domingo, 27 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 6)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      O diabo executava, não só zelosamente, mas com abnegação, tudo quanto lhe era ordenado, dando provas de uma vontade de ferro. Não obstante, o débil engenho humano não podia prever todas as complicações da vida, e ele se enganava a cada instante, procedendo bem num caso e portando-se mal noutro.
      Se um pobre lhe pedia alguma coisa de forma não prevista pelo sacerdote, negava-o. Eram tão frequentes estes casos, que o próprio sacerdote principiava a desanimar-se. Não suspeitava que a vida tivesse tantos e tão variados aspectos, nem que escondesse em si tantos e tão obscuros mistérios, e tantos e tão inesperados problemas.
      "De onde provém tudo isto?" - pensava quebrando a cabeça, enquanto o diabo, sentado atrás de uma coluna da igreja, curava as feridas, soltando suspiros dolorosos, e sem nada compreender.
      Não só o diabo, mas também o servo de Deus não conseguia compreender nada daquilo.
      E o velho padre continuava pensando: "Não haverá mais remédio a não ser que lhe permita comentar os preceitos, embora seja um tanto perigoso. Ensinar-lhe-ei as leis gerais, e ele que as comente depois tratando de adaptá-las às circunstâncias".
      Com suma docilidade o diabo se aveio com este novo sistema.
      Sentia-se alquebrado, quase sem energias, mas estava pronto a todos os sacrifícios. Até então todos os seus sacrifícios não lhe haviam servido para nada. Batiam-lhe tanto, que só isto bastaria para fazer dele um mártir; mas em vez de acontecer isso, as pancadas não faziam mais do que sobrecarregá-lo de novos pecados, pois os que lhe batiam tinham sobradas razões para se enfurecerem contra ele.
      Aliás, ele mesmo o reconhecia, assim como o sacerdote que o protegia. O pobre diabo, que jamais vira uma só lágrima, aprendeu até a chorar. Chorava tanto, que somente por suas lágrimas e por seu fervoroso desejo de encontrar o caminho do bem merecia ser inscrito no numero dos santos.
      Quando o sacerdote anunciou ao diabo que daquela data em diante lhe seria dado comentar os preceitos e adaptá-los à vida real, tal como os compreendia, ele sentiu-se cheio de alegria e foi com certo orgulho que declarou:
      - Agora, meu padre, o senhor pode ficar tranquilo a meu respeito. Já que o senhor permite que eu comente os preceitos, não farei mais tolices. Tenho espirito firme e ideias positivas; há muito tempo que não bebo álcool, e estou certo de não mais me enganar. Somente lhe peço que não me oculte nada. Diga-me qual a lei mais importante e mais grave da vida. Principiaremos por esta e depois o senhor me ensinará as outras. O velho sacerdote pôs-se a procurar na sua memória e a consultar tudo quanto havia lido e aprendido durante a sua vida. Depois soltou um suspiro de consolo e disse:
      - Existe uma lei como a que tu queres, mas tenho medo de revelá-la, pois é perigosa. Tenho, porém, confiança na ajuda de Deus. Presta atenção para não cometeres nenhum erro. Olha!... E abrindo um livro sagrado, o sacerdote mostrou ao diabo estas palavras, grandes e misteriosas: * * * NÃO TE OPONHAS AO MAL * * *
      Ao ver estas terríveis palavras, o diabo ficou assustadíssimo, perdendo todo o seu habitual orgulho:
      - Tenho medo, meu padre, disse ele. Estou quase certo de cometer erros com isto.
      O sacerdote também estava assustado. E ambos, o servo de Deus e o de Satã, cheios de terror, se contemplavam reciprocamente.
      - Apesar de tudo, experimenta! - disse, por fim, o padre. - O que há de bom nesta lei é que tu mesmo não deverás fazer nada; tem que deixar os demais fazerem contigo o que bem quiserem. Permita-lhes procederem à vontade e submete-te repetindo sempre esta frase: "Perdoai-os, Deus Onipotente, porque não sabem o que fazem". - Estas palavras são importantíssimas. Não as esqueça!
      O diabo se foi, novamente, à procura do caminho do bem.
      Passaram-se dois meses sem que aparecesse.
      Durante esse tempo, o velho cura esperava-o ansiosamente, a todo momento. Finalmente ele regressou.
      Havia emagrecido horrivelmente e todo ele era apenas ossos. Estava faminto e sedento. Tudo quanto possuía lhe havia sido arrebatado. Estava todo coberto de cicatrizes. O velho sacerdote sentiu certa alegria: tudo testemunhava que seu discípulo não se havia oposto ao mal. No entanto, impressionava-o dolorosamente a expressão de temor e de angústia que se lia nos olhos do diabo. Este, respirando com dificuldade e escarrando sangue, olhou para o velhinho, a quem amava com todo o corarão, e a velha igreja, onde encontrara um refugio sossegado e desandou a chorar, perdidamente. O sacerdote pôs-se a chorar também adivinhando que sucedera qualquer coisa de muito grave
      - Vamos! Conta-me os erros que acaso cometeste.

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