segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Peleja de Zé Molesta com Tio Sam - Ferreira Gullar (Parte 1)

Peleja de Zé Molesta com Tio Sam

Ferreira Gullar

Esta é a história fiel
da luta que Zé Molesta
pelejou com Tio Sam,
que começando de noite
foi acabar de manhã
numa disputa infernal
que estremeceu céus e terra:
quase o Brasil vai à guerra
e o mundo inteiro à terceira
conflagração mundial.

Zé Molesta é um Zé franzino
nascido no Ceará
mas cantador como ele
no mundo inteiro não há.
Com seis anos sua fama
corria pelo Pará;
com oito ganhava um prêmio
de cantador no Amapá;
com nove ensinava grilo
a cantar dó-ré-mi-fá;
com dez fazia um baiano
desconhecer vatapá.

Assim fez sua carreira
de cantador sem rival
vencendo poeta de feira
de renome nacional.
Venceu Otacílio e Dimas,
Apolônio e Pascoal
rindo e brincando com as rimas
numa tal exibição,
cavalgando no “galope”
da beira-mar ao sertão,
soletrando o abecedário,
montando no adversário
quadrando quadra e quadrão.

Foi então que ouviu falar
desse tal de Tio Sam.
‘Tio de quem?” perguntou –
“Só se for de tua irmã!
O único tio que eu tive
salguei como jaçanã.”
Mas lhe disseram que o velho
era pior que Satã.
“Vamo nos topar pra ver
quem rompe vivo a manhã.”

Assim falou Zé Molesta
e mandou logo avisar
a Tio Sam que ficasse
preparado pra apanhar.
“Marque lugar, marque hora,
que eu canto em qualquer lugar.
Só quero que o mundo inteiro
possa a luta acompanhar
por rádio e televisão
e através do Telstar.”

Lançado o seu desafio
Zé Molesta se cuidou.
Correu depressa pro Rio
e aqui se preparou.
Falou com Vieira Pinto,
Nelson Werneck escutou
e nos Cadernos do Povo
durante um mês estudou.
“O resto sei por mim mesmo
que a miséria me ensinou.”

Enfim foi chegado o dia
da disputa mundial.
Na cidade de New York
fazia um frio infernal.
No edifício da ONU
foi preparado o local.
Zé Molesta entrou em cena
foi saudando o pessoal:
“Viva a amizade dos povos,
Viva a paz universal!”

Tio Sam também chegou
todo de fraque e cartola.
Virou-se pra Zé Molesta
e lhe disse: “Tome um dólar,
que brasileiro só presta
para receber esmola.
Está acabada a disputa,
meta no saco a viola”.

Zé Molesta olhou pra ele,
lhe disse: “Não quero não.
Não vim lhe pedir dinheiro
mas lhe dar uma lição.
Não pense que com seu dólar
compra minha opinião,
que eu não me chamo Lacerda
nem vivo de exploração”.

Tio Sam ficou sem jeito,
guardou o dólar outra vez.
Respondeu: “Esse sujeito
já se mostra descortês.
Já me faltou com o respeito
logo na primeira vez.
Vê-se logo que ele é filho
de negro e de português”.

“Não venha com essa conversa
de preconceito racial
- lhe respondeu Zé Molesta –
que isso é conversa boçal.
Na minha terra se sabe
que todo homem é igual,
seja preto seja branco,
da França ou do Senegal.
Antes um preto distinto
do que um rico sem moral.”

Tio Sam ficou danado
com a resposta de Molesta:
“Me dá dois dedos de uísque
que eu vou acabar com a festa.
Quem nasce naquelas bandas
já se sabe que não presta,
se não se vende pra nós
morre de fome e moléstia.
Se esse caboclo se atreve
meto-lhe um tiro na testa.
Não gosto de discutir
com negro metido a besta”.

“Mas não se zangue, meu velho
- respondeu-lhe Zé Molesta –
que agora que eu comecei.
Não vim pra brigar de tiro
mas pra dizer o que sei.
Na minha terra de fato
morre-se muito de fome
mas o arroz que plantamos
é você mesmo quem come,
a riqueza que criamos
você mesmo é quem consome.”

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