O grande matemático fechou,
lentamente, o livro. Pousou, com cuidado, a pena junto do tinteiro e,
voltando-se para o inesperado visitante que permanecia de pé, disse-lhe:
- Sente-se, por favor. De que se
trata, afinal? Algum novo problema?
O homem da pasta amarela deixou-se
cair, pela ação da gravidade, na larga e confortável poltrona. Teria cinqüenta
anos, no máximo: alto, magro, de uma magreza retilínea, quase vertical. Trazia
óculos cor de cinza, com aros vermelhos. Pura esquisitice, com certeza.
- Venho consultá-lo – começou (e a sua
voz denunciava não pequeno constrangimento) – sobre um novo e importante
problema de Matemática. Trata-se, apenas, de determinar uma fórmula geral que
permita medir uma coincidência qualquer!
- Coincidência? Como assim?
- Em poucas palavras poderei
explicar-lhe – prosseguiu, já mais animado. – Devo confessar que coleciono
coincidências. Sim, senhor. Não se admire. Sou, repito, colecionador de
coincidências. Há milhares de pessoas pelo mundo que colecionam coisas; uns,
selos; outros, borboletas; outros, enfim, cartões, plantas exóticas,
carteirinhas de cigarros, moedas, móveis antigos, penas, aranhas, autógrafos,
cachimbos, cartões-postais, quadros, livros, pedras preciosas e até múmias! Há
coleções incríveis! Conheci em Paris um maestro, muito rico, que colecionava
“risadas”: essa original “coleção” era gravada em discos especiais; em cada
disco figurava o nome, a idade e, às vezes, até a biografia do autor da
“risada”. Não acha interessante?
- Interessantíssimo!
- Pois bem. Para fugir à vulgaridade
resolvi organizar uma coleção única no mundo, isto é, uma coleção de
coincidências. Ao ter notícia de uma coincidência notável, procuro todos os
meios de comprová-la. Uma vez obtidos os necessários documentos, a coincidência
passa a figurar no meu álbum rigorosamente assinalada com fotografias, recortes
de jornais, depoimentos de testemunhas idôneas, etc. Eis um exemplo que poderia
apontar entre centenas de outros. No dia 5 de março deste ano, na Praça de S.
Luís, um automóvel, que conduzia um passageiro atropelou um transeunte
descuidado; um médico, que passava no momento, socorre o ferido e um guarda,
postado de serviço no local, prendeu o motorista desastrado. Houve, nesse caso,
uma coincidência realmente notável, já devidamente incluída em minha coleção. O
médico, o guarda, o ferido, o passageiro e o “chauffeur”, esses cinco
cavalheiros envolvidos no acidente, faziam anos precisamente naquele dia 5 de
março. Notável, não acha? Tenho, a tal respeito, várias fotografias autênticas
e certidões com firmas reconhecidas.
- É curioso.
- Isto ainda não é nada. Não me furto
ao prazer de contar-lhe mais uma. Em setembro de 1919 (não me recordo
precisamente do dia) partiu de Dover um pequeno vapor, o “Moldan”, com um
carregamento de fios. Tomaram passagem apenas quatro viajantes. Ocorreu, então,
uma coincidência de pasmar. Os quatro passageiros eram pernetas, sendo dois da
perna direita e os outros dois da esquerda. A esse respeito tenho duas grandes
fotografias, numa das quais figura o comandante do “Moldan”, com sua blusa de
couro, ladeado pelos passageiros estropiados!
Neste ponto o visitante fez pequena
pausa e logo prosseguiu:
- Ora, senhor matemático, a minha
coleção só terá realmente interesse para o grande público no dia em que eu
puder classificar as coincidências que nela figuram, segundo certo critério,
isto é, atribuindo a cada uma delas determinado valor. Posso provar que há
coincidências suscetíveis de comparação. Chamo-me Samuel Spaier, sou médico e
tenho 1m,71 de altura. Vamos supor que, ao atravessar uma rua, esbarre com um
indivíduo qualquer. Se esse indivíduo se chamar Samuel, houve no nosso encontro
uma certa coincidência; se ele, porém, além de se chamar Samuel, for médico, a
coincidência será maior; se o sujeito, médico e Samuel, tiver precisamente
1m,71 de altura, a coincidência observada será cem mil vezes maior. Ora, se há
coincidências maiores e outras menores, é claro que cada uma delas exprime,
dentro das leis do Acaso, uma certa grandeza e como qualquer grandeza pode ser
avaliada, isto é, expressa por um número.
- Perfeitamente – interrompeu o
matemático. – A medida de uma coincidência poderá ser feita, com relativa facilidade,
com auxílio da famosa teoria das Probabilidades, aplicando-se os três teoremas
ou princípios de Poincaré. É preciso, entretanto, não confundir uma
“coincidência aparente”, resultante forçada e natural de circunstâncias bem
determinadas. Uma ocorrência qualquer pode, em verdade, deixar em nosso
espírito a impressão de ter sido presidida por uma coincidência quando nela,
afinal, o Acaso não colaborou. Assim, por exemplo, no caso do vapor “Moldan”
que, tendo partido de Dover no dia 11 de setembro de 1919, conduzia quatro
pernetas, segundo fui informado por uma reportagem do “Times”, não houve
coincidência alguma.
- Como assim?
- Tratava-se, apenas, segundo pude
averiguar, de quatro mutilados de guerra que eram, por ordem do governo, enviados
para uma clínica especializada. No encontrarem-se ali os quatro pernetas não
houve, portanto, a menor interferência do Acaso!
- Estranho interesse tomou o senhor
por esse caso – retorquiu, muito sério, o colecionador. – Teria sido mera casualidade?
- Asseguro que não – respondeu o
matemático. – Sei que vou surpreendê-lo e talvez mesmo contrariá-lo. Vejo-me,
porém, forçado a confessar a verdade. Sou também, há vários anos, colecionador
de coincidências!
Nenhuma outra notícia poderia causar
tão dolorosa surpresa ao Dr. Spaier. Sentiu-se aniquilado. Via desaparecer, num
relance, o título mais valioso de sua coleção: a originalidade. Tudo perdido!
O Dr. Spaier, sem dizer palavra,
ergueu-se nervoso, agitado e retirou-se precipitadamente da sala. Ao sair,
porém, esbarrou violentamente com um homem de cinzento-claro que, exatamente
naquele momento, atravessava o patamar. Com o choque rolam ambos, numa queda
fatal e tremenda pela escada do apartamento.
Verificou-se depois que o tal homem de
cinzento-claro chamava-se Samuel, era médico e tinha 1m,71 de altura.
Essa coincidência, porém, o Dr. Spaier
já não pôde incluí-la em sua coleção. Faleceu, alguns minutos depois da queda,
em conseqüência de forte comoção cerebral.
(“Maktub”, Malba Tahan, Editora
Conquista, Rio de Janeiro, 1957, 8ª edição, págs. 71 a 76.)
Li esse conto, sugerido por uma professora de Português, em 1962, para um trabalho escolar. Hoje, lembrei-me dele por acaso, numa conversa com minha filha e meu neto, via messenger...
ResponderExcluirOlha uma quase coincidência: li esse conto tbm por indicação do meu professor de português em 1961! Quase 1962...rs
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