domingo, 11 de outubro de 2015

"A Vida e as Extraordinárias Aventuras do Soldado Ivan Chonkin” - Vladimir Vainovich

      “No vestíbulo reinava a escuridão e Gladishev acendeu um fósforo que iluminou o corredor estreito e uma porta coberta com aniagem de saco. Gladishev abriu a porta, o que imediatamente libertou tal cheiro que Chonkin recuou, tomado de surpresa. Se não houvesse tampado imediatamente o nariz talvez caísse no chão. Mantendo o nariz bem fechado Chonkin entrou na cabana atrás do dono, que então se voltou e lhe disse:
      - Está claro que logo no início causa um pouco de choque, mas eu já estou acostumado, isso não me incomoda de modo algum. Abra uma narina um pouco, e quando estiver acostumado ao cheiro abra a outra. Você pode achar que o cheiro é nojento, mas na verdade ele é sadio e benéfico ao organismo e tem todas as espécies de propriedades valiosas. Por exemplo, a firma francesa Coty fabrica os perfumes mais sutis a partir da merda. Enquanto isso você olhe por aí e eu vou preparar a omelete para nós. Vamos comer alguma coisa. Agora também estou com vontade de comer um pouco.
      (...)
      - Aí estamos, Vanya – disse, puxando o banco a si e retomando a conversa. – Em geral reagimos com melindres à merda, como se ela fosse uma coisa ruim. Mas se olharmos bem o assunto veremos que pode ser a substância mais valiosa na Terra, porque a vida vem da merda e volta para a merda.
      - De que jeito? – perguntou Chonkin educadamente, fitando com olhar faminto a omelete que esfriava, mas resolvendo não começar antes do anfitrião.
      - Do jeito que você quiser – e Gladishev foi apresentando sua ideia, sem observar a impaciência do convidado. – Avalie por si mesmo. O chão precisa ser fertilizado com merda para termos uma boa colheita. Todas as ervas, cereais e frutos que nós e os animais comemos vêm da merda. Os animais nos dão leite, carne, lã e tudo o mais. Nós usamos isso e depois transformamos em merda outra vez. Essa é a origem de... como posso dizer... a circulação da merda na natureza. Vamos perguntar a nós mesmos um momento porque motivo devemos usar a merda na forma de carne ou leite ou mesmo este pão aqui, isto é, em forma processada e beneficiada. Surge a pergunta legítima: Não seria melhor livrarmo-nos de nossos preconceitos e falsos melindres e usar a própria merda, em forma pura, como uma espécie de vitamina maravilhosa? No início, está claro – Gladishev se corrigiu, ao observar que Chonkin se encolhia -, haveríamos de tirar-lhe o cheiro natural e então, quando o homem estivesse acostumado, era só deixar como estava. Mas, Vanya, essa tarefa pertence a um futuro distante e às futuras realizações da ciência. Vanya, proponho que brindemos ao êxito de nossa ciência, ao poder soviético e à pessoa do Camarada Stálin, um gênio de fama mundial.
      - Ao nosso encontro – Chonkin apressou-se a corresponder.
      Bateram os copos, Ivan sorveu o conteúdo do copo e quase caiu da cadeira. No mesmo instante perdeu a respiração, como se lhe houvessem dado um murro no estômago. Sem ver coisa alguma diante de si Chonkin enfiou cegamente o garfo na frigideira, arrancou um pedaço de omelete e com a ajuda de outra mão engoliu esse pedaço, queimando-se enquanto o fazia. Só então exalou o ar que explodia nos pulmões.
      Gladishev, que sorvera o conteúdo do copo sem qualquer dificuldade, olhou para Ivan e dedicou-lhe um sorriso astuto.
      - E então, Ivan, que acha da mistura caseira?
      - Coisa de primeira – louvou Chonkin, enxugando as lágrimas com a palma da mão. – Tira a respiração da gente.
      Com o mesmo sorriso no rosto Gladishev puxou a lata rasa que usava  como cinzeiro para si, cuspiu nela um pouco da mistura caseira e depois a acendeu com um fósforo. A mistura caseira se ateou, com a chama azul embaciada.
      - Está vendo isso?
      - Você faz com cereal ou com raiz de beterraba? – perguntou Chonkin, curioso.
      - Com merda, Vanya – disse Gladishev, sopitando o orgulho.
      Chonkin engasgou.
      - O que quer dizer? – perguntou, afastando-se da mesa.
      Receita muito simples, Vanya – e Gladishev estava aflito por explicar. – Você pega um quilo de açúcar com um quilo de merda...
      Derrubando o banquinho Chonkin partiu para a porta. Quase derrubou Afrodite e a criancinha na varanda. A dois passos da varanda ele se agarrou na parede de toras da cabana e ali botou as tripas para fora.
      Em seu encalço veio o anfitrião perplexo e, os pés batendo forte no chão, Gladishev desceu a varanda.
      - Vanya, o que se passa? – perguntou com muita solidariedade, tocando Chonkin no ombro. Essa mistura é pura, Vanya. Você mesmo viu como queimou.
      Ivan estava prestes a responder, mas com a simples menção à mistura caseira novos espasmos lhe tomaram o estômago e mal teve tempo de abrir as pernas para não manchar as botas.
      - Oh, senhor! – disse Afrodite de repente, em angústia indefesa. – Você deu a merda para outro beber, seu tirano maldito, não há como impedi-lo. Eu cuspo em você! – disse, e cuspiu com gosto na direção do marido.
      Gladishev, entretanto, não se ofendeu.
      - Em vez de cuspir você devia trazer uma maçã lá do porão. Não está enxergando que o homem passa mal?
      - Sim, aquelas maçãs! – gemeu Afrodite. – Aquelas maçãs também cheiram a merda. Toda a casa está entupida de merda, você devia cair nela, devia afogar-se nela, seu idiota miserável. Eu vou abandoná-lo, cabeça de titica. Vou pedir esmolas com a criança, antes de ficar enterrada em merda.
      Sem hesitar um só instante, ela apanhou Hércules e partiu correndo pelo portão. Deixando Chonkin sozinho, Gladishev correu no encalço da mulher.
      - Para onde vai correndo, Afrodite? – gritava atrás dela. – Volte, estou dizendo. Não nos envergonhe diante de todos. Ei, Afrodite!
      Afrodite parou, voltou-se e começou a gritar com raiva na cara de Gladishev:
      - Eu não sou a sua Afrodite. Eu sou Froska, entendeu isso, seu imbecil de orelha torta? Froska!
      Deu meia volta e, segurando a criança quase morta de medo, com os braços bem para cima, continuou correndo pela aldeia, dando saltos e tropeçando.
      - Eu sou Froska, gente, escutem o que digo, sou Froska! – Não parava de gritar com deleite frenético, como se houvesse acabado de recuperar o dom da fala após anos de mudez a mais completa.”

(“A Vida e as Extraordinárias Aventuras do Soldado Ivan Chonkin”, Vladimir Vainovich, Editora Artenova S.A., Rio de Janeiro, 1978, Páginas 108 a 112.)

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