MAIÓ
DECEPÇÃO
Patativa
do Assaré
(A
história de uma trapaça revoltante.)
Seu
moço, que é viajante,
Conhece
o sertão e a praça,
Deve
conhecê bastante
O
que é bondade e desgraça.
Sei
que o Senhô teve estudo,
Conhece
um pôco de tudo,
Pois
munta coisa aprendeu,
Quêra
escutá com tenção
A
maió decepção
Que
comigo aconteceu.
O
meu nome é Malaquia,
Sou
honrado, honesto e sero,
Sou
o maió da freguesia
Na
bondade e no critero.
Seu
moço, eu sou tão isato
Que,
quando faço o meu trato,
Só
chego inriba da hora,
Tanto
que, por causa disto,
Não
dou valô a registo,
Ricibo
nem promissóra.
Meus
papé resorvo tudo,
Mas
divido eu sê assim,
Já
levei munto canudo,
Jurgando
os ôtro por mim.
Daqui
a três légua e meia,
Fica
a cidade de Areia,
Que
é sede municipá.
Foi
lá que passei, patrão,
A
maió decepção
Que
a gente pode passá.
Chegou
ali um sujeito,
Há
seis ou sete ano atrás,
Sem
vergonha, sem respeito,
Ladrão,
cabreiro e sagaz,
Chamado
Mané José.
Tinha
a fala de muié,
Que
fazia aborrecê.
A
fala do tal gaiato
Era
o miado de um gato,
Quando
pede dicumê.
Lá
na cidade, o sujeito
Vevia
meio introsado
Com
escrivão e prefeito,
Com
juiz e delegado.
E
o cara lisa, sabido,
Adoladô,
inxirido,
Divido
alguém lhe informá,
Ficou
sabendo que eu era
Uma
pessoa sincera
E
intendeu de me robá.
Eu
tava, uma menhãzinha,
Mais
Raqué, minha muié,
Lá
no fugão da cozinha,
Tomando
o nosso café,
Quando
uvi uma voz fina,
Parecendo
uma buzina:
“Ô
de casa! Ô de casa!”
Seu
moço, eu naquela hora,
Saí
de dentro pra fora,
Pisando
inriba de brasa.
E
aquele marmanjo horrendo,
Da
cara de intipatia,
Quando
me viu, foi dizendo:
“Como
vai, seu Malaquia?
Não
lhe conheço de vista,
Porém,
a gente benquista
Já
me deu informação:
Na
cidade, me dissero
Que
o senhô é o mais sincero
Dos
home deste sertão.
Sabendo
desta verdade,
Fiquei
munto satisfeito,
Eu
gosto da honestidade,
Pois
sou deste mesmo jeito.
Pra
sê pontuá e honrado,
Eu
já nasci inducado
E,
mesmo sem tê estudo,
A
minha fala segura
Tem
o valô da iscritura,
Com
selo, carimbo e tudo.
Se
qué sabê se é ou não,
Vá
preguntá na cidade.
Lá,
eu tenho relação
Com
todas oturidade.
E é
por isso que hoje venho
Aqui,
com bastante impenho,
Falá
com seu Malaquia,
Pra
me imprestá um dinhêro,
Quatrocento
mil cruzêro,
A
juro, por quinze dia.
Pode
crê neste meu dito,
O
meu trato é tiro e queda,
Pra
fazê papé bonito,
Pôca
gente me arremeda;
É
tanto que eu sou um sóço
De
uma casa de negoço
Que
tem lá na capitá
E
ganho mais um salaro,
Pruquê
sou foncionáro
Do
gunvêrno estaduá.
Nunca
a ninguém inganei,
Provo
e faço um juramento
E,
mesmo fora da lei,
Eu
lhe pago a dez por cento,
O
lucro não esperdice,
Pois
gente boa me disse
Que
o dinhêro o sinhô tem,
Não
injeite o risurtado,
Pruquê
dinhêro guardado
Nunca
deu lucro a ninguém.
Seu
moço, eu sou verdadêro,
É
certo o que tou dizendo.”
Eu
intreguei o dinhêro
Com
as duas mão tremendo
E
ele, quando recebeu,
Fingindo
me respondeu,
Dizendo:
“Seu Malaquia,
Os
pé que veio buscá,
Os
mêrmo vêm lhe pagá,
Quando
interá quinze dia”.
Na
hora que foi saindo
O
cabra Mané José,
Desconfiança
sentindo,
A
minha esposa Raqué,
Pra
ele não precebê,
Veio
logo me dizê,
Baixinho,
com a voz fraca,
Como
quem faz um cuchicho:
“Malaquia,
aquele bicho
Talvez
te passe na maca!”
O que
a muié me dizia
Foi
dito e feito, patrão!
Quando
interou quinze dia,
O
cabra não chegou, não,
Desonrou
o trato que fez
E
eu fui atrás do freguez,
Daquele
peste ladrão.
Era
mió não tê ido,
Pruquê
não tinha sofrido
A
maió decepção.
Andei
atrás do imbruião,
Rua
arriba, rua abaxo
Dizendo
com os meu botão:
“Miserave,
eu hoje te acho!”
Já
tava perdendo a fé,
Quando
vi Mané José
Na
sala de um botequim,
Numa
banca de bebida,
Com
sua cara lambida
E
o jeito de muié ruim.
Quando
eu vi Mané José,
Foi
me esquentando as urêia,
Da
cabeça até nos pé,
Fugiu-me
o sangue das vêia
E
eu disse: “Seu voz de gato!
Você
quebrou nosso trato,
Vagabundo
sem futuro!
Me
diga se já tá pronto
Os
meu quatrocento conto,
Que
você tomou, a juro!”
E
o cabra me respostou:
“Tá
doido, seu Malaquia?
Juro
por Nosso Senhô
Não
lhe devo esta quantia”.
E,
depois de risingá,
Negá,
negá e negá,
Dizendo
que não devia,
Me
chamou, na mesma hora,
Pra
eu contá minha históra,
Dentro
da delegacia.
Depois
daquele chamado,
Eu
tive grande alegria,
Pruquê
o senhô delegado,
Há
tempo, me conhecia,
Mas
lá na repartição,
Ele
não me deu tenção,
Do
meu dito não deu fé,
Fez
um papé muito preto,
Puxando
brasa pro espeto
Do
cabra Mané José.
Eu
disse: seu delegado,
Seu
Mané José, um dia,
Chegou
alegre e vexado,
Lá
na minha moradia,
E
eu lhe imprestei um dinhêro,
Quatrocento
mil cruzêro,
Toda
minha inconomia.
O
trato já se findou
E
hoje aqui ele jurou
Que
não deve esta quantia.
Pra
juntá este dinhêro,
Que
tem seu Mané José,
Eu
passei um ano intêro
Mais
Raqué, minha muié,
Trabaiando
todo dia
E
fazendo inconomia,
Com
o maió sofrimento.
Com
aquele capitá
O
meu prano era comprá
Meia
duza de jumento.
Sei
que o senhô delegado
Conhece
bem o meu tipo,
Eu
sou munto acreditado,
Dentro
deste municipo,
Nunca
fiz um papé ruim.
E
ele respondeu pra mim:
“
– Para provar a verdade,
Sem
testemunha não presta,
Isto
de palavra honesta
Foi
coisa da antiguidade”.
Ali,
o cabra safado
Falou
com estupidez:
“
– Munto bem, seu delegado,
Gostei
do seu português,
E
o senhô, seu Malaquia,
Me
cobrando esta quantia,
Tá
manchando o meu conceito,
É
um grande atrevimento;
Se
quisé comprá jumento,
Vá
precurá ôtro jeito.
Eu
nunca dei prejuízo,
Sou
um cidadão de bem
E
pra vivê não preciso
De
dinhêro de ninguém.
A
sua falsa cobrança
Prova
a sua inguinorança,
É
um caso de prisão.
Eu
devia processá
Porém,
vou lhe perdoá,
Eu
tenho um bom coração”.
Seu
moço, basta que eu toque
Nisto
que tou lhe falando
Pra
muié sinti um choque.
Ói
Raqué, ali, chorando!
“Não
chore não, Raquézinha!
Vá
lá pra sua cozinha
Se
esqueça daquela praga,
Daquela
infeliz desgraça.
Destá,
que a sua trapaça,
Lá
nos inferno ele paga!”
Meu
senhô, vou lhe pedi
Não
me chame inguinorante,
Mas,
por favô, quêra uvi,
A
históra inda vai adiante,
Pois
o nosso ingrato mundo
Cria
certos vagabundo
Da
mais baxa natureza:
O
senhô inda não viu
Até
em que grau subiu
Aquela
sem-vergonheza.
Depois
que o Diabo tramou
Aquela
feia injustiça,
Lá
da cidade azulou,
Sem
mais ninguém tê notiça.
E
o tempo foi se passando
E
foi gastando, gastando
Aquela
negra impressão
Que
eu tinha do condenado,
Eu
já tava miorado
Da
minha decepção.
Porém,
o prope inocente
Não
tem sossêgo compreto,
O
Diabo, com seus argente,
Não
dêxa ninguém tá queto.
Eu,
certa vez, resorvi
E
um dia saí daqui,
Fui
batê na capitá;
Não
fui visitá parente,
Fui
à capitá, somente,
Vê
as beleza do má.
Pois,
mesmo sem tê estudo
Sei
que o má de tudo tem:
Ele
é brando, ele é sisudo
E
tanto vai como vem,
Tem
de tudo uma parcela;
É
das beleza mais bela
Das
obra do Criadô.
O
má representa briga,
Prazê,
tristeza, cantiga,
Gemido,
sodade e amô.
Eu
fui, com grande alegria,
Vê
as beleza do má.
E
naquele mêrmo dia
Que
cheguei na capitá,
Indo
armunçá num hoté,
Lá
eu vi Mané José
Trabaiando
de garçon.
Naquela
hora, seu moço,
Eu
senti tanto sobroço,
Que
a fala mudou de tom.
Eu
tinha pedido um prato,
Quando
avistei o bandido.
Pensei
que aquele gaiato
Não
tinha me conhecido,
Mas
tive sorte mesquinha.
Eu
ainda bem não tinha
Nem
começado a comê
Meu
prato de refeição,
A
cuié caiu da mão,
Quando
uvi ele dizê:
“Como
vai, seu Malaquia?
Se
o senhô qué se hospedá,
Vai
tê toda garantia,
Este
é o hoté populá,
Onde
a honestidade mora.
Tem
de tudo, a toda hora,
É
esta a pensão que agrada
A
todo e quarqué freguez
E
o quarto número 6
Tem
cama desocupada”.
Senti
medonha surpresa,
Fiquei
danado da vida,
Fastei
pro meio da mesa
O
meu prato de comida,
Fiz
depressa o pagamento
E,
nesse mesmo momento,
Sem
uma palavra dá,
Saí
pra rua apressado,
Como
quem tinha escutado
A
mãe do Diabo rinchá.
Fiquei
todo deferente,
Fiquei
leso, fiquei tonto.
Veio
logo em minha mente
Os
meus quatrocento conto,
Que
aquele cão deu sumiço.
Como
a dô de um panariço,
Que
se espreme o carnegão,
O
meu coração doeu
E,
de novo, apareceu
A
minha decepção.
E
hoje, até mêrmo drumindo,
Vejo,
quando tou sonhando,
O
Mané José mentindo
E
o delegado apoiando.
Ôtras
vez, mesmo acordado,
Fico
meio amalucado,
Pruquê
escuto, argum dia,
A
voz daquele atrivido
Zuando
nos meus uvido:
“Como
vai, seu Malaquia?!”
Estas décimas são compostas de uma quadra
e uma sextilha unidas, com um rígido esquema rimático: ABABCCDEED. E a
metrificação setissilábica acompanha o estilo dos cordelistas nordestinos.
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