terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 8)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      - Perdoa-me que te haja ofendido, meu amigo. Quanto ao problema do bem, vou fazer-te uma pergunta: tu és um diabo curioso de saber tudo; provavelmente visitaste inúmeros templos e museus e viste muitas obras de arte. Dize-me: agradaram-te?
      O diabo refletiu um pouco, e respondeu:
      - Umas sim, outras não.
      - Mas o que apreciaste foi por sua beleza, não é verdade?
      - Naturalmente.
      - E ouviste falar que existem leis para a beleza ?
      - Sim, muito já se escreveu sobre isso.
      - Muito bem. Suponhamos, agora, que aprendeste essas leis. Poderias criar algo de belo?
      - Não basta conhecer as leis; necessita-se também ter talento e isso me falta.
      - Eis aí! Mas então, por que, ó animal, pretendes praticar o bem, sem talento para ele? Requer-se mais talento para o bem do que para a beleza. O bem exige um enorme talento.
      O diabo contemplava, com grande assombro, o sacerdote.
      - Ótima saída! - disse. - O senhor exagera, meu padre. Se eu pinto um mau quadro, não me mandarão, por esse crime, ao inferno, ao passo que se quebro a cabeça a meu próximo, já não será a mesma coisa. Além disso, ninguém me obriga a pintar quadros. No entanto, existe a obrigação moral de fazer o bem. Mandam fazê-lo e não indicam de que maneira... E se alguém se engana, ainda o castigam.
      - Não te dizia eu que para fazer o bem é preciso talento?
      - E no caso de não o possuir, devo sofrer eternamente as penas infernais, não é isso?
      O sacerdote fez um gesto desesperado, dizendo:
      - Não sei, meu amigo. Perdi a cabeça, falando contigo.
      - Pois não me fale mais do talento. Dê-me regras ou leis. Desejo fazer o bem e o seu dever é ensinar-me como devo fazê-lo. Do contrário...
      Estava tão enfurecido, que ameaçou ir à casa de outro sacerdote.
      O velho pároco sentiu-se ofendido, e disse num tom de censura:
      - Portas-te mal, muito mal comigo. Sofri em tua companhia, esperei trazer-te ao bom caminho como a ovelha desgarrada, principiei a querer-te como a um filho e tu pretendes agora me atraiçoar. Eu também tenho amor próprio e não é justo que o firas. Se não te parece mal, em lugar dessas regras gerais, perigosas não somente para um diabo mas também para um homem, vou traçar-te uma linha, de procedimento, a que deves te submeter-te todos os dias. Tenho muito tempo de sobra, e começarei a trabalhar imediatamente. Farei, para ti, uma espécie de agenda para todo o ano; nela encontrarás tudo quanto deves fazer diariamente... Mas não deverás te afastar um milímetro sequer do que estiver escrito nela. Caso contrário, cometerás novos erros. Se esqueceres alguma coisa, ou tiveres dúvida a propósito de qualquer detalhe, melhor será que nada faças, a expor-te a novas desventuras. Fecha os olhos, tapa os ouvidos, não te movas e fica sossegado, pois assim, pelo menos, estarás livre de dar mau passo. Hoje mesmo principiarei a trabalhar e tu subirás no alto da igreja e permanecerás ali, quietinho. Se te aborreceres, auxilia um pouco o sineiro. O coitado já está velho e se esquece de tocar os sinos, muitas vezes. Toca-o, pois, para a glória de Deus!
      O velho sacerdote entregou-se ao trabalho com afinco, enquanto o diabo principiou a não fazer nada. Instalara-se num pequeno desvão situado na torre da igreja, entre os sinos, as cordas e os trastes velhos. Uma das paredes da torre tinha na sua parte superior uma janelinha cheia de teias de aranha.
      Cada dois ou três dias o velho sacerdote levava ao diabo um pouco de comida, sentando-se um instante ao seu lado, a fim de conversar com ele. O resto do tempo o diabo não via ninguém e não fazia outra coisa senão refletir.
      O sacerdote temia essas reflexões, vendo nelas - e razão tinha ele - uma espécie de ação, impelindo-o a cerrar hermeticamente o espírito do diabo, não deixando que ele pensasse em nada. Este prometia obedecer-lhe, porém isso era mais forte do que a sua vontade. Tornava-se dificílimo não pensar no que havia visto e ouvido, no que consistia sua idéia fixa, isto é, no bem. O bem possui tantas formas... O próprio Deus diz tão depressa uma coisa como outra! Há inumeráveis verdades que se cruzam, entrechocam-se, batem-se umas contra as outras. Parece que se contradizem, mas na realidade não é assim. Qual é pois a "verdade verdadeira"?
      Ou, se todas são verdades, como distingui-las e encontrar a que possa servir melhor?
      Tais pensamentos quase enlouqueciam o diabo inspirando-lhe mesmo certo terror. Permanecia, durante horas inteiras, imóvel no seu canto empoeirado, sem se mover, sem respirar sequer.

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