mesmo que o corte não seja
tão profundo
sempre fica a marca e o
gosto da lâmina
e mesmo que a dor passe nos
segundos
sempre fica o golpe, a cena,
o drama.
-.-.-.-.-.-
Em
1984, o meu amigo, poeta Mauro Fonseca publicou um segundo livreto chamado “Não
há Sinal de Porto Algum”, Naveta Publicações, ilustrações de Fernando Motta
Rodrigues, Juiz de Fora/MG, composto de 13 poemas, os quais irei transcrever a
seguir:
x-x
quando falar deste mar
e no naufrágio do outro,
lembra que as tuas amarras
jamais deixaram teu porto.
x-x
nem tão distante sem gosto
ou profunda
mas rasa e visível como a
lama que encharca
os sapatos e suja as meias
lisas e brancas
nem sequer misteriosa negra
absurda
mas clara na visão que muda
a todo dia e hora
como no pão ou nas mãos
ásperas que trabalham a massa
nem horizontes onde se
perdem olhos e gestos
mas na esquina ou mesmo
dentro das tardes
em que amamos sofremos e
morremos juntos
nem mesmo miserável tonta
puta num passado que ainda fede
mas agora nesse minuto que
tenho
pra fazer amor pânico um
verso.
x-x
das coisas mudas
o tempo e a cidade
me incomodam, me envelhecem
mas em minha casa os móveis
os talheres não pensam assim
continuam em eterno uso
resistem com um motor
discreto
a trabalhar e trabalhar meu
mundo.
em minha casa a fruteira
o moedor de carnes não são
paranóicos
não fazem poemas, não sentem
dor
atravessam os dias e as
noites
sem mentir, sem extorquir
com esse possante e estranho
motor
(como o jarro que
gentilmente segura
nossa violência numa flor).
x-x
da cena
sim, aceno a mão e se aceno
a mão
querem que fico mas passo passo...
como a vidraça do trem como
a paisagem
como a tempestade como a
vida que passa
lenta e ofegante como o ódio
o amor a febre passa.
sim, acendo a mão dentro da
noite como se
ainda fosse possível o grito
na cidade
o país a clarear e rodear de
moscas vermes e fumaça.
sim, da cena aceno acendo a
mão
sem esse adeus entre os
dedos
sem esse pudor absurdo
a nos transformar em ferro
como
grades
como
um muro.
x-x
sim, eu moro em mim
... e se eu não morasse em
mim
me sentiria solitário
sem meus olhos, sem meu
fígado,
sem minhas mãos, sem meus
rins,
sem esse meu tão doído calo.
se eu não morasse em mim
estaria com certeza
desabrigado
sem minha úlcera, sem minhas
manias,
sem meus dentes, minhas
unhas,
jamais viveria com o vizinho
do lado.
se eu não morasse em mim
com meus pesadelos, minhas
dúvidas
e minha voz tão rouca,
não saberia como são lindas
as estrelas que brilham
no céu da minha boca.
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