só mas não nu
Iº
quisera meu poema seda
vestir sua pele nua.
mas por onde anda essa
estranha musa
que não acredita em estrelas
nem no beijo demorado no
banco liso da praça?
mas essa musa de que falo
já foi criança comigo
de beco, roda, rosa,
corredeira...
já foi vizinha de meus
sonhos;
musa é só um instante
de febre, flor e perfume.
agora que sinto a distância
na palidez da pele,
nos selos das cartas
lacradas de medo e baba,
tenho meu consolo (só mas
não nu)
com esse amargo de boldo
no solo úmido da língua.
IIº
mas também sei dos meus
olhos fuzilados
no paredão escuro dessa
cena,
dessa juventude, doce
juventude
como em novelas, jovens
dóceis (doce)
sem cáries nos dentes,
sem esse amargo na língua
doce (beijo doce)
que comove os que moram do
lado de fora do vídeo,
enquanto minha juventude é
linchada
em ruas, prédios e festas.
ah, mas é preciso manter as
classes?
e dizer – bom dia!?
é preciso dissolver a azia
num copo d’água
com sal de frutas e repetir
a mesma frase permitida?
só mas não nu
com uma estória pra contar,
com uma faca firme entre os
dedos,
com um segredo de sete mil
cadeados
aqui onde o mapa quase
finda.
IIIº
sim, leio todos os jornais
vespertinos
com suas notícias
fresquinhas
saídas inda pouco
com odor de tragédia urbana,
com gosto de sangue
desconhecido,
de poeira que não abaixou
sobre os escombros,
com cara de bomba que não
cansou de explodir.
sim, sinto um orgulho de
catedrais
(ânsia de suicida)
mas me atrevo e meço
e grito – porra, não existe
nenhuma roupa pro domingo!
deixo a janela,
volto ao banco de madeira
que ama minha cama,
que ama meu lençol,
que ama meu corpo
exposto aos mosquitos (no
quarto dos fundos da vida)
e minto
ah, é preciso voltar
e recompor o antigo álbum de
família.
porto velho abril de 82
x-x
pequeno elogio à loucura
jamais alguém conviveu com
meu quarto,
ninguém escutou os absurdos
de meu espelho,
ninguém passou horas e horas
com minha cama ou ouviu as
confissões
do meu travesseiro.
ah! jamais alguém bateu em
minha porta,
ninguém chamou de covarde
aquele mocinho do filme
que me atirou pelas costas.
x-x
aos meus sobrinhos Pablo, Bárbara e Mariana
e ao meu filho Nonato
sim, eu preferia minha boca
cerrada
se num segundo trouxesse
no bojo da palavra
alguma esperança vã.
agora
lanço no poema o carrossel,
a ciranda,
o doce da venda, a fruta
maçã...
(ah, quem dera um grito
amigo
pra acordar o homem todas as
manhãs).
x-x
afirmativa
estou entre a foto e o fato
entre o aborto e o parto.
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