segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 1)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      - Quem não ama o bem?
      Uma vez, um diabo, já entrado em anos e a quem tinham apelidado, no inferno, de Narigão, sentiu, inesperadamente, certa inclinação à virtude. Entregara-se na sua mocidade, como todos os diabos, a insignificantes proezas diabólicas, mas, com a idade, já um tanto cansado do seu oficio, tornara-se comedido.
      Embora gozasse de ótima saúde, os excessos juvenis quebraram-lhe um pouco as forças e ele não sentia entusiasmo algum pelas tolices da mocidade. Cada vez sentia mais acentuada propensão para a ordem (virtude esta muito comum entre os diabos); dotado de espírito firme e esclarecido, embora um tanto metafísico, gostava de filosofar.
      Acabou por perder a fé na perfeição do inferno e nos costumes diabólicos. Enfadava-se principalmente nos dias festivos, quando não tinha nenhuma tarefa a desempenhar e não sabia como matar o tempo, tanto mais que era celibatário.
      Para lutar contra essa situação que tanto lhe perturbava o espírito, entregou-se ao trabalho, mudando várias vezes de ofício. De inicio, instalou-se como diabo tentador em uma igrejinha católica de Florença. Ali, segundo suas próprias palavras, saboreou pela primeira vez o repouso de espirito. Ali, também principiou sua conversão.
      A igreja, era muito pequena, e ele tinha pouco trabalho. As míseras velhacadas que tanto agradavam os diabos jovens - apagar as velas, fazer com que o sacristão tropeçasse ou que as velhinhas, enquanto rogavam a Deus, pensassem coisas escabrosas - não o agradavam; ao contrário, chegavam a lhe causar engulhos. Quanto às tataranhadas importantes, não se oferecia oportunidade para elas.
      Todos os paroquianos eram pessoas modestas, que dificilmente se deixavam tentar. Nem ouro, que nunca haviam visto; nem o amor passional, que jamais conheceram; nem os orgulhosos sonhos de ambição, completamente estranhos à sua natureza, podiam turvar a paz de suas almas superficiais, razão pela qual todos os esforços do diabo eram inúteis.
      Quanto aos pecados insignificantes, os fieis entregavam-se a eles de-per-si, sem necessidade de serem tentados pelo diabo, e este não precisava quebrar a cabeça para inventar coisa alguma, mesmo porque o numero dos pequenos pecados era muito reduzido.
      A principio quis tentar o pároco em pessoa, mas todas suas tentativas fracassaram; o pároco era um velho já desdentado, um tanto volvido à infância novamente, e puro como uma donzela. Somente conseguia fazê-lo esquecer, algumas tardes, as palavras de sua oração, substituindo-as por outras, ou comer carne nos dias de jejum, ou então dormir até muito tarde, faltando à missa da madrugada. Mas o diabo sentia muito bem que tudo isso não passava de pecadilhos exteriores e que semelhantes meios não bastam para a perdição da alma de um crente.
      Pouco a pouco começou a cansar-se do seu oficio, pondo no trabalho cada vez mais indiferença ou formalismo. Por descargo de consciência, ocasionalmente contava, a alguma velha ajoelhada diante da Virgem, uma anedota escabrosa, cuspia duas ou três vezes num canto da igreja, ou fazia com que o velho sacerdote confundisse as palavras da missa sempre no mesmo ponto. Depois de haver cumprido o seu dever, apressava-se a sentar no seu lugar favorito, à sombra de uma coluna, para acompanhar, devotadamente, num breviário furtado, as palavras do santo oficio. Mas esse passatempo, embora agradável, era contrário à natureza ativa do diabo.
      Para não permanecer ocioso começou paulatinamente a trabalhar. Tornou-se, por vontade própria, uma espécie de sacristão-ajudante da igreja. Varria-a de manhã, limpava o metal das portas, ativava os candeeiros durante a missa e, junto aos demais paroquianos, acompanhava o coro, cantando em voz de falsete o "Ora pro nobis".
      Se lhe acontecia entrar na igreja pela porta da rua, molhava suas garras na água benta,  benzendo-se com ela. Quando todos os crentes se acercavam do pároco para que os  abençoasse, acompanhava a multidão, atropelando as pessoas, conforme seus hábitos diabólicos.
      Durante as raras visitas ao inferno, onde precisava apresentar informes acerca de suas atividades (os quais, por sua vez, eram arqui-falsos, como todos os informes dos diabos de Satanás), nosso diabo sentia aumentar cada vez mais seu asco pelo inferno, e por seus costumes, sua barulheira infernal, sua sujeira e desordem. As bruxas gritadeiras, que antigamente lhe pareciam tão cativantes e belas, não lhe inspiravam agora senão aversão; se divertia prendendo-lhes as vassouras com a porta, observando depois o terror e as torturas dessas desventuradas, que procuravam inutilmente livrar suas vassouras de tal aperto. No inferno todo o mundo mentia e re-mentia sem cessar; cada palavra era um embuste. Satanás mentia mais do que todos juntos; e o nosso diabo, que já havia perdido os hábitos do ambiente, sentia-se enfermo, ansioso por sair dali, para respirar um pouco.

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