“CAPÍTULO NEGRO
Tenho sido injusto para com a Noite. Amo
a Noite e vivo a difamá-la, chegando mesmo ao crime de tomar narcótico para
combater a insônia – esse meu único bem. A Noite é a túnica que me assenta como
uma luva, como o sudário a um cadáver, ou – já que estou mesmo no terreno das
comparações – como óculos escuros num cego de nascença, em pleno meio-dia.
Só não amo, na Noite, as baratas e os
escorpiões, estes felizmente mais raros de encontrar do que os fantasmas ou os
assassinos embuçados nas esquinas sem luz, a desoras. As baratas, temo-as como
aos seres fantásticos criados pela imaginação de Jerônimo Bosch, e preferiria
ter que entrar na jaula dos leões a ter por um instante na mão um desses habitantes
dos esgotos e das sarjetas, de antenas vibráteis e patas de caranguejo. Vou
mesmo ao extremo de preferir uma sopa de escorpiões vivos ao simples contato de
uma barata morta e já em parte devorada pelas formigas, de patas para o ar como
uma prostituta. O meu inferno será por certo todo coalhado de baratas aos
milhares e aos milhões, todas vivas e ágeis dentro das trevas eternas e úmidas
– a menos que falte ao meu Punidor a imaginação necessária para punir-me até a
loucura, ou não tenha ele mesmo maldade bastante para impor um tal castigo à
minha humana inocência.
Mas a Noite, excluídas as baratas e a
ameaça dos escorpiões, é a minha musa e o meu túmulo bem-amado, aquele a que
aspiro com todas as forças da minha alma, como deve aspirar ao seu todo ser
lúcido e tocado de inviolável pureza. E aqui lhe rendo esta homenagem tardia
mas veemente, no pleno silêncio deste quarto frio e povoado de trevas, tendo
por quadro-negro esta parede onde a custo faço deslizar a ponta do meu lápis,
já que a lua hoje não veio da Ásia e não consigo sequer enxergar o meu triste
corpo ajoelhado na cama.
...Non dormit diabolus.”
(“A Lua Vem da Ásia”,
Campos de Carvalho, Editora Codecri, 3ª Edição, Rio de Janeiro, 1977, Edição do
Jornal Pasquim, Páginas 79-80.)
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