A CONVERSÃO DO DIABO
Leonid Andreiev
Apenas abriu a boca para pregar um sermão
e os demais diabos plantaram-se diante dele e começaram também a pronunciar
sermões acerca da necessidade do bem, até com mais energia e eloquência do que
ele. Todos eram especialistas na arte de mentir.
Num instante toda a verdade se
transformou numa mentira e as mais santas palavras, gritadas por aqueles lábios
impuros e desavergonhados, tornaram-se em abomináveis opróbrios. Todo o inferno
se encheu de predicadores e de santos. E Satanás, alegre com esta nova
diversão, se pôs diante de todos e, morrendo de rir, entoava cânticos
religiosos com voz fanhosa.
Algumas bruxas, velhas e repelentes,
representavam comédias cujos assuntos eram a Verdade, o Bem e a Virtude. Nunca,
até então, nem nos dias de maiores festivais, teve o inferno um aspecto tão
infernal. Vieram depois cenas de obscenidade, cheias de gestos impudicos e, por
último, acabaram brigando uns com os outros.
Nosso diabo, que há muito tempo havia
perdido o costume da vida infernal, assim como a força física e a habilidade,
era maltratado e batido como nenhum outro. O mais triste de tudo, porém, foi
que, no curso da luta, lhe rasgaram o manuscrito. Quando, depois de conseguir
livrar-se das mãos de um grupo de bruxas ébrias, deitou sobre o pobre
manuscrito um olhar e o viu completamente roto, ficou quase louco de dor, e
soltou longos e queixosos gemidos.
No seu desespero chegou a insultar o
próprio Satanás. Este deu tais mostras de cólera, que o infeliz discípulo do
velho sacerdote se apressou a fugir. Corria com toda a velocidade que lhe
permitiam suas pernas cansadas, apertando ao peito o manuscrito despedaçado.
Corria à casa do velho professor, para que este lhe desse outro.
Mas o velho sacerdote estava moribundo.
- Espere o senhor um momento! -
suplicava-lhe o diabo, ajoelhando-se diante de sua cama. - Espera! Acabam de
rasgar o meu manuscrito!
Durante dez minutos pelo menos, o diabo
gritou, gemeu e implorou, rogando que lhe trocassem por outro o manuscrito
rasgado.
Depois, esforçou-se por tranquilizar-se e
deixando de lado o manuscrito, aproximou-se ainda mais da cama do velho
sacerdote. Após um prolongado silêncio, este abriu, penosamente, os lábios
ressequidos, perguntando com voz débil:
- Fizeste alguma nova tolice?
O diabo lançou um olhar triste ao
manuscrito esfacelado, mas, para não afligir o moribundo, ocultou-lhe a
verdade.
- Não é nada, meu padre, senão que vê-lo
assim me enche de pesar. É verdade que o senhor vai morrer? Ou o senhor viverá
ainda um pouco?
- Nem um só dia mais, meu amigo. Ontem
fiz os meus preparativos para a grande viagem; decidi, porém, esperar mais um
dia, com a ilusão de tornar a ver-te. E aqui estás!... Graças, meu amigo!...
Faça o favor de levantar a cortininha da janela; quero olhar os arredores pela
última vez.
Mas pela janela somente se via um
cantinho de telhado vermelho e um pedacinho de céu, onde pairava uma nuvem
vagarosa. O sacerdote se pôs a contemplá-la com alegria, enquanto o diabo
pensava: "O que olha ele? Não há nada a ver: o telhado e um pedacinho do
céu... Será porventura a núvem que lhe causa tanta felicidade?..."
E teve uma idéia. "Vou levá-lo ao
alto do campanário: dali verá todas as nuvens que passam no céu e todos os
telhados de sua Florença... E assim o fez.
Sem nada perguntar ao sacerdote, segurou
em seus braços musculosos o corpo frágil e extenuado deste e levou-o, com
muitas precauções, ao campanário, sobre uma pequena plataforma, da qual se
descortinava o admirável panorama da cidade e dos campos circunvizinhos.
- Agora olhe, meu padre. Isto é melhor do
que olhar pela janela. Aqui se aprecia uma vista mais ampla e mais bela.
Puseram-se, ambos, a olhar, cheios de
admiração.
O sol já estava quase escondido. Na
margem oposta do rio Arno, sobre uma elevada colina, distinguiam-se alguns
ciprestes negros, que pareciam prontos a perfurar o sol mortiço com suas copas
agudas. Na outra margem do rio, os confins do horizonte, estendiam-se as
montanhas que, aos suaves reflexos azulados do entardecer, pareciam diáfanas e
fantásticas. Toda a formosa cidade estava como que rodeada de gigantescas
grinaldas de flores perfumadas. Os povoados longínquos, situados nas encostas
da montanha, pareciam florezinhas rosadas, espalhadas aqui e ali. As sombras
crepusculares perdiam-se entre as montanhas...
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