“No vestíbulo reinava a escuridão e
Gladishev acendeu um fósforo que iluminou o corredor estreito e uma porta
coberta com aniagem de saco. Gladishev abriu a porta, o que imediatamente
libertou tal cheiro que Chonkin recuou, tomado de surpresa. Se não houvesse
tampado imediatamente o nariz talvez caísse no chão. Mantendo o nariz bem
fechado Chonkin entrou na cabana atrás do dono, que então se voltou e lhe
disse:
- Está claro que logo no início causa um
pouco de choque, mas eu já estou acostumado, isso não me incomoda de modo
algum. Abra uma narina um pouco, e quando estiver acostumado ao cheiro abra a
outra. Você pode achar que o cheiro é nojento, mas na verdade ele é sadio e
benéfico ao organismo e tem todas as espécies de propriedades valiosas. Por exemplo,
a firma francesa Coty fabrica os perfumes mais sutis a partir da merda.
Enquanto isso você olhe por aí e eu vou preparar a omelete para nós. Vamos
comer alguma coisa. Agora também estou com vontade de comer um pouco.
(...)
- Aí estamos, Vanya – disse, puxando o
banco a si e retomando a conversa. – Em geral reagimos com melindres à merda,
como se ela fosse uma coisa ruim. Mas se olharmos bem o assunto veremos que
pode ser a substância mais valiosa na Terra, porque a vida vem da merda e volta
para a merda.
- De que jeito? – perguntou Chonkin
educadamente, fitando com olhar faminto a omelete que esfriava, mas resolvendo
não começar antes do anfitrião.
- Do jeito que você quiser – e Gladishev
foi apresentando sua ideia, sem observar a impaciência do convidado. – Avalie
por si mesmo. O chão precisa ser fertilizado com merda para termos uma boa
colheita. Todas as ervas, cereais e frutos que nós e os animais comemos vêm da
merda. Os animais nos dão leite, carne, lã e tudo o mais. Nós usamos isso e
depois transformamos em merda outra vez. Essa é a origem de... como posso
dizer... a circulação da merda na natureza. Vamos perguntar a nós mesmos um
momento porque motivo devemos usar a merda na forma de carne ou leite ou mesmo
este pão aqui, isto é, em forma processada e beneficiada. Surge a pergunta
legítima: Não seria melhor livrarmo-nos de nossos preconceitos e falsos
melindres e usar a própria merda, em forma pura, como uma espécie de vitamina
maravilhosa? No início, está claro – Gladishev se corrigiu, ao observar que
Chonkin se encolhia -, haveríamos de tirar-lhe o cheiro natural e então, quando
o homem estivesse acostumado, era só deixar como estava. Mas, Vanya, essa
tarefa pertence a um futuro distante e às futuras realizações da ciência. Vanya,
proponho que brindemos ao êxito de nossa ciência, ao poder soviético e à pessoa
do Camarada Stálin, um gênio de fama mundial.
- Ao nosso encontro – Chonkin apressou-se
a corresponder.
Bateram os copos, Ivan sorveu o conteúdo
do copo e quase caiu da cadeira. No mesmo instante perdeu a respiração, como se
lhe houvessem dado um murro no estômago. Sem ver coisa alguma diante de si
Chonkin enfiou cegamente o garfo na frigideira, arrancou um pedaço de omelete e
com a ajuda de outra mão engoliu esse pedaço, queimando-se enquanto o fazia. Só
então exalou o ar que explodia nos pulmões.
Gladishev, que sorvera o conteúdo do copo
sem qualquer dificuldade, olhou para Ivan e dedicou-lhe um sorriso astuto.
- E então, Ivan, que acha da mistura
caseira?
- Coisa de primeira – louvou Chonkin,
enxugando as lágrimas com a palma da mão. – Tira a respiração da gente.
Com o mesmo sorriso no rosto Gladishev
puxou a lata rasa que usava como
cinzeiro para si, cuspiu nela um pouco da mistura caseira e depois a acendeu
com um fósforo. A mistura caseira se ateou, com a chama azul embaciada.
- Está vendo isso?
- Você faz com cereal ou com raiz de
beterraba? – perguntou Chonkin, curioso.
- Com merda, Vanya – disse Gladishev,
sopitando o orgulho.
Chonkin engasgou.
- O que quer dizer? – perguntou,
afastando-se da mesa.
Receita muito simples, Vanya – e
Gladishev estava aflito por explicar. – Você pega um quilo de açúcar com um
quilo de merda...
Derrubando o banquinho Chonkin partiu
para a porta. Quase derrubou Afrodite e a criancinha na varanda. A dois passos
da varanda ele se agarrou na parede de toras da cabana e ali botou as tripas
para fora.
Em seu encalço veio o anfitrião perplexo
e, os pés batendo forte no chão, Gladishev desceu a varanda.
- Vanya, o que se passa? – perguntou com
muita solidariedade, tocando Chonkin no ombro. Essa mistura é pura, Vanya. Você
mesmo viu como queimou.
Ivan estava prestes a responder, mas com
a simples menção à mistura caseira novos espasmos lhe tomaram o estômago e mal
teve tempo de abrir as pernas para não manchar as botas.
- Oh, senhor! – disse Afrodite de
repente, em angústia indefesa. – Você deu a merda para outro beber, seu tirano
maldito, não há como impedi-lo. Eu cuspo em você! – disse, e cuspiu com gosto
na direção do marido.
Gladishev, entretanto, não se ofendeu.
- Em vez de cuspir você devia trazer uma
maçã lá do porão. Não está enxergando que o homem passa mal?
- Sim, aquelas maçãs! – gemeu Afrodite. –
Aquelas maçãs também cheiram a merda. Toda a casa está entupida de merda, você
devia cair nela, devia afogar-se nela, seu idiota miserável. Eu vou
abandoná-lo, cabeça de titica. Vou pedir esmolas com a criança, antes de ficar
enterrada em merda.
Sem hesitar um só instante, ela apanhou
Hércules e partiu correndo pelo portão. Deixando Chonkin sozinho, Gladishev
correu no encalço da mulher.
- Para onde vai correndo, Afrodite? –
gritava atrás dela. – Volte, estou dizendo. Não nos envergonhe diante de todos.
Ei, Afrodite!
Afrodite parou, voltou-se e começou a
gritar com raiva na cara de Gladishev:
- Eu não sou a sua Afrodite. Eu sou
Froska, entendeu isso, seu imbecil de orelha torta? Froska!
Deu meia volta e, segurando a criança
quase morta de medo, com os braços bem para cima, continuou correndo pela
aldeia, dando saltos e tropeçando.
- Eu sou Froska, gente, escutem o que
digo, sou Froska! – Não parava de gritar com deleite frenético, como se houvesse
acabado de recuperar o dom da fala após anos de mudez a mais completa.”
(“A Vida e as
Extraordinárias Aventuras do Soldado Ivan Chonkin”, Vladimir Vainovich, Editora
Artenova S.A., Rio de Janeiro, 1978, Páginas 108 a 112.)
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