O texto a seguir é do livro “Fela. Esta
vida puta”, de Carlos Moore, Nandyala, Belo Horizonte, 2011, Páginas 133 a 141,
uma biografia informal do músico e compositor multi-instrumentista africano
Fela Kuti.
“Meu primeiro choque com a turma ‘da lei
e da ordem’ foi em 30 de abril de 1974. Não consigo esquecer esta data, cara!
Ah, que desgraçados! Eu tava na minha casa, em Surulere. Naquela época, ainda
não era cercada de arame farpado, saca? Eu não tinha nada a temer. Na verdade,
eu nem pensava que pudessem ter alguma coisa contra mim. Eu tava só pregando a
revolução pra África, saca? Eu não sabia que tavam tramando contra mim, cara.
Então, minha casa era aberta; eu não tinha uma cerca, ou um portão. Aí quando
aqueles filhos da puta vieram me prender por causa da maconha, não tiveram
trabalho nenhum pra entrar... Como essa parada começou? Vou te contar...
Naquele dia eu tava em casa dando uma
entrevista pra alguém sobre os escândalos e a corrupção do regime do General
Gowon. Sobre como as pessoas tavam sendo açoitadas nas ruas por soldados, cara.
É, soldados batendo no seu traseiro com chicotes, cara! Agora, em que outro
lugar do mundo isso acontece? Na África do Sul? Nem lá. Então, enquanto eu tava
envolvido com essa entrevista, cinquenta policiais desgraçados apareceram do
nada. C-i-n-q-u-e-n-t-a, cara, tô
dizendo!
Naquela época, se podia pegar até dez
anos só por maconha, cara. Mas eu nunca costumava esconder o bagulho. E aí
esses desgraçados encontraram ‘erva’ em todo canto. Embaixo dos tapetes, no
banheiro, na cozinha... em toda porra de canto. Todo meu pessoal fuma. Todo
mundo tem seu próprio bagulho. E aí acabou todo mundo na prisão, cara: Alagbon Close. Eram uns sessenta
amontoados na mesma cela como animais, cara! Foi a primeira vez que vi uma
prisão na minha vida! Até aquele dia eu achava que prisioneiros fossem
criminosos! Mas lá dentro encontrei caras que também tavam buscando um mundo
melhor.
No dia em que fui preso tava me
preparando pra ir pra Camarões, na minha primeira grande turnê fora da Nigéria.
Naquele dia, a porra da polícia não encostou em mim. Não, não daquela vez. Eles
não bateram em ninguém. E já tinha muitas garotas vivendo na minha casa. Foram
todas levadas pra Assistência Social. Eu..., me colocaram na prisão. Isso foi
numa segunda-feira. Aí, me levaram pro tribunal na quinta ou na sexta. A
polícia argumentou no tribunal que se opunha à fiança porque ainda não tinha
encerrado as investigações. Então, o juiz deu a eles mais três dias e eu voltei
pra cadeia. Isso foi na sexta, e fiquei o fim-de-semana mais a segunda.
Na terça, me levaram de volta pro
tribunal. E consegui minha fiança. Tinha ficado dez dias na cadeia, cara.
Agora, quando fizeram a busca na minha casa, levaram meu passapoorte.
Desgraçados! Na verdade, tenho certeza que me prenderam só pra me impedir de ir
na turnê pra Camarões. Então, saí da cadeia na terça. E na quarta fui procurar
meu passaporte. Eu e meu advogado fomos ver Sunday Adewusi (Chefe do
Departamento de Investigações Criminais (CID) da Nigéria, à época.). Falei pra
ele que tinha que viajar na sexta pra Camarões.
Ele falou: ‘OK. Venha amanhã de manhã, às
nove, para pegar o passaporte’.
Então, naquela quarta fui pra
casa dormir, esperando que fosse me encontrar com ele pra pegar o passaporte.
Enquanto fiquei em cana esses oito dias,
todas as minhas garotas tinham sido colocadas sob a guarda da Assistência
Social. Já pensou, cara? A polícia tinha tirado todo mundo de casa. As mulheres
ficaram uns dois meses na Assistência Social e tiveram que escapar por conta
própria. Elas pularam a cerca da Assistência Social e fugiram; todas, menos
umas cinco. Ah, minhas garotas! Foi por isso que tive que casar com elas, cara.
Elas eram do caralho, cara!
Quando fui pra casa, o lugar tava quase
completamente vazio. Fiquei chapado pra caralho e peguei no sono rápido. Às
quatro da matina – já na madrugada de quinta-feira – adivinha quem aparece? A
polícia! Porra! Juro... Mas não imaginei que a polícia fosse voltar. E eles
voltaram pra me revistar de novo. Escutei um tam... tam... tam... eu tinha um
olho mágico na porta, mas nem me dei ao trabalho de olhar. Só abri a porta e...
bah...! E o que eu vejo? Cinco agentes! Agora, eu tinha fumado umas pontas mais
cedo. O que sobrou tava no cinzeiro na mesinha do lado da minha cama. Tinham
acabado de fazer a primeira batida, cara, então eu não tava a fim que me
pegassem de novo.
Falei: ‘Polícia? O que que vocês querem?’
Eles responderam que tinham vindo pra
fazer uma batida de novo.
‘De novo? Mas vocês acabaram de me
revistar. Saí sob fiança, ontem. O que que tá pegando?’
Eles responderam que tinham vindo pra
fazer uma batida de novo.
Falei: ‘Tudo bem. Eu tô com uma mulher
aqui. Ela tá nua. Vocês não podem entrar aqui até que ela se vista’.
‘OK,’ eles responderam.
Bati a porta na cara deles e fui correndo
pro cinzeiro, cara. Coloquei o bagulho todo na boca, um bocado, cara. Um
punhado... na boca... assim do nada... mmmmmmmmmm. Tá ligado? Parei na frente
da porta e abri de repente. Boinggggg! Fiz como se tivesse passando mal,
tampando minha boca como se quisesse vomitar e corri pro banheiro. Passei
correndo por eles. Eles não entenderam o que eu tava fazendo. Fui rápido demais
pra eles. O banheiro já tava ali. Abri a pia. Cuspi tudo lá dentro, deixei a
água correr, empurrando tudo com pressa ralo abaixo. Depois voltei pro quarto e
fechei a porta. Só pra ter certeza, procurei em cada canto e limpei meu quarto.
Quando o quarto tava limpinho, abri a porta: ‘Podem entrar’.
Eles entraram. E começaram a procurar
aqui e ali, embaixo... em todo canto. Não encontraram porra nenhuma. Então,
deixaram cair uma ponta, que eles mesmos tinham trazido. E, aí, eles retiraram
a ponta de algum canto. Só uma ponta, mas bastante pra me botar em cana por dez anos, cara! Tava enrolada num
papel, como a gente enrola o baseado pra vender em Lagos.
‘Nós encontramos isso,’ eles disseram.
‘Encontraram isso?’
Ele desenrolou o papel e abriu pra me
mostrar, dizendo, ‘Encontrei isto’.
Eu disse: ‘Não tô vendo’.
Colocaram perto da minha cara e me
mostraram.
Falei de novo: ‘Não tô vendo’.
E aí colocaram direto na minha cara,
assim.
E falaram: ‘Olha!’
Olhei pro papel. Eu tava pensando rápido,
cara. E aí de repente, numa fração de segundo – rápido mesmo! – pulei na
direção do papel, peguei ele, enfiei o fumo na boca e pulei na cama, cara. Eu
tinha engolido aquela ponta! Peguei a garrafa de uísque do lado da cama, pus na
boca e empurrei a maconha goela abaixo. E aí comecei a esculachar os caras.
‘Qual é o problema com vocês, seus desgraçados? Olha, eu tô tentando salvar
esse país, porra. Vocês querem me colocar em cana! O que foi que eu fiz? O que
foi que eu fiiiiiiiz? É porque eu fumo? Poooorra...’
Ficaram olhando pra mim enquanto eu comia
a maconha. Mas ficou um grãozinho minúsculo dentro do papel. Então, eles
pegaram esse grãozinho minúsculo, olharam pra mim e disseram: ‘Vamos!’ E me
levaram.
Dessa vez eles tavam convictos de que
tinham me pegado! Porque aquela primeira batida não tinha sido limpa; eles
tinham feito tudo meio tosco. Dessa vez se certificaram que tinham feito uma
batida caprichada. Um policial tava até me esperando na sala dele, em Alagbon Close, a principal delegacia de
polícia.
‘Fela está vindo. Dessa vez nós o
pegamos,’ ele disse.
Quando chegamos lá, tinha um homem
sentado numa cadeira. Fiquei de pé, com quatro inspetores ao meu lado. Então, o
homem, se achando o tal, ficou de pé na nossa frente e perguntou a eles:
‘Então, vocês o pegaram?’
‘Sim, senhor. Mas quando mostramos a ele,
ele pegou e comeu’.
O homem ficou muito espantado e olhou pra
mim como se eu fosse o maior bandido que ele já tivesse visto. O desgraçado
queria me botar em cana, enquanto eu, eu tava tentando escapar da cadeia. E ele acha que eu sou bandido por causa disso, cara?! Ele olhou pra mim, muito
irritado. O que que ele tava tramando? Ele era o verdadeiro bandido agora!
‘Prendam-no!’
Me prenderam, cara, pela segunda vez.
Desgraçados! Segunda vez na mesma semana! Eu não sabia o que ia acontecer. Já
contei a parte do hospital, não? É fantástica! Tenho que contar, então, porra!
Olha, me jogaram numa cela. Fiquei lá
horas, esperando. Eu conseguia ver os policiais pela porta da cela, correndo
pra lá e pra cá, tramando. Os filhos da puta tavam armando pra cima de mim. Eu
ficava olhando pra eles e pensando: ‘O que que eles tão tramando? Eles não
podem me acusar com aquela parada, cara, porque eles não têm nada pra testar,
nada pra mostrar. Então, o que será que eles pretendem fazer?’ Eu tava
esperando, quando chegaram e abriram a porta.
‘Saia’.
‘Pra onde?’
‘Apenas nos siga’.
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