terça-feira, 6 de outubro de 2015

Peleja de Zé Molesta com Tio Sam - Ferreira Gullar (Parte 2)

Peleja de Zé Molesta com Tio Sam

Ferreira Gullar

Tio Sam disse: “Esta é boa!
Vocês são ingratalhões.
Vivo ajudando a vocês,
emprestando-lhes milhões,
e me vem você agora
dizer que somos ladrões.
Felizmente ainda existem
alguns brasileiros bons
como o Eugênio Gudin
e o Gouveia de Bulhões”.

Molesta deu uma risada:
“Discuta de boa fé.
Se você é tio deles,
meu tio você não é.
Explique então direitinho
o negócio do café”.

Tio Sam desconversou
mas Zé Molesta insistiu:
“Por que é que nosso café
de preço diminuiu?
Quanto mais café mandamos
recebemos menos dólar
e ainda vem você dizer
que vive nos dando esmola!
Você empresta uma parte
do que é nosso e a outra parte
você guarda na sacola”.

“Não fale assim – disse o velho –
que eu sempre fui seu amigo.
Mando a vocês todo ano
mil toneladas de trigo
e em troca nada lhes peço.
Criei os Corpos da Paz
e a Aliança para o Progresso.”

“Sei de tudo muito bem
mas você não nos engana.
Não pense que sou macaco
pra me entreter com banana.
O trigo que você fala
é o que fica armazenado
para que não baixe o preço
do seu trigo no mercado.
Você diz que dá de graça
mas nós pagamos dobrado.
É com ele que você paga
despesas do consulado
e da embaixada, enquanto
seu dólar fica guardado.

“É com ele que você compra
a opinião dos jornais
pra que eles enganem o povo
com notícias imorais,
pra que não digam a verdade
sobre esses Corpos da Paz
que na frente nos sorriem
e nos enganam por trás.”

Tio Sam disse a Molesta:
“Chega de conversação.
A moléstia que te ataca
já matou muito ladrão.
Você quer roubar meu ouro
e dividir meu milhão.
Comunista em minha terra
eu mando é para a prisão”.

“Ora veja, minha gente,
como esse velho é safado!
Apela pra ignorância
quando se vê derrotado.
Não quer que eu diga a verdade
sobre meu povo explorado.
Quer me mandar pra cadeia
quando ele é o culpado.”

“Vocês são todos bandidos,
chefiados por Fidel
- disse Tio Sam bufando,
da boca vertendo fel -
Querem transformar o mundo
num gigantesco quartel,
pondo os povos sob as botas
da ditadura cruel.”

“Essa conversa velhaca
não me faz baixar a crista
- disse Molesta – Me diga
quem foi que apoiou Batista?
Você deu arma e dinheiro
a esse ditador cruel
que assassinava, roubava
e torturava a granel.
Por que era amigo dele
e agora é contra Fidel?

“Você diz que é contra Cuba
porque é contra ditadura.
Será que na Nicarágua
há democracia pura?
Se você luta no mundo
pra a liberdade instalar
por que é amigo de Franco,
de Stroessner e de Salazar?
A verdade é muito simples
e eu vou logo lhe contar.
Você não quer liberdade,
você deseja é lucrar.
Você faz qualquer negócio
desde que possa ganhar:
vende canhões a Somoza,
aviões a Salazar,
arma a Alemanha e Formosa
pro mercado assegurar.”

Nessa altura Tio Sam
já perdera o rebolado.
Gritou: “Chega de conversa,
que estou desmoralizado!
Desliguem a televisão,
deixem o circuito cortado.
Mobilizem os fuzileiros,
quero esse ‘cabra’ amarrado.
Vamos lhe cortar a língua
pra ele ficar calado”.

“Eta que a coisa tá preta!
- disse pra si Zé Molesta –
Como estou na casa dele,
é ele o dono da festa.
Tenho que agir com cuidado
pra ver se me escapo desta.”

E foi um deus-nos-acuda,
barafunda, corre-corre.
Molesta pulou de lado.
“Quem não for ligeiro morre.
Pra me entregar pra polícia
só mesmo estando de porre.”
Pulou por cima das mesas,
por debaixo das cadeiras.
Deu de frente com dois guardas,
passou-lhes duas rasteiras.
Gritou: “Abre, minha gente,
que eu vou jogar capoeira!”

Abriu-se um claro na sala,
dividiu-se a multidão.
Rolou gente, rolou mesa,
rolou guarda pelo chão.
Em dois tempos Zé Molesta
sumira na confusão.

(“Toda Poesia (1950-1980)”, Ferreira Gullar, Círculo do Livro S.A., São Paulo, s/d, “Romances de cordel (1962-1967)”, Páginas 198 a 204.)

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