“Monólogo quinto – Fala DRÁCULA
Ninguém conhece como o vampiro a alegria da noite. O dia é uma miragem,
uma perturbação atmosférica: a noite é um complexo e rico estado de ânimo.
Saboreio até ao âmago, até ao estremecido limite, o júbilo secreto da noite. Já
alguma vez pensaram que de dia só se veem sombras, vultos que interceptam a luz
com a sua opacidade, enquanto de noite só se veem fulgores, lampejos que
desmentem as trevas? O objetivo do dia é o escuro, o opaco, enquanto a noite só
sabe de resplendores. Mas sabe também que é a escuridão o que realmente permite
que nos fixemos na luz e não nos vultos por ela iluminados, do mesmo modo que
eu sei que é a morte perenemente parecida o que nos prepara para nos deixarmos
fascinar plenamente pela vida. Para viver algo mais intenso, mais apurado, mais
saboroso do que a discreta modorra de temores e obrigações, habitualmente
chamada vida, é imprescindível estar morto e bem morto. A morte é o único
interesse da vida, o único condimento que tempera a sua sensaboria. Mas
normalmente procuram-nos com excessiva generosidade: os homens vivem tão
obcecados pela riqueza pavorosa da morte que mal têm tempo de reparar na vida,
tal como o excesso de luz diurna os cega em relação a tudo o que não sejam
sombras e manchas. Passam o tempo – matam-no,
mais exatamente – a tentar afastar a morte, evitando-a, combatendo-a ou
infligindo-a aos outros, a ver morrer os seus, compadecendo-se deles,
invejando-os, calculando o tempo que lhes resta para ficarem completamente sem
tempo. Não é raro que só imaginem a verdadeira vida depois da morte, seja ela
gozada pessoalmente num além-túmulo ou seja ela desfrutada por bem-aventuradas
gerações futuras. Mas, como o céu é incrível e o futuro incerto, a vida adiada
não chega a ter verossimilhança. E, apesar disso, acertam pelo menos numa
coisa, em que para viver se tem de estar convenientemente morto...
Tenho satisfatoriamente resolvido o
problema que os aflige e que também a mim me afligiu um dia. Consegui que a
vida seja o meu único objetivo, a minha única obsessão: a mim, a vida
acicata-me e sacia-me tal como a eles a morte. Mas não a vida laboriosa e
apaziguada do harmonioso futuro, nem as harpas e nuvens de insossos paraísos
dogmáticos: não, a minha vida, a minha maravilhosa e plena vida, é a que
prometem os seios nus das donzelas, a que vibra de risco e aventura, a que se
afirma no poder ou no terror, a que se estriba no cálido sangue. Vida presente
aqui e agora, para sempre, sem limites. Tive de pagar por ela, porque tudo tem
um preço, mas não fui defraudado por este investimento. Estou morto, claro: e
que outro meio há para gozar plenamente a vida como algo positivo e não como um
atabalhoado sonho que se nos escapa? Vista do lado da morte, a vida apresenta
toda a sua riqueza maravilhosa, a sutileza desconcertante das suas
experiências, os proibidos deleites que o temor da morte recusa aos mortais. Eu
cavalgo o vento, sou senhor dos lobos e das tempestades, alimento com as
mulheres mais belas paixões com que a luz do dia nem sequer pode sonhar! Certa
noite, aquele inofensivo idiota que alojei no meu castelo transilvano viu-me
descer de cabeça para baixo, como uma
monstruosa aranha, pela inacessível parede do meu torreão... É o emblema do meu
destino de que mais gosto. Recordo com nostalgia e um certo desagrado a minha
viagem à puritana Inglaterra: foram aquelas absurdas personagens, o estúpido
Jonathan Harker, o sombrio e místico Van Helsing, as enjoadas Lucy Westenra e
Mina Murray, que criaram a fábula hiperbólica da minha maldade infernal. Na
Transilvânia, um povo sábio e, portanto, fatalista sabe que o mal é um dos
rostos inevitáveis da grandeza; mas os ingleses ficam boquiabertos perante ele
como se fosse um escândalo ou mesmo uma descortesia. Pelos vistos esperavam que
um Imortal acatasse discretamente os preceitos da moral vitoriana... quando nem
mesmo as figuras autenticamente nobres dessa época os respeitavam! Nunca
entenderam em que é que residia a minha peculiaridade: desde aquele brumoso dia
em que cheguei ao porto de Whitby no meu barco tripulado por cadáveres,
começaram a inventar-me uma personalidade que tinha um pouco de Jack, o
Estripador, e um pouco de Oscar Wilde, uma espécie de Aleister Crowley
fantasmagórico. Os códigos deles estão bem para essa temerosa luz em que se
veem obrigados a viver os condenados à morte. Mas na minha treva deslumbrante
não há lugar senão para a paixão. O dia é ataúde, mas a noite traz o desejo e a
aurora oferecerá sangue. Só eu, o morto, o imortal, poderia contar-lhes que
entrega deliciosa é a vida. Só eu, o rei da noite.”
(Do livro “Criaturas
do Ar”, de Fernando Savater, Edição JORNALIVROS, do jornal “O Globo”, de 26 de
abril de 1994.)
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