domingo, 4 de outubro de 2015

A Conversão do Diabo - Leinid Andreiev (Parte 13)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      O diabo pôs-se a trabalhar. Examinou palavra por palavra, letra por letra com minucioso cuidado. Copiava, comprovava comparando os textos, esforçando-se por se apoderar do fio sutil e apenas perceptível, que conduzia ao bem. Se o fio se quebrava, esforçava-se por juntar as extremidades.
      Não se cansava nem se irritava, esperando sempre chegar a conclusões necessárias, às regras do bem, regras que iriam servir para todos os povos e a todas as épocas. Não era ambicioso, mas as vezes dizia consigo com certo orgulho, talvez trabalhasse para a humanidade. Julgar-se-ia sua obra; reconheceriam o muito do seu trabalho e seria erigido um templo novo e magnifico em sua homenagem!...
      Impossível descrever o seu desespero e o seu horror, quando, depois de terminado o trabalho, nada encontrou, absolutamente nada. Nem uma ideia geral, nem uma verdade concludente, clara, indiscutível:
      "Não matarás; porém, se for necessário mata."
      "Não mentirás; porém, se for preciso, mente."
      "Dá tudo que tens ao próximo; porém, algumas vezes, tira-lhe o que possua."
      "Não cometas adultério, ainda que, a rigor, possas cometê-lo."
      "Não cobices a mulher do teu próximo; porém, se não há outro remédio, podes tirar-lhe sua mulher, seu escravo e seu boi."
      E assim por diante, em tudo o mais.
      Quase não havia uma só prescrição do manuscrito, que não fosse desmentida páginas adiante. Em seus esforços para chegar a conclusões gerais e claras, o diabo encontrava a cada passo mil contradições.
      O mais terrível era que o sacerdote admitia, prescrevendo mesmo em alguns casos, os assassínios e as mentiras, com uma serenidade desconcertante.
      - Quer dizer que sempre esteve a me enganar! exclamou o diabo pesaroso.
      Instintivamente uma ideia medonha passou por sua cabeça. Imaginou que o sacerdote fora um grande pecador. Porventura fora Satanás em pessoa que havia querido achincalhar o diabo?!
      Encolhido num canto, dizia para si, cheio de terror:
      - Sim... sim... é ele... é Satanás!... Sabendo de que eu procurava o bem com todo o meu coração, disfarçou-se em sacerdote, como eu me disfarcei em homem, e me perdeu para sempre. Não conhecerei jamais a verdade, jamais compreenderei o que é o bem. Serei desgraçado para todo o sempre. Desgraçado e maldito!...
      Esperou que a porta se abrisse e que Satanás nela se mostrasse com a boca escancarada no seu riso alegre e ruidoso. Satanás o perdoaria e o convidaria a voltar com ele para o inferno.
      Mas Satanás não apareceu e a porta continuou silenciosa.
      Depois de haver refletido, o diabo disse com seus botões:
      - Viverei no desespero fazendo o que ordena este manuscrito, sem saber jamais o que é o bem! Estou maldito para todo o sempre!...
      Foi envelhecendo cada vez mais.
      Quando, de acordo com o manuscrito, precisava salvar alguém, salvava; quando era preciso matar, matava. Pouco a pouco se habituou a isso, tranquilizando-se.
      Cumprindo ao pé da letra tudo o que ordenava o manuscrito, chegou até a sentir certa alegria. Apesar da certeza de estar maldito para todos os séculos, mal se desgostava com isso. Deixou, mesmo, de pensar no bem.
      Passava, no entanto, algumas vezes, por situações difíceis. Isso acontecia quando o manuscrito, meio destruído, interrompia-se e o diabo ficava sem saber o que havia de fazer em tal ou qual dia.
      Subia, então, ao campanário e ali permanecia horas e horas, dias inteiros, sem fazer nada, em plena vagabundagem. Os olhos fechados para não ver, os ouvidos tapados para não ouvir, permanecia imóvel como uma estátua. Suas mãos, capazes de derrubar montanhas, estavam cruzadas sobre o peito, condenadas à impotência. Sua abundante cabeleira tornara-se completamente branca.
      Ao vê-lo quieto e inerte, na velha igreja de Florença, ninguém diria ser aquele mesmo diabo um ser vivo, condenado ao sofrimento; acreditar-se-ia, mais facilmente, tratar-se de qualquer vetusta coluna, à qual ninguém, até esse momento, tivesse prestado atenção.
      Transcorriam assim as horas e os dias, sem que ele fizesse o mínimo movimento, numa inércia absoluta. As moscas passeavam no seu rosto e metiam-se-lhe pelos ouvidos e pela boca; um pó cinzento cobria-lhe todo o corpo; as aranhas teciam suas teias sobre sua cabeça...
      E ali continuava, sempre imóvel, aquele pobre diabo velho, tão amante do bem.

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