A CONVERSÃO DO DIABO
Leonid Andreiev
O diabo executava, não só
zelosamente, mas com abnegação, tudo quanto lhe era ordenado, dando provas de
uma vontade de ferro. Não obstante, o débil engenho humano não podia prever
todas as complicações da vida, e ele se enganava a cada instante, procedendo
bem num caso e portando-se mal noutro.
Se um pobre lhe pedia alguma coisa de
forma não prevista pelo sacerdote, negava-o. Eram tão frequentes estes casos,
que o próprio sacerdote principiava a desanimar-se. Não suspeitava que a vida
tivesse tantos e tão variados aspectos, nem que escondesse em si tantos e tão
obscuros mistérios, e tantos e tão inesperados problemas.
"De onde provém tudo isto?" -
pensava quebrando a cabeça, enquanto o diabo, sentado atrás de uma coluna da
igreja, curava as feridas, soltando suspiros dolorosos, e sem nada compreender.
Não só o diabo, mas também o servo de
Deus não conseguia compreender nada daquilo.
E o velho padre continuava pensando:
"Não haverá mais remédio a não ser que lhe permita comentar os preceitos,
embora seja um tanto perigoso. Ensinar-lhe-ei as leis gerais, e ele que as
comente depois tratando de adaptá-las às circunstâncias".
Com suma docilidade o diabo se aveio com
este novo sistema.
Sentia-se alquebrado, quase sem energias,
mas estava pronto a todos os sacrifícios. Até então todos os seus sacrifícios
não lhe haviam servido para nada. Batiam-lhe tanto, que só isto bastaria para
fazer dele um mártir; mas em vez de acontecer isso, as pancadas não faziam mais
do que sobrecarregá-lo de novos pecados, pois os que lhe batiam tinham sobradas
razões para se enfurecerem contra ele.
Aliás, ele mesmo o reconhecia, assim como
o sacerdote que o protegia. O pobre diabo, que jamais vira uma só lágrima,
aprendeu até a chorar. Chorava tanto, que somente por suas lágrimas e por seu
fervoroso desejo de encontrar o caminho do bem merecia ser inscrito no numero
dos santos.
Quando o sacerdote anunciou ao diabo que
daquela data em diante lhe seria dado comentar os preceitos e adaptá-los à vida
real, tal como os compreendia, ele sentiu-se cheio de alegria e foi com certo
orgulho que declarou:
- Agora, meu padre, o senhor pode ficar
tranquilo a meu respeito. Já que o senhor permite que eu comente os preceitos,
não farei mais tolices. Tenho espirito firme e ideias positivas; há muito tempo
que não bebo álcool, e estou certo de não mais me enganar. Somente lhe peço que
não me oculte nada. Diga-me qual a lei mais importante e mais grave da vida.
Principiaremos por esta e depois o senhor me ensinará as outras. O velho
sacerdote pôs-se a procurar na sua memória e a consultar tudo quanto havia lido
e aprendido durante a sua vida. Depois soltou um suspiro de consolo e disse:
- Existe uma lei como a que tu queres,
mas tenho medo de revelá-la, pois é perigosa. Tenho, porém, confiança na ajuda
de Deus. Presta atenção para não cometeres nenhum erro. Olha!... E abrindo um
livro sagrado, o sacerdote mostrou ao diabo estas palavras, grandes e
misteriosas: * * * NÃO TE OPONHAS AO MAL * * *
Ao ver estas terríveis palavras, o diabo
ficou assustadíssimo, perdendo todo o seu habitual orgulho:
- Tenho medo, meu padre, disse ele. Estou
quase certo de cometer erros com isto.
O sacerdote também estava assustado. E
ambos, o servo de Deus e o de Satã, cheios de terror, se contemplavam
reciprocamente.
- Apesar de tudo, experimenta! - disse,
por fim, o padre. - O que há de bom nesta lei é que tu mesmo não deverás fazer
nada; tem que deixar os demais fazerem contigo o que bem quiserem. Permita-lhes
procederem à vontade e submete-te repetindo sempre esta frase:
"Perdoai-os, Deus Onipotente, porque não sabem o que fazem". - Estas
palavras são importantíssimas. Não as esqueça!
O diabo se foi, novamente, à procura do
caminho do bem.
Passaram-se
dois meses sem que aparecesse.
Durante esse tempo, o velho cura esperava-o
ansiosamente, a todo momento. Finalmente ele regressou.
Havia emagrecido horrivelmente e todo ele
era apenas ossos. Estava faminto e sedento. Tudo quanto possuía lhe havia sido
arrebatado. Estava todo coberto de cicatrizes. O velho sacerdote sentiu certa
alegria: tudo testemunhava que seu discípulo não se havia oposto ao mal. No
entanto, impressionava-o dolorosamente a expressão de temor e de angústia que
se lia nos olhos do diabo. Este, respirando com dificuldade e escarrando
sangue, olhou para o velhinho, a quem amava com todo o corarão, e a velha
igreja, onde encontrara um refugio sossegado e desandou a chorar, perdidamente.
O sacerdote pôs-se a chorar também adivinhando que sucedera qualquer coisa de
muito grave
- Vamos! Conta-me os erros que acaso
cometeste.
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