A CONVERSÃO DO DIABO
Leonid Andreiev
- Quem não ama o bem?
Uma vez, um diabo, já entrado
em anos e a quem tinham apelidado, no inferno, de Narigão, sentiu,
inesperadamente, certa inclinação à virtude. Entregara-se na sua mocidade, como
todos os diabos, a insignificantes proezas diabólicas, mas, com a idade, já um
tanto cansado do seu oficio, tornara-se comedido.
Embora gozasse de ótima saúde, os
excessos juvenis quebraram-lhe um pouco as forças e ele não sentia entusiasmo
algum pelas tolices da mocidade. Cada vez sentia mais acentuada propensão para
a ordem (virtude esta muito comum entre os diabos); dotado de espírito firme e
esclarecido, embora um tanto metafísico, gostava de filosofar.
Acabou por perder a fé na perfeição do
inferno e nos costumes diabólicos. Enfadava-se principalmente nos dias festivos,
quando não tinha nenhuma tarefa a desempenhar e não sabia como matar o tempo,
tanto mais que era celibatário.
Para lutar contra essa situação que tanto
lhe perturbava o espírito, entregou-se ao trabalho, mudando várias vezes de
ofício. De inicio, instalou-se como diabo tentador em uma igrejinha católica de
Florença. Ali, segundo suas próprias palavras, saboreou pela primeira vez o
repouso de espirito. Ali, também principiou sua conversão.
A igreja, era muito pequena, e ele tinha
pouco trabalho. As míseras velhacadas que tanto agradavam os diabos jovens -
apagar as velas, fazer com que o sacristão tropeçasse ou que as velhinhas,
enquanto rogavam a Deus, pensassem coisas escabrosas - não o agradavam; ao
contrário, chegavam a lhe causar engulhos. Quanto às tataranhadas importantes,
não se oferecia oportunidade para elas.
Todos os paroquianos eram pessoas
modestas, que dificilmente se deixavam tentar. Nem ouro, que nunca haviam
visto; nem o amor passional, que jamais conheceram; nem os orgulhosos sonhos de
ambição, completamente estranhos à sua natureza, podiam turvar a paz de suas
almas superficiais, razão pela qual todos os esforços do diabo eram inúteis.
Quanto aos pecados insignificantes, os
fieis entregavam-se a eles de-per-si, sem necessidade de serem tentados pelo
diabo, e este não precisava quebrar a cabeça para inventar coisa alguma, mesmo
porque o numero dos pequenos pecados era muito reduzido.
A principio quis tentar o pároco em
pessoa, mas todas suas tentativas fracassaram; o pároco era um velho já
desdentado, um tanto volvido à infância novamente, e puro como uma donzela.
Somente conseguia fazê-lo esquecer, algumas tardes, as palavras de sua oração,
substituindo-as por outras, ou comer carne nos dias de jejum, ou então dormir
até muito tarde, faltando à missa da madrugada. Mas o diabo sentia muito bem
que tudo isso não passava de pecadilhos exteriores e que semelhantes meios não
bastam para a perdição da alma de um crente.
Pouco a pouco começou a cansar-se do seu
oficio, pondo no trabalho cada vez mais indiferença ou formalismo. Por descargo
de consciência, ocasionalmente contava, a alguma velha ajoelhada diante da
Virgem, uma anedota escabrosa, cuspia duas ou três vezes num canto da igreja,
ou fazia com que o velho sacerdote confundisse as palavras da missa sempre no
mesmo ponto. Depois de haver cumprido o seu dever, apressava-se a sentar no seu
lugar favorito, à sombra de uma coluna, para acompanhar, devotadamente, num
breviário furtado, as palavras do santo oficio. Mas esse passatempo, embora
agradável, era contrário à natureza ativa do diabo.
Para não permanecer ocioso começou paulatinamente
a trabalhar. Tornou-se, por vontade própria, uma espécie de sacristão-ajudante
da igreja. Varria-a de manhã, limpava o metal das portas, ativava os candeeiros
durante a missa e, junto aos demais paroquianos, acompanhava o coro, cantando
em voz de falsete o "Ora pro nobis".
Se lhe acontecia entrar na igreja pela
porta da rua, molhava suas garras na água benta, benzendo-se com ela. Quando todos os crentes
se acercavam do pároco para que os abençoasse,
acompanhava a multidão, atropelando as pessoas, conforme seus hábitos
diabólicos.
Durante as raras visitas ao inferno, onde
precisava apresentar informes acerca de suas atividades (os quais, por sua vez,
eram arqui-falsos, como todos os informes dos diabos de Satanás), nosso diabo
sentia aumentar cada vez mais seu asco pelo inferno, e por seus costumes, sua
barulheira infernal, sua sujeira e desordem. As bruxas gritadeiras, que
antigamente lhe pareciam tão cativantes e belas, não lhe inspiravam agora senão
aversão; se divertia prendendo-lhes as vassouras com a porta, observando depois
o terror e as torturas dessas desventuradas, que procuravam inutilmente livrar
suas vassouras de tal aperto. No inferno todo o mundo mentia e re-mentia sem
cessar; cada palavra era um embuste. Satanás mentia mais do que todos juntos; e
o nosso diabo, que já havia perdido os hábitos do ambiente, sentia-se enfermo,
ansioso por sair dali, para respirar um pouco.
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