sexta-feira, 4 de setembro de 2015

João Boa-Morte - Ferreira Gullar (Parte 1)

João Boa-Morte
Cabra marcado pra morrer

Ferreira Gullar

Vou contar para vocês
um caso que sucedeu
na Paraíba do Norte
com um homem que chamava
Pedro João Boa-Morte
lavrador da Chapadinha:
talvez tenha boa morte
porque vida ele não tinha.

Sucedeu na Paraíba
mas é uma historia banal
em todo aquele Nordeste.
Podia ser no Sergipe,
Pernambuco ou Maranhão,
que todo cabra-da-peste
ali se chama João
Boa-Morte, vida não.


Morava João nas terras
de um coronel muito rico,
tinha mulher e seis filhos,
um cão que chamava "Chico",
um facão de cortar mato,
um chapéu e um tico-tico.

Trabalhava noite e dia
nas terras do fazendeiro,
mal dormia, mal comia,
mal recebia dinheiro;
se não recebia não dava
para acender o candeeiro.
João não sabia como
fugir desse cativeiro.

Olhava pra's crianças
de olhos cavados de fome,
já consumindo a infância
na dura faina da roça.
Sentia um nó na garganta.
Quando uma delas almoçava
as outras não, a que janta
no outro dia não almoça.

Olhava para Maria,
sua mulher, que a tristeza
na luta de todo o dia
tão depressa envelheceu.
Perdera toda a alegria
perdera toda a beleza
e era tão bela no dia
que João a conheceu.

Que diabo tem nesta terra,
neste Nordeste maldito,
que mata como uma guerra
tudo que é bom e bonito?
Assim João perguntava
para si mesmo e lembrava
que a tal guerra não matava
o coronel Benedito!

Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor
não mata quem é dono de engenho,
só mata cabra-da-peste
só mata o trabalhador.
O dono do engenho engorda,
vira logo senador.

Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do coronel Benedito
tiveram com ele um atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era tão baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.

João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
"Não vamos voltar atrás.
Prescisamos de dinheiro,
se o coronel não dá mais
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro".

Com o coronel foram ter
mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
"Ainda está para nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço."
O pessoal se assustou.
Sabiam que o fazendeiro
não brinca com lavrador.
Se quem obedece morre
de fome e desespero,
quem não obedece corre
ou vira "cabra morredor."

Só um deles se atreveu
a vender seu cereal.
Noutra fazenda vendeu
mas vendeu e se deu mal.
Dormiu mas não amanheceu.
Foram encontrá-lo enforcado
de manhã num pé de pau.
Debaixo do morto estava
um cabra do Benedito
que dizia a quem passava:

"Esse moleque maldito
pensou que desrespeitava
o que o patrão tinha dito.
Toda planta que aqui nasce
é planta do coronel,
ele manda nesta terra
como Deus manda no céu.
Quem estiver descontente
acho melhor não falar
ou fale e depois se agüente
que eu mesmo venho enforcar."

João ficou revoltado
com aquele crime sem nome.
Maria disse: "Cuidado,
não te mete com esse homem."
João respondeu zangado:
"Antes morrer enforcado
do que sucumbir de fome."

Nisso pensando, João
falou com seus companheiros:
"Lavradores, meus irmãos,
esta nossa escravidão
tem que ter um paradeiro.
Não temos terra, nem pão,
vivemos em um cativeiro.
Livremos nosso sertão
do jugo do fazendeiro."

O coronel Beneditino
quando soube que João
tais coisas havia dito
ficou bravo como o cão.
Armou dois "cabras" e disse:
- "João Boa-Morte não presta,
não quero na minhas terras
caboclo metido a besta."

"Vou Lhe dar uma lição.
Ele quer terra, não é?
Pois vai ganhar o sertão.
Vai ter de andar a pé
desde aqui ao Maranhão.
Quando virar vagabundo
vai ter de baixara a crista.
Vou avisar todo mundo
que esse cabra é comunista.
Quem mexe com o Benedito
bem caro tem de pagar.
Ninguém lhe dará um palmo
de terra pra trabalhar."

Se assim disse, assim fez.
João foi mandado embora
de seu casebre pacato.
Disse a Maria: " - Não Chora,
todo patrão é ingrato."
E saíram mundo afora,
ele, Maria, os seis filhos
e o facão de cortar mato.

Andaram o resto do dia
e quando a noite caía
chegaram numa fazenda:
"- Seu doutor, tenho família,
sou homem trabalhador.
Me ceda um palmo de terra
pra eu trabalhar pro senhor."

Ao que o doutor respondeu:
"Terra aqui tenho sobrando,
todo este baixão é meu.
Se planta e colhe num dia,
pode ficar trabalhando."
"- Seu coronel, me desculpe,
mas eu não sei fazer isso.
Quem planta e colhe num dia,
não planta, faz feitiço."
"- Neste caso, não discuta,
acho melhor ir andando."

E lá se foi Boa-Morte
com a mulher e os seis meninos.
Talvez eu tenha mais sorte
na fazenda dos Quintinos."
Andaram rumo do Norte,
para além da Várzea dos Sinos:
"- Coronel, morro de fome
com seis filhos e a mulher.
Me dê trabalho, sou homem
para o que der e vier."

E o coronel respondeu:
"- Trabalho tenho de sobra.
E se é homem como diz
quero que me faça agora
esta raiz virar cobra
e depois virar raiz.
Se isso não faz, vá-se embora."

João saiu com a família
num desespero sem nome.
Ele, os filhos e Maria
estavam mortos de fome.
Que destino tomaria?
Onde iria trabalhar?
E à sua volta ele via
terra e mais terra vazia,
milho e cana a verdejar.

Um comentário: