segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Uma História de Judas - João Alphonsus

     UMA HISTÓRIA DE JUDAS
     JOÃO ALPHONSUS
     (1901-1944 - Brasil)

      "Grande contista" (Mário de Andrade dixit), o mineiro João Alphonsus publicou apenas três curtos livros do gênero: Galinha Cega, Pesca da Baleia e Eis a Noite! De uma família de escritores que remonta ao romântico Bernardo Guimarães, e filho do simbolista Alphonsus de Guimarães, foi também romancista (Totônio Pacheco, Rola-Moça). Seu humor não nos leva ao riso franco, pois traduz "uma literatura humana, terrivelmente, miudamente, dolorosamente humana" (Drummond). É o brasileiro patético do interior, anos 1940, 1950, este "Judas" mineiro.

      Como Sexta-feira da Paixão fosse dia santo, um dia santo extraordinário em todo o mundo cristão, o homem teve a primeira contrariedade do dia quando a mulher lhe comunicou que não havia café com leite. Só café. O leiteiro anunciara de véspera que ele descansaria sexta-feira, que os ubres de suas vacas descansariam, isto é, que não haveria distribuição de leite. Sizenando, como burocrata que era, achava naturalíssimo não trabalhar de Quarta-feira de Trevas a Domingo da Ressurreição. Mas o leiteiro não tinha esse direito. Deixar de tirar o leite de suas vacas!
      Bebeu o café simples. O líquido lhe fez certo bem ao estômago, tanto assim que sentiu uma disposição não para a alegria franca, que não era do seu feitio, mas para o humorismo. Brotou-lhe na cabeça um pensamento humorístico: - os bezerros hoje vão ter indigestão de leite; que festa para eles... Lembrou porém que a medida não era geral: haveria outros leiteiros que não respeitavam a santidade máxima do dia. Uma lástima. E um pecado. Os bezerros, afinal de contas, são dignos de uma certa consideração.
      Depois que sua mulher saiu para a igreja, Sizenando tirou um cigarro do bolso do pijama de zefir estampado e caminhou para o alpendre florido de sua casa, um bungalow como outros muitos, suburbano e tranqüilo. Caminhou para a espreguiçadeira: fumar sossegado, gozar a paisagem da manhã, ler jornal, produzir outros pensamentos iguais ao dos bezerros, filosofar. Fica entendido que o seu filosofar não passava além daquilo: humorismo simples em torno das vacas, da repartição pública, das mulheres alheias, com sal e pimenta. Seria um homem feliz, se não houvesse um motivo para o contrário. O jornal anunciava bailes à fantasia para Sábado de Aleluia, o que o fez recordar um companheiro de repartição, seu rival na candidatura à promoção iminente. Tal colega era um sujeito carnavalesco, chefe de foliões, e safado como poucos! Perito em traições, como Judas... Mas logo teve pena de Judas: porque comparar o traidor de Jesus àquele sujeito, se o pobre Judas não devia ser tão mau assim, coitado?
      Mal formulara essa pergunta sem resposta, viu aproximar-se do portão de sua casa, olhando-a atentamente com o ar de quem almejasse lhe penetrar os umbrais, um desconhecido vestido de preto, luto por algum parente, ou respeito à tradição de se enlutar a pessoa, quando religiosa, naquele dia. Sizenando deslizou ligeiro da espreguiçadeira para dentro de casa, agachado atrás da jardineira que circulava o alpendre.
      - Tem um sujeito aí. Já está batendo palmas... Pergunte o nome e venha saber se estou em casa.
      A criada cumpriu a recomendação e voltou com os olhos muito abertos, cara de espanto:
      - Ele disse que é Judas. Judas Iscariotes.
      - É?!
      O homem teve um minuto de hesitação, depois do que ordenou calmamente à criada que introduzisse o sujeito na sala. Nova hesitação, depois da qual resolveu aparecer-lhe mesmo de pijama e barba de dois dias. Para que cerimônias? Pediria desculpas. O visitante matutino devia ser algum pândego. Ou doido? Entrou na sala com uma certa inquietude.
      - Bom dia.
      - Bom dia. O senhor como vai?
      - Regularmente. Às ordens.
      O estranho era banal e comum, embora grave e solene; nem alto, nem baixo; nem gordo, nem magro. Parecia sentir calor dentro do terno preto; mesmo cansaço, desânimo. Os olhos, no entanto, brilhavam com animação, de um modo esquisito, como se não fossem da mesma pessoa.
      - Às ordens, insistiu Sizenando. Peço desculpas pela falta de cerimônia do pijama.
      - E eu, peço desculpas pela importunação matutina. Sou Judas Iscariotes; ou de Kerioth, que é mais erudito e pedante. Sou e não sou. Sou o espírito de Judas invocado pelo sujeito que está sentado nesta cadeira. Fui invocado no Domingo de Ramos; tenho que permanecer no corpo dele a semana inteira... 
      Sizenando notou que a voz era pura, franca, simpática: como os olhos, não parecia pertencer ao mesmo indivíduo; não sendo espírita, nenhuma conclusão tirou do fenômeno presente; continuou calado, cortesmente incrédulo, sorrindo.
      - Quer provas? Para um espírito, não era necessário que o senhor fizesse o homem invisível, pois se entrei aqui foi porque talvez tenha sido o senhor a única pessoa que nesta emergência anual me dedicou um pensamento de relativa simpatia. O senhor acha mesmo que não sou tão traidor como aquele seu colega de repartição?
      O espanto de Sizenando foi imenso. Era verdade! Um fato real... e tão natural, com discrição e polidez, à luz do dia, que não lhe causava medo nenhum, aquela alma do outro mundo, Judas...
      - A minha encarnação neste indivíduo foi divertida. A técnica é diferente: nunca apareci em sessão espírita nenhuma; quando um sujeito está realizando uma traição, nas proximidades do meu dia de cada ano, eu entro no corpo dele. Por uns dias. Este meu hospedeiro foi visitar um amigo no último domingo. Visitar a mulher do amigo, que estava sozinha em casa .No momento em que externava o seu desejo à mulher, me apossei do corpo dele, dei uma desculpa esfarrapada para não continuar o assunto e fui saindo. A esposa do outro ficou surpresa e contrariada, porque já se ia no embalo; e tive uma tentação de apanhar pedras na rua para apedrejar a adultera biblicamente, como no meu tempo. Mas, como dizia o Mestre, quem é que pode atirar a primeira pedra? Além disso, o calçamento era de asfalto, e eu tinha pressa de perambular, perambular, perambular... Isto faz parte dos castigos impostos a Judas Iscariotes. Mas penso que qualquer dessas traições que há por aí é muito pior que a minha.
      - Eu também penso.
      - O senhor assim pensa quando é o traído. E quando é o traidor? Aquela sua intriga foi malsucedida. E o seu colega tinha pistolões mais fortes... Quanto a mim, prefiro encarnar nos traidores políticos (quis variar, este ano). O terreno é fértil e simpático, pois a minha traição foi eminentemente política. Do meu beijo perjuro dependia a redenção da humanidade. Ora, eu conhecia as profecias, acreditava no Divino Mestre, sabia que era o momento de surgir o traidor. Se eu explicasse tudo isso aos perseguidores do Nazareno? Talvez lhes tivesse aberto os olhos. Preferi aceitar os trinta dinheiros, que perdi no jogo, e fazer o papel profetizado, estabelecido, benemérito. Benemérito pelas suas conseqüências. Sofri muito ao aceitar a imposição da profecia. Estou sofrendo ainda.
      - Tenho pena do senhor.
      - Que é que me adianta a sua pena? A minha tese é esta: pode alguém ficar eternamente responsável por um ato, que já estava divinamente pré-estabelecido numa cadeia de acontecimentos inadiáveis?
      - Não pode não. É um absurdo!
      - Pode. Tanto pode, que estou responsável. Eu podia ter recusado o papel. E o senhor acredita no livre arbítrio... Falou - não pode não! - quando pensava o contrário: que seria incapaz de trair como eu, com um beijo... Traidor! O senhor sabe que vai ser processado por calúnia? Jurou que o seu competidor na vaga da repartição havia feito desaparecer o processo referente ao desfalque. O processo foi encontrada no segundo escaninho da estante quarta do arquivo, lá onde o senhor o tinha escondido... O competidor vitorioso quer processá-lo judicialmente.
      - Sei disso. Já procurei saber qual é a pena de prisão. Mas o processo não pega.
      - Pega sim. Para mim, não existe passado, nem presente, nem futuro. Tudo é a mesma coisa. A eternidade. O senhor será condenado. E perderá o emprego, além da; reputação, pois a falta é também funcional. Perderá tudo. Ficará na miséria. MISÉRIA!
      O estranho visitante, de pé, se debruçou brutalmente sobre Sizenando e os seus olhos ardentes olhavam tanto, tão agudamente, que o nosso homem sentiu no corpo uma impressão irremediável de punhais que lhe estraçalhassem as vísceras, de acabamento integral: não tinha cor no rosto e tremia. A voz quente de Judas ciciou no seu ouvido esquerdo:
      - O senhor não tem no quintal uma figueira?
      - Não, mas tenho no quarto um revólver.
      - Então, adeus. Até à eternidade.
      Passou a porta, o portão. Na rua, parecia um homem como outro qualquer. Mas não era. Tanto não era que Sizenando foi automaticamente à gaveta onde guardava o revólver. Não, pensou: vou esperar minha mulher voltar da missa e lhe conto tudo. Os olhos eternos de Judas não saíam da sua memória: a impressão, do corpo. Será possível que eu seja a vítima escolhida para tanta perseguição, por causa de uma caluniazinha? E os outros, os outros que pululam por aí, sem processo e sem miséria!
      Sua perturbação era extrema. Raciocinou: estas coisas estão absurdas, tão absurdas que só podem ser sonho; se não estou acordado e se não tenho revólver real na mão, vou dar um tiro na cabeça com este revólver de mentira, pois despertarei com o estampido. Raciocinando desse modo, com todo o seu bom senso, Sizenando puxou o gatilho. A criada, que estava na cozinha, saiu correndo como louca na direção do quarto, ouvindo a detonação, e o baque do corpo.

      (“Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal”, organização de Flávio Moreira da Costa, Ediouro, Rio de Janeiro, 2001, 3ª Edição, Páginas 457 a 460.)

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