A CONVERSÃO DO DIABO
Leonid Andreiev
- Que há, meu amigo? Aborreceste? perguntava-lhe
o velho sacerdote ao trazer-lhe a comida. Paciência! Não deves fazer nada!
prosseguia ele. Breve terminarei meu trabalho, e então começarás a viver. É
verdade que a minha saúde me traz cada vez mais apreensivo, mas farei todo o
esforço possível para concluir o trabalho antes de minha morte. Não te posso
deixar dessa maneira...
O diabo ouviu-o. No entanto, pareceu não
perceber coisa alguma, tão absorto estava em suas reflexões.
- Contradições por toda a parte! murmurou
com os olhos cheios de espanto.
- Como? exclamou alarmado o sacerdote.
Onde encontras tantas contradições? As contradições não existem senão no
espirito, que, sempre descontente, procura a lógica em tudo. O principal não é
o espirito, mas a consciência. Isto, porém, se se vive com a consciência tranquila!
- Mas, por acaso a consciência não é
guiada pelo espirito? O senhor, meu padre, se contradiz.
- Oh! santo Deus! Como és difícil de te
contentares! Cada conversa contigo me fatiga enormemente e acabo com dor de
cabeça. Devo, no entanto, conservá-la serena, pois, do contrario, não poderei
acabar o trabalho que estou fazendo. Para dizer a verdade, és um diabo muito
desagradável! Confessa-me, com franqueza, se obedeces exatamente as minhas
ordens.
- Em que?
- Ficas imóvel? Não fazes nada,
absolutamente nada?
- Sim. Ontem matei uma mosca, tão somente
porque me aborrecia demasiado!... não sei se é ou não permitido matar moscas...
- Moscas?.. Naturalmente!... Isto é,
espera um pouco... Estás vendo? Agora, eu mesmo ignoro se pode ou não matar
moscas. Grande acontecimento! Antes que me fizesses tal pergunta, jamais havia
pensado nisso e, também eu, matava moscas... Agora...
- A mosca é um ser vivo - disse o diabo
com triste acento.
- Quem o duvida? - respondeu comovido o
sacerdote. - Então, também eu matei seres vivos! Quão pecador sou!...
O diabo, que procurava soluções claras e
precisas, perguntou-lhe:
- Em resumo, é licito ou não é licito
matar moscas?
- Moscas?...
Tais palestras perturbavam os dois. Ambos
acabavam confusos e, mirando-se reciprocamente, com olhares estúpidos, não
sabiam de que maneira prosseguir.
O sacerdote não levava muito a sério
essas contradições; de regresso à sua casa, esquecia-se delas e punha-se, tranquilamente,
a trabalhar. Mas para o diabo elas constituíam verdadeiro martírio. Cheio de
forças diabólicas, capaz de mover montanhas, permanecia indeciso ante as moscas
que o picavam e - como uma criança - não sabia de que modo portar-se com elas.
Como se as moscas compreendessem seu estado de alma pareciam zombar e caçoar
dele: zumbiam insolentemente ao redor de sua cabeça, metiam-se-lhe nas suas
peludas orelhas, faziam cocegazinhas nos seus lábios cerrados, assumiam
posturas provocadoras, desafiavam-no...
O diabo havia odiado muito em sua vida,
mas todos estes ódios não eram nada comparados ao ódio feroz que nutria pelas
débeis e insignificantes moscas...
O sacerdote estava cada vez mais fraco: a
saúde declinava e as poucas forças diminuíram cada vez mais... Sentia-se a todo
o instante tão cansado, que era obrigado a se deitar um pouco.
Há três anos que o diabo estava encerrado
no canto da torre da igreja, condenado a uma mágoa absoluta, esperando
pacientemente o programa do bem, que o sacerdote lhe havia prometido. Não
atormentava mais o professor com as suas contradições; suplicava-lhe somente,
que concluísse quanto antes o seu trabalho.
- Apresse-se, meu padre!
- Não tenhas medo, amigo! Não morrerei sem
concluir minha obra. Segundo os meus cálculos, ainda me restam seis meses de
vida, pouco mais ou menos. Sim, seis meses! Meu trabalho está quase terminado.
Continua tranquilo, e não percas o ânimo. Vim precisamente para te anunciar uma
boa notícia: hoje vão queimar vivo um herege. Vem comigo para assistir o
espetáculo. Isto nos agradará, e nos divertirá um pouco.
- Não obstante, está escrito nas Santas
Escrituras: "Não matarás" - pensou o diabo, porém, não disse uma
palavra ao sacerdote e aceitou gostosamente a proposta, sobretudo porque se
aborrecia terrivelmente na solidão.
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