quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 10)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      Há muito tempo já que estavam queimando o herege e o povo se divertia a valer. O diabo experimentava, também, certa alegria, porque aquilo lhe recordava o inferno. Mas lembrou-se, repentinamente, da mosca, a qual não se atreveu a matar, e as contradições começaram, a desassossegá-lo outra vez.
      Olhou o velho sacerdote e viu que este, mantendo-se de pé à custa de grandes sacrifícios, por causa de sua debilidade, estava pálido de emoção; tremiam-lhe as mãos, nos seus olhos brilhavam lágrimas de felicidade, e todo o seu semblante parecia iluminado por uma divina alegria.
      No inferno, os diabos queimavam, com freqüência, os pecadores, mas durante essa operação seus rostos jamais exprimiram tão grande felicidade.
      Ficou estonteado, sem nada compreender. O sacerdote estava louco de alegria. Regozijou-se tanto com o espetáculo que, de regresso à casa, foi obrigado a se meter no leito, tal era a sua emoção.
      O diabo não se pôde conter e entabulou conversa:
      - Quisera saber, meu padre, por que se regozija o senhor desse modo.
      - Pois é muito natural: acabam de queimar um herege - respondeu o padre com doce acento na voz.
      - Esquece o senhor que está escrito nas Santas Escrituras: "Não matarás?". No entanto, mataram um homem, e o senhor se alegra!
      - Ninguém o matou.
      - Mas se o queimaram!
      - Claro, meu amigo! Queimaram-no, graças a Deus. - Revirou os olhos, deliciado, e seu rosto expressou uma beatitude tão cândida e inocente como a de uma criança.
      O diabo esfregava a fronte enrugada, com sua ampla e peluda garra, e quebrava a cabeça para explicar-se esta nova contradição. "Não entendo nada - pensava. - Provavelmente tudo dependerá de como se faça o bem." E, com o coração opresso, resolveu ter paciência e esperar que o sacerdote concluísse o trabalho. Mas não voltou ao seu cantinho; permaneceu junto ao padre, como criado.
      Servia-lhe a comida, arranjava-lhe o aposento, limpava-lhe a roupa e varria o solo.
      - Em tudo isto - dizia - não pode haver o menor pecado.
      Quando o sacerdote, vencendo sua crescente debilidade, se assentava à mesa para escrever, o diabo esticava o busto largo e musculoso, seguindo o trabalho com o olhar, temeroso de que seu professor cometesse o menor erro.
      Aquele trabalho era a sua única e última esperança.
      Afinal, o manuscrito ficou pronto. A vida de seu autor parecia acabar-se com ele. O sacerdote já não podia se levantar da cama; nela foi obrigado a escrever, deitado, as ultimas linhas. Eram irregulares e pouco legíveis, mas tornaram-se as mais queridas para o diabo, precisamente por serem as últimas.
      Ajoelhado ante o sacerdote moribundo, o diabo recebeu de suas mãos aquela preciosa dádiva, e beijou com verdadeiro amor a mão esquelética que a entregara.
      - Estás contente? - perguntou-lhe o sacerdote. - Pois eu também estou. Mas tem cuidado, para não praticares nenhuma tolice!
      - Agora estou seguro de mim - respondeu alegremente o diabo. – Vou cumprir, palavra por palavra e letra por letra, tudo o que está escrito aqui. A menos que o senhor haja cometido algum erro...
      - Sim; eu sei que porás muito zelo nisso. Mas, pelo amor de Deus! não percas o manuscrito, porque não encontrarias outro... Onde pensas ir? Se não te distanciares muito, vem ver-me de vez em quando. Sentirei falta de ti. Acostumei-me tanto a ver-te! Antes, teu nariz parecia-me muito feio; agora me agrada... O que é o hábito!... Onde pensas ir?...
      - Vou percorrer o mundo ! - respondeu o diabo. - Pena que o senhor morra logo. O senhor devia viver ainda seis meses, pelo menos. Assim poderia lhe contar muitas e boas coisas. Ah! se o senhor soubesse como estou ansioso para fazer o bem! Que lástima que o senhor não possa ver-me trabalhar!
      O diabo partiu, mas eis aqui o que lhe aconteceu:
      Em lugar de começar sua obra com juízo, conforme o programa elaborado pelo velho sacerdote, apresentou-se no inferno, para nele propagar o bem.
      Por que o fez?
      Não se sabe. Talvez tenha perdido a razão, de alegria, talvez movido pelo orgulho e pela vaidade e quisesse exibir-se perante os demais diabos, ou talvez tivesse sentido a imperiosa necessidade de visitar o lugar de seu nascimento.
      O caso foi que mal abandonou a casa do sacerdote, encaminhou-se diretamente ao inferno, sem a mínima hesitação.
      Qual foi o resultado da visita?

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