quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 9)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      - Que há, meu amigo? Aborreceste? perguntava-lhe o velho sacerdote ao trazer-lhe a comida. Paciência! Não deves fazer nada! prosseguia ele. Breve terminarei meu trabalho, e então começarás a viver. É verdade que a minha saúde me traz cada vez mais apreensivo, mas farei todo o esforço possível para concluir o trabalho antes de minha morte. Não te posso deixar dessa maneira...
     O diabo ouviu-o. No entanto, pareceu não perceber coisa alguma, tão absorto estava em suas reflexões.
      - Contradições por toda a parte! murmurou com os olhos cheios de espanto.
      - Como? exclamou alarmado o sacerdote. Onde encontras tantas contradições? As contradições não existem senão no espirito, que, sempre descontente, procura a lógica em tudo. O principal não é o espirito, mas a consciência. Isto, porém, se se vive com a consciência tranquila!
      - Mas, por acaso a consciência não é guiada pelo espirito? O senhor, meu padre, se contradiz.
      - Oh! santo Deus! Como és difícil de te contentares! Cada conversa contigo me fatiga enormemente e acabo com dor de cabeça. Devo, no entanto, conservá-la serena, pois, do contrario, não poderei acabar o trabalho que estou fazendo. Para dizer a verdade, és um diabo muito desagradável! Confessa-me, com franqueza, se obedeces exatamente as minhas ordens.
      - Em que?
      - Ficas imóvel? Não fazes nada, absolutamente nada?
      - Sim. Ontem matei uma mosca, tão somente porque me aborrecia demasiado!... não sei se é ou não permitido matar moscas...
      - Moscas?.. Naturalmente!... Isto é, espera um pouco... Estás vendo? Agora, eu mesmo ignoro se pode ou não matar moscas. Grande acontecimento! Antes que me fizesses tal pergunta, jamais havia pensado nisso e, também eu, matava moscas... Agora...
      - A mosca é um ser vivo - disse o diabo com triste acento.
      - Quem o duvida? - respondeu comovido o sacerdote. - Então, também eu matei seres vivos! Quão pecador sou!...
      O diabo, que procurava soluções claras e precisas, perguntou-lhe:
      - Em resumo, é licito ou não é licito matar moscas?
      - Moscas?...
      Tais palestras perturbavam os dois. Ambos acabavam confusos e, mirando-se reciprocamente, com olhares estúpidos, não sabiam de que maneira prosseguir.
      O sacerdote não levava muito a sério essas contradições; de regresso à sua casa, esquecia-se delas e punha-se, tranquilamente, a trabalhar. Mas para o diabo elas constituíam verdadeiro martírio. Cheio de forças diabólicas, capaz de mover montanhas, permanecia indeciso ante as moscas que o picavam e - como uma criança - não sabia de que modo portar-se com elas. Como se as moscas compreendessem seu estado de alma pareciam zombar e caçoar dele: zumbiam insolentemente ao redor de sua cabeça, metiam-se-lhe nas suas peludas orelhas, faziam cocegazinhas nos seus lábios cerrados, assumiam posturas provocadoras, desafiavam-no...
      O diabo havia odiado muito em sua vida, mas todos estes ódios não eram nada comparados ao ódio feroz que nutria pelas débeis e insignificantes moscas...
      O sacerdote estava cada vez mais fraco: a saúde declinava e as poucas forças diminuíram cada vez mais... Sentia-se a todo o instante tão cansado, que era obrigado a se deitar um pouco.
      Há três anos que o diabo estava encerrado no canto da torre da igreja, condenado a uma mágoa absoluta, esperando pacientemente o programa do bem, que o sacerdote lhe havia prometido. Não atormentava mais o professor com as suas contradições; suplicava-lhe somente, que concluísse quanto antes o seu trabalho.
      - Apresse-se, meu padre!
      - Não tenhas medo, amigo! Não morrerei sem concluir minha obra. Segundo os meus cálculos, ainda me restam seis meses de vida, pouco mais ou menos. Sim, seis meses! Meu trabalho está quase terminado. Continua tranquilo, e não percas o ânimo. Vim precisamente para te anunciar uma boa notícia: hoje vão queimar vivo um herege. Vem comigo para assistir o espetáculo. Isto nos agradará, e nos divertirá um pouco.
      - Não obstante, está escrito nas Santas Escrituras: "Não matarás" - pensou o diabo, porém, não disse uma palavra ao sacerdote e aceitou gostosamente a proposta, sobretudo porque se aborrecia terrivelmente na solidão.

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