A CONVERSÃO DO DIABO
Leonid Andreiev
- Eu nasci atrás dessas montanhas, meu
amigo! Ali está minha aldeia natal. Ali amei uma linda criaturinha, mas
renunciei ao amor para servir a Deus. Durante inúmeros anos não pude me
esquecer dela, nem da aldeia, e muitas vezes olhei na direção das montanhas,
suspirando saudosamente. O sacerdote moribundo olhava cheio de alegria a seu
redor e se entregava às suas recordações. O sol desaparecia pouco a pouco.
- Amo também Florença, esta formosa
cidade, em que vivi tanto tempo - continuou o sacerdote. - Agradava-me sentir
sob meus pés as pedras tépidas de suas calçadas. Ah!, meu amigo, quando se anda
pela terra setenta anos, esta se torna em alguma coisa assim como nossa mãe e
até suas pedras perdem a dureza... E isto que estou dizendo será ainda mais
certo ali, onde vou agora...
O diabo soltou um suspiro; o sacerdote,
que continuava em seus braços, sentiu-o, compreendeu a dor do diabo e lhe disse
com moribunda entonação:
- Não suspires... Não te desesperes... É
muito possível meu amigo, que também vás ao Paraíso... porque és... um diabo...
muito bom...
O sol verteu manchas sangrentas pelo céu,
empurrando o horizonte, extinguindo-se. O velho sacerdote extinguiu-se com o
sol. Morreu, abandonando sua querida Florença e todas aquelas terras, que tanto
amava.
Desesperado, o diabo esforçava-se por
despertá-lo, falando-lhe com voz rude e áspera:
- E as estrelas, meu padre? O senhor não
admirou ainda as estrelas! O senhor não viu ainda a lua, que está quase a
surgir no horizonte, e vai projetar, neste instante, sua pálida luz sobre as
lajes da sua amada Florença. Abra os olhos, meu padre, e olhe! Suplico-lhe...
Quando compreendeu que tudo estava findo,
e que seu amigo e protetor estava bem morto, transportou-o para baixo, para sua
alcova. Enquanto o levava em seus braços, pensava: "Subi com ele vivo ao
campanário e o desço morto!..."
Uma dor profunda apoderou-se da alma do
diabo.
Agitava-se, chorava, gemia, uivava como
um animal feroz, repelando os cabelos: não estava acostumado à dor humana, e
manifestava-a de forma ridícula. Tão grande era seu desespero, que apanhando
seu único tesouro – o manuscrito despedaçado - o atirou a um canto.
No entanto, ao fazer isto, não
compreendia que, precisamente naquele mesmo instante, se realizava o bem, esse
bem intangível e misterioso, que ele procurara com tanto afã e à custa de
tantos e tão grandes sofrimentos.
E não o compreendeu em toda a sua vida. Aquele
precioso manuscrito tinha um aspecto muito desagradável. Rasgado, maltratado,
com as folhas engorduradas pelas garras dos demônios que o tocaram, achava-se
ante os tristes olhos do nosso diabo, que envelhecera muitos anos num só dia.
Abriu-o com mão tremula, na primeira página, e mergulhou largo tempo no estudo
das linhas cuidadosamente escritas.
À medida que ia lendo, seus olhos
exprimiam espanto e incompreensão. Ao terminar, estava fora de si, de tão
surpreso e assustado. Até então, nunca, nem nos momentos mais difíceis de sua
vida, teve o diabo um ar tão estúpido e assombrado.
O manuscrito inteiro lhe parecia uma
pilhéria de mau gosto. Dir-se-ia que o velho sacerdote zombava do bem e do
pobre diabo que tão ansiosamente aspirava pela virtude.
Também, o sacerdote havia, com certeza,
perdido o juízo nos seus últimos dias, porque, agora se recordava o diabo,
balbuciava, com a gravidade de uma criança que diz cândida simplicidade, coisas
néscias, atribuindo grande importância às coisas mais insignificantes.
De qualquer forma ele via, claramente,
que o haviam enganado. Perdeu sua última esperança e sentiu-se furioso. Todo o
manuscrito, da primeira à ultima página, estava composto de curtas prescrições,
que diziam, semana por semana, dia por dia, hora por hora, o que o diabo teria
de fazer.
Não havia nele uma só lei geral, nem uma
só regra, nem um só principio. A palavra "Bem", tampouco, era
mencionada, uma única vez. Nele figurava simplesmente a descrição minuciosa do
que se devia fazer em tal dia e a tal hora. O manuscrito parecia-se, portanto,
mais do que qualquer outra coisa, com um livro de receitas.
O que mais dolorosamente impressionou o
diabo foi não ver em todo o manuscrito nem uma só das formosas verdades que a
humanidade recolheu durante milhares de anos e que estão destinadas a embelezar
o bem. Ele mesmo conhecia inúmeras delas; esperava, com razão, que o velho
sacerdote que tanto estudara, colocasse grande quantidade destas verdades em
sua obra. Mas não pusera uma que fosse.
Subitamente um raio de esperança iluminou
seu coração. Havia-o feito calculadamente o velho sacerdote, para que o diabo
deduzisse por si mesmo as conclusões gerais? O velho sacerdote era muito
malicioso...
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