sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 11)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      Apenas abriu a boca para pregar um sermão e os demais diabos plantaram-se diante dele e começaram também a pronunciar sermões acerca da necessidade do bem, até com mais energia e eloquência do que ele. Todos eram especialistas na arte de mentir.
      Num instante toda a verdade se transformou numa mentira e as mais santas palavras, gritadas por aqueles lábios impuros e desavergonhados, tornaram-se em abomináveis opróbrios. Todo o inferno se encheu de predicadores e de santos. E Satanás, alegre com esta nova diversão, se pôs diante de todos e, morrendo de rir, entoava cânticos religiosos com voz fanhosa.
      Algumas bruxas, velhas e repelentes, representavam comédias cujos assuntos eram a Verdade, o Bem e a Virtude. Nunca, até então, nem nos dias de maiores festivais, teve o inferno um aspecto tão infernal. Vieram depois cenas de obscenidade, cheias de gestos impudicos e, por último, acabaram brigando uns com os outros.
      Nosso diabo, que há muito tempo havia perdido o costume da vida infernal, assim como a força física e a habilidade, era maltratado e batido como nenhum outro. O mais triste de tudo, porém, foi que, no curso da luta, lhe rasgaram o manuscrito. Quando, depois de conseguir livrar-se das mãos de um grupo de bruxas ébrias, deitou sobre o pobre manuscrito um olhar e o viu completamente roto, ficou quase louco de dor, e soltou longos e queixosos gemidos.
      No seu desespero chegou a insultar o próprio Satanás. Este deu tais mostras de cólera, que o infeliz discípulo do velho sacerdote se apressou a fugir. Corria com toda a velocidade que lhe permitiam suas pernas cansadas, apertando ao peito o manuscrito despedaçado. Corria à casa do velho professor, para que este lhe desse outro.
      Mas o velho sacerdote estava moribundo.
      - Espere o senhor um momento! - suplicava-lhe o diabo, ajoelhando-se diante de sua cama. - Espera! Acabam de rasgar o meu manuscrito!
      Durante dez minutos pelo menos, o diabo gritou, gemeu e implorou, rogando que lhe trocassem por outro o manuscrito rasgado.
      Depois, esforçou-se por tranquilizar-se e deixando de lado o manuscrito, aproximou-se ainda mais da cama do velho sacerdote. Após um prolongado silêncio, este abriu, penosamente, os lábios ressequidos, perguntando com voz débil:
      - Fizeste alguma nova tolice?
      O diabo lançou um olhar triste ao manuscrito esfacelado, mas, para não afligir o moribundo, ocultou-lhe a verdade.
      - Não é nada, meu padre, senão que vê-lo assim me enche de pesar. É verdade que o senhor vai morrer? Ou o senhor viverá ainda um pouco?
      - Nem um só dia mais, meu amigo. Ontem fiz os meus preparativos para a grande viagem; decidi, porém, esperar mais um dia, com a ilusão de tornar a ver-te. E aqui estás!... Graças, meu amigo!... Faça o favor de levantar a cortininha da janela; quero olhar os arredores pela última vez.
      Mas pela janela somente se via um cantinho de telhado vermelho e um pedacinho de céu, onde pairava uma nuvem vagarosa. O sacerdote se pôs a contemplá-la com alegria, enquanto o diabo pensava: "O que olha ele? Não há nada a ver: o telhado e um pedacinho do céu... Será porventura a núvem que lhe causa tanta felicidade?..."
      E teve uma idéia. "Vou levá-lo ao alto do campanário: dali verá todas as nuvens que passam no céu e todos os telhados de sua Florença... E assim o fez.
      Sem nada perguntar ao sacerdote, segurou em seus braços musculosos o corpo frágil e extenuado deste e levou-o, com muitas precauções, ao campanário, sobre uma pequena plataforma, da qual se descortinava o admirável panorama da cidade e dos campos circunvizinhos.
      - Agora olhe, meu padre. Isto é melhor do que olhar pela janela. Aqui se aprecia uma vista mais ampla e mais bela.
      Puseram-se, ambos, a olhar, cheios de admiração.
      O sol já estava quase escondido. Na margem oposta do rio Arno, sobre uma elevada colina, distinguiam-se alguns ciprestes negros, que pareciam prontos a perfurar o sol mortiço com suas copas agudas. Na outra margem do rio, os confins do horizonte, estendiam-se as montanhas que, aos suaves reflexos azulados do entardecer, pareciam diáfanas e fantásticas. Toda a formosa cidade estava como que rodeada de gigantescas grinaldas de flores perfumadas. Os povoados longínquos, situados nas encostas da montanha, pareciam florezinhas rosadas, espalhadas aqui e ali. As sombras crepusculares perdiam-se entre as montanhas...

Nenhum comentário:

Postar um comentário