quarta-feira, 7 de outubro de 2015

“Gargantua” - François Rabelais

      “COMO GRANDGOUSIER CONHECEU O ESPÍRITO MARAVILHOSO DE GARGANTUA NA INVENÇÃO DE UM LIMPA-CU

      Passados cinco anos, de regresso da vitória das Canárias, Grandgousier foi visitar seu filho Gargantua. Estava alegre como podia estar um pai ao ver tal filho e, beijando-o e abraçando-o, fez-lhe várias perguntas pueris sobre os assuntos mais diversos. Bebeu muito com ele e as governantes, às quais, cheio de cuidados, perguntou, entre outras coisas, se o haviam conservado asseado e limpo. Gargantua respondeu que, a esse respeito, tinha dado tal ordem que, em todo o país, não havia menino mais limpo do que ele.
      - Como assim? – indagou Grandgousier.
      - É que – respondeu Gargantua – por longa e curiosa experiência, eu descobri um meio de limpar o cu, o mais real, mais senhoril, mais excelente e mais expediente que já se viu.
      - Qual? – pergunta Grandgousier.
      - É o que vou contar agora – responde Gargantua – uma vez, eu me limpei com o cache-nez de veludo de uma moça, e gostei, porque a maciez da seda me causava no cu uma volúpia enorme. Outra vez, com uma boina da mesma moça, e foi a mesma coisa. Outra vez, com um xale. Outra vez, com umas orelheiras de cetim encarnado, mas tinham umas esferas douradas de merda que me esfolaram todo o rabo. O fogo de Santo Antônio (Nota: O carbúnculo.) queime o olho-do-cu de quem as fez e da moça que as usava! A dor passou depois que me limpei com o gorro de um pajem, todo emplumado à suíça. Depois, cagando atrás de uma moita, peguei uma fuinha e me limpei, mas com as unhas ela me feriu todo o períneo; só fiquei curado no dia seguinte, quando me limpei com as luvas de minha mãe, todas perfumadas de boceta. Limpei-me depois, com salva, com funcho, com anete, com manjerona, com rosas, com folhas de abóbora, com couves, com acelga, com parreira, com alteia, com verbasco (que torna o cu escarlate), com alface e com folhas de espinafre – tudo isso me fez muito bem às pernas -, com mercurial, com persicária, com urtiga, com consolda, mas fiquei cagando sangue e só me curei ao limpar-me com o caralho. Depois eu me limpei com um lençol, com um cobertor, com uma cortina, com uma almofada, com um tapete, com um oleado, com um esfregão, com um lenço, com um peignoir. E tive prazer maior do que os sarnentos quando coçados.
      “ – É verdade – diz Grandgousier – mas qual foi o limpa-cu que você achou melhor?
      - Já chego lá – responde Gargantua – e você ficará sabendo, tu autem. (Nota: Palavras tomadas do fim do breviário: Tu autem, Domine... Gargantua quer dizer que vai terminar.) Limpei-me com feno, com palha, com tripa de boi, com crina, com lã, com papel. Mas,

      Os colhões nunca deixa de sujar
      Quem com papel costuma se limpar.

      - O quê! – exclama Grandgousier – estou vendo que você bebeu, pois está rimando!
      - Sim, papai – responde Gangantua – rimo muito, e rimo tanto que me arrimo. Escute o que diz a nossa privada aos cagadores:

            Cagão,
            Borrão,
            Mijão,
            Peidão!
            Teu troço
            Saiu,
            Caiu
            No fosso.
            Caroço
            Colosso
            Tens tu
            No cu!

      Quero que morras tostado,

            Se agora,
            Nesta hora,

      Daqui saíres cagado.

      - Quer mais?
      - Quero – responde Grandgousier.
      - Então – diz Gargantua – ouça:

                                              RONDÓ

            Há dias, quando cagava,
            Tive o que me era devido:
            O cheiro eu não esperava
            E fiquei todo fedido.
            Oh! Se houvessem consentido
            Em levar-me o que aguardava,
                                   Cagando!

            A pissa de quem chegasse
            Teria eu logo tapado,
            Para que também fechasse
            O meu buraco borrado.
                                    Cagando!

      - E agora, diga que não sei nada. Juro que esses versos não são meus e que só os guardei na caixa da memória depois de ouvir aquela senhora recitá-los.
      - Mas – diz Grandgousier – voltemos ao assunto.
      - Qual? – pergunta Gargantua – cagar?
      - Não – respondeu Grandgousier – limpar o cu.
      - E você – indaga Gargantua – está disposto a pagar-me uma pipa de vinho bretão se eu o deixar encabulado com a história?
      - Naturalmente – responde Grandgousier.
      - Pois bem – continua Gargantua – só se limpa o cu quando ele está sujo; ora, ele só está sujo quando se caga; logo, para limpar o cu é preciso cagar.
      - Oh! – exclama Grandgousier – que lógica tem você, meu pimpolho! Juro que vou mandá-lo para a Sorbonne, pois você tem mais raciocínio do que idade. E, agora, continue a descrição limpaculativa, vamos! Em lugar de uma pipa, eu lhe darei sessenta desse bom vinho bretão, que não cresce na Bretanha, mas em Verron. (Nota: Antiga cidade francesa, perto de Chinon.)
      - Depois – continua Gargantua – eu me limpei com uma carapuça, com um travesseiro, com um chinelo, com uma bolsa, com uma peneira (maldito limpa-cu) e com um chapéu. E note que uns chapéus são lisos, outros felpudos, outros aveludados, outros acetinados. O melhor de todos é o felpudo, porque faz ótima abstersão da matéria fecal. Depois, eu me limpei com uma galinha, com um galo, com um frango, com uma pele de veado, com uma lebre, com um pombo, com um corvo-marinho, com uma pasta de advogado, com um capuz, com uma touca, com um passarinho de couro. Mas, concluindo, digo e afirmo que não há melhor limpa-cu do que um ganso com bastante pena, desde que se ponha a cabeça dele entre as pernas. Fique certo de que, fazendo assim, você sentirá no olho-do-cu uma volúpia mirífica, quer pela maciez da penugem, quer pelo calor temperado do ganso, que facilmente se comunica aos intestinos e atinge, depois, a região do coração e do cérebro. E não pense que a beatitude dos heróis e dos semideuses que se acham nos Campos Elísios esteja no asfódelo, ou na ambrósia, ou no néctar, como contam essas velhas. Em minha opinião, ela reside no fato de que limpavam o cu com um ganso. A mesma opinião é sustentada por João da Escócia. (Nota: Duns Scot [1274-1308], teólogo inglês, adversário de São Tomás de Aquino, cognominado o Doutor Sutil, por ter sido um dos intérpretes mais sutis da filosofia escolástica.)”

      (“Gargantua”, François Rabelais, Editora Hucitec, São Paulo, 1986, Capítulo XIII, Páginas 92 a 96.)

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