens queiram a multiplicação dos consortes, as multidões dos irmãos, a grande quantidade dos filhos; que, com sua fortuna, aumentem o número dos seus fâmulos; e não se preocupem — sejam eles quais forem — em recear os menores perigos, nem em tentar evitar os grandes perigos que ameaçam o pai, ou o irmão, ou o senhor — visto que é exatamente o contrário de tudo isto o que se observa que se faz para com o amigo.”


Nenhum comentário:

Postar um comentário