sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Poemas de Mauro Fonseca - Parte 3

mesmo que o corte não seja tão profundo
sempre fica a marca e o gosto da lâmina
e mesmo que a dor passe nos segundos
sempre fica o golpe, a cena, o drama.

-.-.-.-.-.-

         Em 1984, o meu amigo, poeta Mauro Fonseca publicou um segundo livreto chamado “Não há Sinal de Porto Algum”, Naveta Publicações, ilustrações de Fernando Motta Rodrigues, Juiz de Fora/MG, composto de 13 poemas, os quais irei transcrever a seguir:

x-x

quando falar deste mar
e no naufrágio do outro,
lembra que as tuas amarras
jamais deixaram teu porto.

x-x

nem tão distante sem gosto ou profunda
mas rasa e visível como a lama que encharca
os sapatos e suja as meias lisas e brancas
nem sequer misteriosa negra absurda
mas clara na visão que muda a todo dia e hora
como no pão ou nas mãos ásperas que trabalham a massa
nem horizontes onde se perdem olhos e gestos
mas na esquina ou mesmo dentro das tardes
em que amamos sofremos e morremos juntos
nem mesmo miserável tonta puta num passado que ainda fede
mas agora nesse minuto que tenho
pra fazer amor pânico um verso.

x-x

das coisas mudas

o tempo e a cidade
me incomodam, me envelhecem
mas em minha casa os móveis
os talheres não pensam assim
continuam em eterno uso
resistem com um motor discreto
a trabalhar e trabalhar meu mundo.
em minha casa a fruteira
o moedor de carnes não são paranóicos
não fazem poemas, não sentem dor
atravessam os dias e as noites
sem mentir, sem extorquir
com esse possante e estranho motor
(como o jarro que gentilmente segura
nossa violência numa flor).

x-x

da cena

sim, aceno a mão e se aceno a mão
querem que fico mas passo passo...
como a vidraça do trem como a paisagem
como a tempestade como a vida que passa
lenta e ofegante como o ódio o amor a febre passa.
sim, acendo a mão dentro da noite como se
ainda fosse possível o grito na cidade
o país a clarear e rodear de moscas vermes e fumaça.
sim, da cena aceno acendo a mão
sem esse adeus entre os dedos
sem esse pudor absurdo
a nos transformar em ferro
                                     como grades
                                          como um muro.

x-x

sim, eu moro em mim

... e se eu não morasse em mim
me sentiria solitário
sem meus olhos, sem meu fígado,
sem minhas mãos, sem meus rins,
sem esse meu tão doído calo.
se eu não morasse em mim
estaria com certeza desabrigado
sem minha úlcera, sem minhas manias,
sem meus dentes, minhas unhas,
jamais viveria com o vizinho do lado.
se eu não morasse em mim
com meus pesadelos, minhas dúvidas
e minha voz tão rouca,
não saberia como são lindas
as estrelas que brilham
no céu da minha boca.

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