sábado, 2 de janeiro de 2016

Poemas de Mauro Fonseca - Parte 4

só mas não nu


quisera meu poema seda vestir sua pele nua.
mas por onde anda essa estranha musa
que não acredita em estrelas
nem no beijo demorado no banco liso da praça?
mas essa musa de que falo
já foi criança comigo
de beco, roda, rosa, corredeira...
já foi vizinha de meus sonhos;
musa é só um instante
de febre, flor e perfume.
agora que sinto a distância
na palidez da pele,
nos selos das cartas lacradas de medo e baba,
tenho meu consolo (só mas não nu)
com esse amargo de boldo
no solo úmido da língua.

IIº

mas também sei dos meus olhos fuzilados
no paredão escuro dessa cena,
dessa juventude, doce juventude
como em novelas, jovens dóceis (doce)
sem cáries nos dentes,
sem esse amargo na língua
doce (beijo doce)
que comove os que moram do lado de fora do vídeo,
enquanto minha juventude é linchada
em ruas, prédios e festas.
ah, mas é preciso manter as classes?
e dizer – bom dia!?
é preciso dissolver a azia num copo d’água
com sal de frutas e repetir a mesma frase permitida?
só mas não nu
com uma estória pra contar,
com uma faca firme entre os dedos,
com um segredo de sete mil cadeados
aqui onde o mapa quase finda.

IIIº

sim, leio todos os jornais vespertinos
com suas notícias fresquinhas
saídas inda pouco
com odor de tragédia urbana,
com gosto de sangue desconhecido,
de poeira que não abaixou sobre os escombros,
com cara de bomba que não cansou de explodir.
sim, sinto um orgulho de catedrais
(ânsia de suicida)
mas me atrevo e meço
e grito – porra, não existe nenhuma roupa pro domingo!
deixo a janela,
volto ao banco de madeira
que ama minha cama,
que ama meu lençol,
que ama meu corpo
exposto aos mosquitos (no quarto dos fundos da vida)
e minto
ah, é preciso voltar
e recompor o antigo álbum de família.

porto velho abril de 82

x-x

pequeno elogio à loucura

jamais alguém conviveu com meu quarto,
ninguém escutou os absurdos de meu espelho,
ninguém passou horas e horas
com minha cama ou ouviu as confissões
do meu travesseiro.
ah! jamais alguém bateu em minha porta,
ninguém chamou de covarde
aquele mocinho do filme
que me atirou pelas costas.

x-x

aos meus sobrinhos Pablo, Bárbara e Mariana
e ao meu filho Nonato

sim, eu preferia minha boca
                                         cerrada
se num segundo trouxesse
no bojo da palavra
alguma esperança vã.
agora
lanço no poema o carrossel, a ciranda,
o doce da venda, a fruta maçã...
(ah, quem dera um grito amigo
pra acordar o homem todas as manhãs).

x-x

afirmativa

estou entre a foto e o fato
entre o aborto e o parto.

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