A CONVERSÃO DO DIABO
Leonid Andreiev
O diabo pôs-se a trabalhar. Examinou
palavra por palavra, letra por letra com minucioso cuidado. Copiava, comprovava
comparando os textos, esforçando-se por se apoderar do fio sutil e apenas
perceptível, que conduzia ao bem. Se o fio se quebrava, esforçava-se por juntar
as extremidades.
Não se cansava nem se irritava, esperando
sempre chegar a conclusões necessárias, às regras do bem, regras que iriam
servir para todos os povos e a todas as épocas. Não era ambicioso, mas as vezes
dizia consigo com certo orgulho, talvez trabalhasse para a humanidade.
Julgar-se-ia sua obra; reconheceriam o muito do seu trabalho e seria erigido um
templo novo e magnifico em sua homenagem!...
Impossível descrever o seu desespero e o
seu horror, quando, depois de terminado o trabalho, nada encontrou,
absolutamente nada. Nem uma ideia geral, nem uma verdade concludente, clara,
indiscutível:
"Não matarás; porém, se for
necessário mata."
"Não mentirás; porém, se for
preciso, mente."
"Dá tudo que tens ao próximo; porém,
algumas vezes, tira-lhe o que possua."
"Não cometas adultério, ainda que, a
rigor, possas cometê-lo."
"Não cobices a mulher do teu
próximo; porém, se não há outro remédio, podes tirar-lhe sua mulher, seu
escravo e seu boi."
E assim por diante, em tudo o mais.
Quase não havia uma só prescrição do
manuscrito, que não fosse desmentida páginas adiante. Em seus esforços para
chegar a conclusões gerais e claras, o diabo encontrava a cada passo mil
contradições.
O mais terrível era que o sacerdote
admitia, prescrevendo mesmo em alguns casos, os assassínios e as mentiras, com
uma serenidade desconcertante.
- Quer dizer que sempre esteve a me
enganar! exclamou o diabo pesaroso.
Instintivamente uma ideia medonha passou
por sua cabeça. Imaginou que o sacerdote fora um grande pecador. Porventura
fora Satanás em pessoa que havia querido achincalhar o diabo?!
Encolhido num canto, dizia para si, cheio
de terror:
- Sim... sim... é ele... é Satanás!...
Sabendo de que eu procurava o bem com todo o meu coração, disfarçou-se em
sacerdote, como eu me disfarcei em homem, e me perdeu para sempre. Não
conhecerei jamais a verdade, jamais compreenderei o que é o bem. Serei
desgraçado para todo o sempre. Desgraçado e maldito!...
Esperou que a porta se abrisse e que
Satanás nela se mostrasse com a boca escancarada no seu riso alegre e ruidoso.
Satanás o perdoaria e o convidaria a voltar com ele para o inferno.
Mas Satanás não apareceu e a porta
continuou silenciosa.
Depois de haver refletido, o diabo disse
com seus botões:
- Viverei no desespero fazendo o que
ordena este manuscrito, sem saber jamais o que é o bem! Estou maldito para todo
o sempre!...
Foi envelhecendo cada vez mais.
Quando, de acordo com o manuscrito,
precisava salvar alguém, salvava; quando era preciso matar, matava. Pouco a
pouco se habituou a isso, tranquilizando-se.
Cumprindo ao pé da letra tudo o que
ordenava o manuscrito, chegou até a sentir certa alegria. Apesar da certeza de
estar maldito para todos os séculos, mal se desgostava com isso. Deixou, mesmo,
de pensar no bem.
Passava, no entanto, algumas vezes, por
situações difíceis. Isso acontecia quando o manuscrito, meio destruído,
interrompia-se e o diabo ficava sem saber o que havia de fazer em tal ou qual
dia.
Subia, então, ao campanário e ali
permanecia horas e horas, dias inteiros, sem fazer nada, em plena vagabundagem.
Os olhos fechados para não ver, os ouvidos tapados para não ouvir, permanecia
imóvel como uma estátua. Suas mãos, capazes de derrubar montanhas, estavam
cruzadas sobre o peito, condenadas à impotência. Sua abundante cabeleira
tornara-se completamente branca.
Ao vê-lo quieto e inerte, na velha igreja
de Florença, ninguém diria ser aquele mesmo diabo um ser vivo, condenado ao
sofrimento; acreditar-se-ia, mais facilmente, tratar-se de qualquer vetusta
coluna, à qual ninguém, até esse momento, tivesse prestado atenção.
Transcorriam assim as horas e os dias,
sem que ele fizesse o mínimo movimento, numa inércia absoluta. As moscas
passeavam no seu rosto e metiam-se-lhe pelos ouvidos e pela boca; um pó
cinzento cobria-lhe todo o corpo; as aranhas teciam suas teias sobre sua cabeça...
E ali continuava, sempre imóvel, aquele
pobre diabo velho, tão amante do bem.
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