sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A Conversão do Diabo - Leonid Andreiev (Parte 12)

A CONVERSÃO DO DIABO

Leonid Andreiev

      - Eu nasci atrás dessas montanhas, meu amigo! Ali está minha aldeia natal. Ali amei uma linda criaturinha, mas renunciei ao amor para servir a Deus. Durante inúmeros anos não pude me esquecer dela, nem da aldeia, e muitas vezes olhei na direção das montanhas, suspirando saudosamente. O sacerdote moribundo olhava cheio de alegria a seu redor e se entregava às suas recordações. O sol desaparecia pouco a pouco.
      - Amo também Florença, esta formosa cidade, em que vivi tanto tempo - continuou o sacerdote. - Agradava-me sentir sob meus pés as pedras tépidas de suas calçadas. Ah!, meu amigo, quando se anda pela terra setenta anos, esta se torna em alguma coisa assim como nossa mãe e até suas pedras perdem a dureza... E isto que estou dizendo será ainda mais certo ali, onde vou agora...
      O diabo soltou um suspiro; o sacerdote, que continuava em seus braços, sentiu-o, compreendeu a dor do diabo e lhe disse com moribunda entonação:
      - Não suspires... Não te desesperes... É muito possível meu amigo, que também vás ao Paraíso... porque és... um diabo... muito bom...
      O sol verteu manchas sangrentas pelo céu, empurrando o horizonte, extinguindo-se. O velho sacerdote extinguiu-se com o sol. Morreu, abandonando sua querida Florença e todas aquelas terras, que tanto amava.
      Desesperado, o diabo esforçava-se por despertá-lo, falando-lhe com voz rude e áspera:
      - E as estrelas, meu padre? O senhor não admirou ainda as estrelas! O senhor não viu ainda a lua, que está quase a surgir no horizonte, e vai projetar, neste instante, sua pálida luz sobre as lajes da sua amada Florença. Abra os olhos, meu padre, e olhe! Suplico-lhe...
      Quando compreendeu que tudo estava findo, e que seu amigo e protetor estava bem morto, transportou-o para baixo, para sua alcova. Enquanto o levava em seus braços, pensava: "Subi com ele vivo ao campanário e o desço morto!..."
      Uma dor profunda apoderou-se da alma do diabo.
      Agitava-se, chorava, gemia, uivava como um animal feroz, repelando os cabelos: não estava acostumado à dor humana, e manifestava-a de forma ridícula. Tão grande era seu desespero, que apanhando seu único tesouro – o manuscrito despedaçado - o atirou a um canto.
      No entanto, ao fazer isto, não compreendia que, precisamente naquele mesmo instante, se realizava o bem, esse bem intangível e misterioso, que ele procurara com tanto afã e à custa de tantos e tão grandes sofrimentos.
      E não o compreendeu em toda a sua vida. Aquele precioso manuscrito tinha um aspecto muito desagradável. Rasgado, maltratado, com as folhas engorduradas pelas garras dos demônios que o tocaram, achava-se ante os tristes olhos do nosso diabo, que envelhecera muitos anos num só dia. Abriu-o com mão tremula, na primeira página, e mergulhou largo tempo no estudo das linhas cuidadosamente escritas.
      À medida que ia lendo, seus olhos exprimiam espanto e incompreensão. Ao terminar, estava fora de si, de tão surpreso e assustado. Até então, nunca, nem nos momentos mais difíceis de sua vida, teve o diabo um ar tão estúpido e assombrado.
      O manuscrito inteiro lhe parecia uma pilhéria de mau gosto. Dir-se-ia que o velho sacerdote zombava do bem e do pobre diabo que tão ansiosamente aspirava pela virtude.
      Também, o sacerdote havia, com certeza, perdido o juízo nos seus últimos dias, porque, agora se recordava o diabo, balbuciava, com a gravidade de uma criança que diz cândida simplicidade, coisas néscias, atribuindo grande importância às coisas mais insignificantes.
      De qualquer forma ele via, claramente, que o haviam enganado. Perdeu sua última esperança e sentiu-se furioso. Todo o manuscrito, da primeira à ultima página, estava composto de curtas prescrições, que diziam, semana por semana, dia por dia, hora por hora, o que o diabo teria de fazer.
      Não havia nele uma só lei geral, nem uma só regra, nem um só principio. A palavra "Bem", tampouco, era mencionada, uma única vez. Nele figurava simplesmente a descrição minuciosa do que se devia fazer em tal dia e a tal hora. O manuscrito parecia-se, portanto, mais do que qualquer outra coisa, com um livro de receitas.
      O que mais dolorosamente impressionou o diabo foi não ver em todo o manuscrito nem uma só das formosas verdades que a humanidade recolheu durante milhares de anos e que estão destinadas a embelezar o bem. Ele mesmo conhecia inúmeras delas; esperava, com razão, que o velho sacerdote que tanto estudara, colocasse grande quantidade destas verdades em sua obra. Mas não pusera uma que fosse.
      Subitamente um raio de esperança iluminou seu coração. Havia-o feito calculadamente o velho sacerdote, para que o diabo deduzisse por si mesmo as conclusões gerais? O velho sacerdote era muito malicioso...

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